sábado, 31 de julho de 2010

Da dentadura da discórdia e outras anotações acerca da religião em nossos dias

Acabo de assistir um vídeo da “comunidade canção nova” extraído de um programa que tem exibição em seu canal (sim, eles tem um canal próprio de televisão), nessa filmagem o citado grupo pertencente à igreja católica apostólica romana por meio dos dois apresentadores pedem deliberadamente que quem tenha ouro em casa doe para a construção de um templo. Fazendo propostas das mais esdrúxulas possíveis como enviar alianças de casamento, restos de outros objetos, chegando mesmo ao ponto de sugerir a extração de dentes de ouro de defuntos para enviar-lhes.

Nesse último caso em específico além de implicações morais, é mister lembrar que tal situação poderia gerar complicações de ordem legal, sendo aquele que pratica ato semelhante um concorrente ao enquadramento no crime disposto no Artigo 211 do Código Penal Brasileiro, “Destruição, Subtração ou Ocultação de Cadáver” que prevê reclusão de 1 a 3 anos, e multa. Os pedidos de doação citados acima são reforçados e veiculados no site da comunidade, como se observa num texto extraído dessa página há alguns meses:

“Não, o Centro de Evangelização não está pronto ainda. Podemos dizer que ele está em condição de uso. Hoje ainda o som é alugado, a iluminação é alugada, o sistema de TV é alugado, que são coisas que nós precisaremos ter fixas neste ambiente. Então você que doou o seu ouro na construção da alvenaria, da parte metálica, da parte elétrica... a campanha não acabou. Você que tem aí um pedaço de dente, de pulseira, uma aliança, uma corrente... seja o que for, talvez isso tudo servirá para você muito pouco. Você vai fazer muito pouco com isso, mas tudo isso junto aqui nós podemos mudar a vida de muita gente. Então manda para cá esse ouro.”

E agora segue abaixo o vídeo para que avaliem:



Recentemente tenho sofrido algumas críticas de leitores do blog, me acusando de ateísmo (como se isso fosse crime) e tentando colocar-me em circunstâncias às quais não vivo. Não me incomoda ser rotulado, esse é eternamente um preço a se pagar pela opinião própria. O que realmente incomoda é ver a inteligência degenerar em nome de dogmatismo vão, de um fundamentalismo do medievo. Senhores, o mundo evoluiu e as pessoas também. Quando esse tipo de assunto que envolve credos é levado à baila em nosso espaço, isso vem do desejo de esclarecimento que deve ser o fim último de qualquer criatura humana que é nessa condição por vosso entendimento, divina. Assim, é provável que transcender rime em absoluto com conhecer. Se existe um criador que nos deu como legado a terra, é no mínimo digno de nossa parte saber em que consiste essa herança.

Todavia, mais concretamente, quando se aborda o tema da religião organizada, é preciso considerar a priori que são elas redes e instrumentos de poder. Não é pelo fiel engajado que nos manifestamos, ele é livre, para sublimação absoluta ou degradação voluntária, como bem lhe aprouver. O nossa questão é relacionada aos clérigos estelionatários de qualquer igreja que tenham como profissão de fé a exploração do ingênuo, seja ela em qualquer campo, tanto no moral, espiritual ou material. Esses homens vão se apossando aos pouco da consciência das gentes, direcionam o povo a pensamentos pré-fabricados, o que vem se traduzindo com efeito em ascensão política de membros dessas congregações que se tornam vereadores, prefeitos, deputados, governadores... Nesse exato momento, eu, você e qualquer outro que nada tem haver com esses homens e suas falcatruas, passamos a ser afetados enquanto membros e utilizadores da “res publica”. A orientação do Estado não é laica por acaso, isso ocorre para que haja um ponto de neutralidade competente a mediar conflitos gerados em sociedade, e quando esse ponto é afetado por sectarismos, estamos a um passo de descambar.

Por exemplo, lembro-me de um caso agora. Em Belo Horizonte há alguns anos um casal homossexual vivia em plena comunhão marital, essa relação entre duas mulheres perdurou por cerca de dezesseis anos, até que uma morreu por complicações de saúde. Até aí tudo corria dentro da normalidade, o caminho natural da vida é a morte, nada de extraordinário. Foi quando a família da “de cujus” veio do interior e decidiu requerer os bens que a ela pertenciam, o fato grave é que quase a totalidade dos bens (apartamento, carro, conta-poupança), estava em nome da falecida. O resultado foi que a família conseguiu contra a cônjuge sobrevivente uma ordem judicial de despejo do apartamento que ela própria ajudou a adquirir. No final estava a mesma entregue à sarjeta.

Esse é um caso ilustrativo das milhares de situações semelhantes que ocorrem. Ele foi citado para uma pergunta simples, por que o Brasil não adotou o casamento gay ou pelo menos uma garantia real com os efeitos da união civil para os casais do mesmo sexo? Simples! É basicamente lob religioso meus caros. Existe um projeto de lei acerca da União civil entre pessoas do mesmo sexo de 1995 que foi engavetado por pressão de segmentos eclesiásticos. As mesmas represálias vem sofrendo leis a respeito do aborto e de muitas outras questões relacionadas à saúde pública e à responsabilidade civil.

Ora, que tipo de Deus permite que pessoas que construíram uma vida juntas sejam ao final de tudo rechaçadas como criminosos vulgares? Que divindade deseja o crescimento da morte no ventre de uma mãe por meio da gestação de um bebê anencefalo? Não sei responder a essas perguntas, não sei mesmo dizer se isso é digno de ser discutido em termos de seriedade.

Deus é na verdade uma imagem e semelhança do homem que o projeta, nesses casos estamos em profundo desacordo com as sombras na parede.

*Leandro M. de Oliveira

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