sábado, 31 de julho de 2010

Rota Antártida

A Invenção:

Do mesmo modo como é impossível entender a migração das aves sem saber voar, não se pode ter ciência de qual a substância do sonho estando à deriva das estrelas. Há um rio subterrâneo que passa clandestinamente no coração de cada homem. Uma torrente aquática que impede a cristalização dos pés à terra; ela te faz boiar. Cada rio é em si oceano, e cada oceano é por si um homem. É impossível pressentir a cor dos navios, sobretudo quando vão a pique no contato só de uma esperança perdida. Algures no infinito há uma extensão da vida que ninguém tocou, isso é suficiente para comover as pedras. Cada veleiro que se alinha no horizonte é a projeção de um desejo de reencontro. Desbravar novas terras é como poder voltar à casa ou rezar em silêncio enquanto todos dormem. Para cada demarcação equatorial uma outra, e depois mais uma e tantas sem número que vão dar no encontro feérico de um lavrador com a terra derradeira ou o de uma mãe com seu filho incriado. As circunferências em semelhança às pessoas, tem o faculto do desdobramento.

O Corpo:

Os lugares de tormenta e as sombras de qualquer calmaria, um cidadão obrando seu projeto de república, jovens se prostituindo por migalhas. Toda pedra, todo seixo, toda reminiscência é o meu corpo imaterial partilhado no que for ausência e desvario. Translucidamente oculto em regiões densas, ao sabor das promessas vazias inscritas em cada mastro. O predador é sempre mais devorado que qualquer presa. O acaso florescerá mais rico entre pernas e espelhos. Na equação interminada da viagem, contabilizou-se um coração oco e um alforje em petição de miséria. Nada será como antes, porque o tempo deixou de existir num país onde os relógios perderam os ponteiros. A única mensura possível são todas as partidas que ao final da jornada dão no mesmo porto, e enfim são uma partida só, vista de ângulos contrários. O corpo é sobretudo uma unidade de medida, aqui se mensuram anos, paixões, distancias... Uma casa de muitas portas, várias janelas sem vista alguma. O peregrino que vai arrebatado pelo deserto em vez última, uma criança em sua primeira menstruação, pés e genitálias constantemente metamorfoseados.

O Irremediável:

O trovão silenciou como fosse uma fantasia de eu menino, pra onde quer que se olhasse o acre da descoberta inconsentida fazia sombra ao sabor do passo adiante. No instante seguinte o ar não soou leve em razão da insistência de alguém, o fato é que talvez as coisas devessem ser assim, mesmo parecendo uma corrente quebrada. Aparentemente. Só a alegria é feita de caos, o fim tem menos urgência e mais daquela medida de paz esquecida em cada convulsão passional. Quando a boca renega os lábios as palavras podem ser ditas como se não existissem, nesse momento breve o mundo se realiza como um projeto incalculado, e por isso meticuloso. As folhas caem das árvores e eu sinto por elas um amor sem termo, cada grão de pó esta a pulsar em mim do mesmo modo que artérias e excessos. O momento de despedida é uma ficção perfeita, descobrir-se imóvel é empresa de dura lida. Meus olhos já não distinguem cores, mas reconhecem o cheiro do sangue estival. Que o paraíso possa se reinventar em jugulares incautas. Se essa opção restar impossível, então que no negrume do sentimento de que alguma coisa ficou pra trás, a magia possa me bater como em um circo de interior. A vida é o truque mais barato dentre os que se podem conhecer. Na letargia, é como algo se me fugisse aos sentidos.

A descoberta:

Não sei como dizer algo que nunca foi experimentado antes. Palavras são prova de degredo, os deuses costumavam operar em silêncio por aqui. Um sentido de proibição absurda ao homem os sítios mais exuberantes. E agora tudo se resume em não estar, uma hora de fogo antes do gelo vir. Eu vi o dia seguinte como quem perdera seus agasalhos. Semáforo constantemente fechado, ou sempre aberto em rotas difusas. O impossível é um lugar que existe, e inominado termina como uma obsessão dos que se perderam. A jornada nasce do desejo, do caudaloso rio ocultado entre ossos e sonhos. No porão da alma há um mar imaginário pousado ao deságüe desse rio, ele é cada fragmento do que existe sem ser. Uma geometria onírica conduz o disforme às elipses perfeitas, enquanto a vida passa como uma errante perdida sem se dar conta disso. O cruzeiro do sul inscrito em cada peito tem leituras diversas, ele é abismo e reencontro, presença e exílio. Você pode livremente decepar as mãos para que cessem os carinhos a uma presença maculada, mas de todo, isso não extinguirá a incalidez do vento ao roçar seus cabelos. Peguei o trem para um país distante, lá chegando percebi que tudo era igual. Terra, árvores e gentes, qualquer variação da experiência deve requerer um estado de espírito peculiar. Se tudo é o mesmo e no fundo não é nada, tem-se direito a um trago. Insubstanciado, estar aqui é desatino.
*Leandro M. de Oliveira

2 comentários:

Dona-f disse...

os homens sempre questionam a caótica situação da vida humana neste sistema... o caos gera vida, se a constância e a plenitude encantassem os serem cerebrais, simplesmente existiríamos, não haveria angústia, prazer, ganância ou amor, seríamos como uma máquina automotizada.

Monica disse...

A invenção: talvez não entender
nos traga formas de sentir...sem
nenhuma explicação...as vezes,
até pressentimos com exatidão.
Mesmo que clandestinamente,há uma
navegação presente no coração,
barqueiros,vão e vem na casa
simbolo do amor e suas intempéries

O corpo: nele a alma se encontra,
essência expressa,manifesta,gera
realiza, senti,acollhe,despacha.

O predador, habitante intimo,dá
o alerta, porque a primeira vítima
do predador é ele mesmo;libido
sugada,enfraquecimento da vontade
auto sabotagem...

O irremediável: a palavra chave,
a pergunta chave "o que não é como
aparenta ser,o que eu sei e
preferia não saber,que parte de
mim foi morta ou está agonizando?"

A descoberta :isso não extinguirá a incalidez do vento ao roçar seus cabelos. Peguei o trem para um país distante, lá chegando percebi que tudo era igual. Terra, árvores e gentes, qualquer variação da experiência deve requerer um estado de espírito peculiar..."

A rosa vermelha na "Rota Antártida"

Grata Leandro,
um abraço.