quinta-feira, 29 de julho de 2010

O silêncio de um homem só

O que vale um homem só? Para que serve? Que inominável pecado cometeu para receber o castigo de continuar vivendo? Talvez Luís Maria não tivesse chegado a formular nenhuma destas interrogações enquanto permaneceu imóvel no banco da praça - não porque preferisse evitá-las, mas porque não se achava aparelhado para cogitações e metafísicas, habituado como estava a ir vivendo sem meditar no que fazia. O facto de não lhe ocorrerem tais ideias não significava, porém, que as não sentisse a medrar no peito como um bolbo gordo que fosse crescendo ao redor da garganta até ao ponto de quase o sufocar. Faltar-lhe-iam as palavras para expressar o chumbo que sentia na testa - e talvez fosse isso o que procurava com os olhos fixos na poeira do chão.

Percebera, com um único olhar em redor, a razão daquele rocambolesco despertar no meio da calçada e, enquanto caminhava os poucos passos que o separavam do banco onde se sentou, lamentou o facto de ter o caixão tosco caído da carroça, ressuscitando-o. Melhor teria sido que o enterassem de uma vez por todas, para sempre, abreviando-lhe a existência inútil, eternizando-lhe o silêncio na sepultura que não havia de ser mais do que uma elevação de terra seca assinalando o volume do seu corpo. Quando, enfim, ganhou ânimo para se erguer do banco e rumar a casa - onde mais? -, fê-lo ainda com os olhos baixos para não enfrentar a vergonha dos olhares que sentia colados às costas, nem sentir na carne as interrogações, o espanto, eventualmente o medo que neles haveria. Deteve-se apenas quando os três amigos lhe pousaram as mãos no ombro, mais por camaradagem do que para transmitir algum afecto, mas não foi sequer capaz de dizer

- Lamento.

Seguiu pelo caminho do costume, até à porta de casa, até à mesa da cozinha onde sempre se senta quando chega, com os pés junto e as palmas das mãos pousadas no tampo, olhando em frente para a parede enegrecida, dando voltas ao vazio de chumbo que usa por cima dos olhos até serem horas de dormir e esperar que um novo dia chegue.

Neste dia, porém, quando Luís Maria sentir a casa solidamente cercada pela noite, não é para a cama que dirigirá os seus passos. Virá à janela para olhar as estrelas, abrirá a porta - que ficará escancarada - depois de ter agarrado a corda que fica presa num prego pelo lado de dentro e sairá para a calçada, principiando a caminhar sem pressa entre as pequenas casas que empalidecerão ao luar. Terá esquecido o chapéu. Ao longe, haverá um cão uivando. Atravessará a vila na direcção do cemitério, ignorando o coreto, aconchegará o rolo de corda no ombro e respirará com força para sentir o cheiro da terra e o calor que dela se desprende nas noites de Verão. Sentirá os pés pesados, como se estivessem mais fortes as velhas raízes que sempre o tinham puxado para dentro da terra. Sentir-se-á cansado e parará para beber água numa fonte antes de alcançar o olival cujo muro construíra, um dia, com as próprias mãos. Forçará o portão de ferro, fundir-se-á com as sombras dos troncos retorcidos e lançará a corda sobre um ramo alto, junto à ruína de um lagar. Procedendo como se já se tivesse enforcado mil vezes, afivelará o nó numa ponta da corda, prenderá a outra cuidando para que o laço fique a uma altura fatal, subirá à oliveira, ajustará o garrote ao pescoço e deixar-se-á cair como se fosse voar, sem tristeza, sem angústia, e ficará a sentir a forca apertando-se na garganta, o estalar das vértebras, os pés baloiçando cada vez mais devagar - até que a árvore deixe de ranger com o seu peso e o mundo volte a ser só silêncio e estrelas.
*Manuel Jorge Marmelo

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