domingo, 31 de janeiro de 2010

Sofístico (ou da crise criativa)

O que é escrever senão fingir? Dissimular o ego, pregar ideais por nós nunca acreditados, ou quem sabe, ser subversivo, criar mil teses anarquistas e ainda assim engraxar os sapatos de manhã e escovar os dentes a noite. Escrever é transfigurar-se, é ter na matéria ordinária a quintessência de todas as pedras filosofais. Ser abduzido pela alma do mundo, psicografá-la, como um amante sexualiza seu primeiro amor, se perder na acolhida, deixar-se consumir pela cal. Escrever é deveras fingir! Fingir copiosamente a dor quer nunca habitou, esquecer a razão entre lembranças, cabelos e dentes. É dar parte ao furacão fazendo sombra à paragem mais densa, é reclamar liberdade ansiando pelos mil grilhões que unem a teia de existir.

A vida é curta. A alegria cotidiana é pífia. E o “escrevedor” que disso nada entende, segue em peregrinação santa por rotas ordinárias. Onde está o Graal? Na minha cabeça ou no meio das pernas dela? Ademais que é cabeça ou perna, ou sangue ou sonho, tudo mitificado está, pela dicotomia do não-ser sendo. No redondo escuro da hora, carregar o fardo é papel daquele que hesita. Ainda que tenha hesitado da maneira mais meticulosa possível, ninguém engana a vida. Quero rasgar o chão com as mãos nuas, quero rasgar pescoços com meus dentes à amostra. Tudo é hipótese. Essa terra imunda não conserva mais diamantes.

Partir ficando, ficar partindo, a palavra cuida, acaricia, sodomiza, espanca. A palavra beija e cospe, na cara uma verdade antiga muda mentira nova. Escrever é perder a razão pra nunca mais, e por fim quando lá nada haver ser, restituído de tudo, e outra vez perder, e outra vez ganhar. Eternamente farto, eternamente miserável. O profeta maldito segue porque escrever é uma maldição que a auto-piedade transformou em bênção. Não sei por que os bebês tem refluxo, não sei por que o homem mata a si mesmo. Tudo lisérgico, suavemente insuportável. É o mundo... Ser abortado da consciência em nome do espírito coletivo, uma mentira que deu certo, ou não. Assim, aquele que cria meios na individualidade o faz para ser múltiplo, para repartir entre as bestas, membros, tronco, cabeça e coração. Escrever é deixar-se à cova dos leões. Hoje quis me doar, todavia, acordei com a disposição ao martírio em baixa...
*Leandro M. de Oliveira

A alma de Guernica

Era uam vez a guerra civil espanhola, e nela uma aldeia de Guernica, essa atacada e praticamente destruida pela Luftwaffe, inspirou uma das mais famosas pinturas de Pablo Picasso. Frente à tragédia do bombardeamento e o caos disseminado entre destroços e corpos, esta obra, que já vinha sendo trabalhada pelo artista há algum tempo, é finalizada e recebe o nome da aldeia então arrasada, nascendo e perpetuando-se Guernica.

Lena Gieseke propôs-se a fazer uma representação a três dimensões desta famosa pintura, idéia que surge a partir da influência da montagem de puzzles de pinturas famosas.Segundo Lena, através da montagem de puzzles a percepção de toda a obra adquire um significado diferente, pelo fato deste processo obrigar a um estudo detalhado das linhas, formas e cores que dão vida a toda a composição. A minúcia necessária para a execução de tal tarefa permite que tenhamos consciência de certos detalhes que, de outra forma, jamais seriam percepcionados.

A experiência da pintura torna-se então mais intensa, pela interação causada pela solução do puzzel mas, ao mesmo tempo, fortalecida e expandida pela própria fantasia do observador, a medida que vai analisando pequenos pedaços desconexos da obra. Aqui o simbólico recria o horror da vida que nos é ofertado como flores de uma consistência rara. Bem vindo ao mundo da delicadeza nascida da brutalidade, bem vindo à alma de Guernica.

*Leandro M. de Oliveira

Entartete Kunst, o crime nazi contra a arte

Entartete Kunst - literalmente Arte Degenerada - foi a designação que o regime nazi da Alemanha deu genericamente à arte moderna, a toda aquela que não fosse figurativa, imitativa, realista ou tradicional. Nesta classificação incluíam-se sobretudo as obras vanguardistas da pintura e da escultura de caráter abstrato, surrealista ou expressionista. Os autores destas "aberrações" eram, segundo os nazis, alegadamente judeus bolcheviques - uma ameaça, portanto - e, consequentemente, sujeitos a sanções de várias ordens, como interdição de expor, de dar aulas, de vender as suas obras, etc. Estamos falando de artistas como Wassily Kandinsky, Marc Chagall, Max Ernst, Paul Klee, para citar apenas alguns dos mais conhecidos. Tratou-se de uma tentativa sistemática de dilapidação da alma simbólica de uma época suprimindo a produção dos artistas modernos que exprimiam as incertezas do então século XX pós primeira guerra mundial.
Dentro de um grande ideal nazi que era o mito do corpo do povo alemão, onde difundiu-se a idéia de que a massa de pessoas formava uma espécie de sistema circulatório, sendo assim o elemento básico para a purificação da raça. Josef Goebbels trabalha artífices para o expurgo das pragas e doenças que impediam esse corpo de se manter totalmente são e prosperar na criação de um reich de mil anos. A arte bolchevique era uma das piores doenças incutidas nas artérias do “corpo” alemão, então era dever do estado eliminar essa praga visual e ideológica que nublava o siso das pessoas impedindo o encontro do arquétipo do homem verdadeiro (ariano). Essa foi a justificativa para alguns dos piores crimes praticados contra a expressão artística do mundo na história.
A expressão Arte Degenerada foi habilmente difundida pelo ministro da propaganda de Hitler, Goebbels, numa imensa campanha de descrédito da produção modernista. Em 1937, uma comissão por ele nomeada ficou incumbida de confiscar dos museus e coleções particulares todas as obras consideradas "subversivas" - ao todo mais de 5000. A maioria era de artistas alemães mas, entre elas também se encontravam telas de Matisse, Picasso e até van Gogh. Com este imenso lote montou-se então uma exposição para ridicularizar a arte moderna e tentar incutir nos seus visitantes repulsa pelas expressões artísticas que na ótica dos seus organizadores, maculavam a genuína cultura alemã. Como era de prever Entartete Kunst foi o nome dessa exposição.
Em 19 de Julho de 1937 cerca de 650 pinturas, esculturas, gravuras, etc. foram mostradas ao público num decrépito edifício de Munique. A forma propositadamente desordenada, amontoada e tendenciosa como as obras se encontravam patentes juntavam-se slogans "pedagógicos" que pretendiam explicar o seu significado aos visitantes: Revelação da alma racial judia, Insulto às mulheres alemãs, Natureza vista por mentes perturbadas, Troça do Divino, etc. A exposição viajou ainda por mais algumas cidades da Alemanha e da Áustria.
O crime nazi então se alargou a proporções dantescas pois, enquanto decorria este evento Goebbels ordenou a apreensão de mais obras de arte degenerada, um número que se pensa ter chegado a mais de 16.000! Depois da exposição várias obras integraram as coleções particulares de alguns membros do partido nazi que sabiam bem o que valiam (Hermann Goering foi um deles) enquanto outras foram enviadas para a Suíça para serem leiloadas. Só assim puderam sobreviver até hoje.
Curiosamente, esta campanha de descrédito teve um reverso da medalha e um desenlace irônico. Ao mesmo tempo os nazis promoveram outra enorme mostra destinada a divulgar a arte oficial, caucionada pelo regime. Chamaram-lhe pomposamente Grosse deutsche Kunstausstellung (Grande Exposição da Arte Alemã) e alojaram-na no magnífico Haus der Kunst, em Munique. Após o seu término verificou-se que tinha sido visitada por pouco mais do que um quarto das pessoas que visitaram a Entartete Kuns, fato engraçado é que o adquirente de quase a totalidade das obras expostas em Grosse deutsche Kunstausstellung foi Adolf Hitler...
*Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Civilidade, melhoria do gênero humano ou alienação dos sentidos?

A civilidade é uma questão de costumes, etiqueta, urbanidade, ritos informais que facilitam as nossas interações e, dessa forma, nos fornecem modos de nos tratarmos mutuamente com consideração. Cria espaço social e psicológico para as pessoas viverem as suas vidas e fazerem as suas escolhas. Os jovens que cospem para o passeio e praguejam nos ônibus revelam sintomas meramente superficiais de incivilidade. Mais grave é a violação da privacidade por parte dos jornais sensacionalistas e as incursões em áreas da vida pessoal irrelevantes para as questões públicas - por exemplo, revelações acerca da vida sexual dos políticos. A nossa época é, efetivamente, moralista. Nauseantemente moralista. E isso constitui grande parte do problema, uma vez que as atitudes moralistas são intolerantes, e a intolerância é uma das piores descortesias. Exigir a cortesia é de certa forma, exigir muito pouco: "Devemos ser corteses com um homem da mesma forma como o somos com um quadro, ao qual estamos dispostos a conceder o benefício de uma boa luz", dizia Emerson.

A perda de civilidade significa que o sentimento social foi substituído pela defensiva, com os grupos a reunir-se em torno de conceitos de identidade nacionalista, étnica e religiosa, erigindo barreiras contra os outros e, assim protegendo-se a si mesmos. A sociedade fragmenta-se em subgrupos cujos membros esperam assim escudar-se do egoísmo e desconsideração cáusticos dos outros.


"Há uma cortesia do coração que possui um caráter semelhante ao amor. Dela nasce a cortesia mais pura, no comportamento exterior", disse Goethe (...) a civilidade promove uma sociedade que se comporta bem em relação a si mesma, cujos membros respeitam o valor intrínseco do indivíduo e os direitos das pessoas diferentes de si.

*A.C. Grayling

J. D. Salinger

Nem parecia que tinha nevado, as calçadas já estavam quase limpas. Mas fazia um frio de rachar e tratei de tirar do bolso meu chapéu vermelho e botei na cabeça - estava pouco ligando para minha aparência. Cheguei até a baixar os protetores de orelha. Bem que gostaria de saber qual o safado que tinha roubado minhas luvas no Pencey, porque minhas mãos estavam geladas. Não que eu fosse fazer muita coisa se soubesse. Sou um desses sujeitos covardes pra chuchu. Procuro não demonstrar, mas sou. Por exemplo, se tivesse descoberto quem roubou minhas luvas no Pencey, provavelmente teria ido até o quarto do vigarista e diria: "Muito bem. Que tal ir me passando as luvas?". Aí, o vigarista que as tinha roubado provavelmente responderia, com a voz mais inocente do mundo: "Que luvas?". Aí eu provavelmente ia até o armário dele e encontrava as luvas num canto qualquer, escondida na porcaria das galochas ou coisa que o valha. Apanhava as luvas, mostrava a ele e perguntava: "Quer dizer que essas luvas são tuas, não é?". Aí o filho da mãe provavelmente olharia para mim, com a maior cara de anjinho, e diria: "Nunca vi essas luvas em toda a minha vida. Se são tuas, pode levar. Não quero mesmo essa droga pra nada". Aí eu provavelmente teria ficado uns cinco minutos de pé, no mesmo lugar, com as luvas na mão e tudo. Ia me sentir na obrigação de dar um soco no queixo do sujeito, quebrar a cara dele. Só que não iria ter coragem de fazer nada. Ia só ficar ali, de pé, tentando fazer cara de mau. Talvez dissesse alguma coisa bem cortante e sarcástica, para aporrinhar o sujeito - em vez de lhe dar um soco no queixo. Seja lá como for, se eu dissesse alguma coisa bem cortante e sarcástica, ele provavelmente se levantaria, chegaria mais perto de mim e perguntaria: "Escuta, Caulfield. Você tá me chamando de ladrão?". Aí, em vez de dizer que era isso mesmo, que ele era um filho da mãe dum ladrão, eu provavelmente só teria dito: "Só sei que a droga das minhas luvas estavam na droga das tuas galochas". A essa altura o sujeito já saberia com certeza que eu não ia mesmo dar um soco nele e diria: "Olha, vamos deixar esse negócio bem claro. Você ta me chamando de ladrão?". Eu então provavelmente responderia: "Ninguém está chamando ninguém de ladrão. Só sei que as minhas luvas estavam na porcaria das tuas galochas". O negócio podia continuar assim durante horas. Finalmente eu iria embora sem ter dado um sopapo nele. Provavelmente ia para o banheiro, acendia um cigarro e ficava me olhando no espelho, fazendo cara de valente. De qualquer maneira, era nisso que eu estava pensando enquanto voltava para o hotel. Não é nada engraçado ser covarde. Talvez eu não seja totalmente covarde. Sei lá. Acho que talvez eu seja apenas em parte covarde, e em parte o tipo de sujeito que está pouco ligando se perder as luvas. Um de meus problemas é que nunca me importo muito quando perco alguma coisa - quando eu era pequeno minha mãe ficava danada comigo por causa disso. Tem gente que passa dias procurando alguma coisa que perdeu. Eu acho que nunca tive nada que me importaria muito de perder. Talvez por isso eu seja em parte covarde. Mas isso não é desculpa. Sei que não é. O negócio é não ser nem um pouquinho covarde. Se é hora de dar um soco na cara de alguém, e dá vontade mesmo de fazer isso, a gente não devia nem conversar. Mas não consigo ser assim. Eu preferia empurrar um sujeito pela janela, ou cortar a cabeça dele com um machado, do que dar um soco no queixo dele. Odeio briga de soco. Não que me importe muito de apanhar - embora, naturalmente, não seja fanático por pancada - mas o que me apavora mais na briga é a cara do outro sujeito. Não consigo ficar olhando a cara do outro sujeito, esse é que é o meu problema. Não seria tão ruim se a gente estivesse com os olhos vendados, ou coisa que o valha. Pensando bem, é um tipo gozado de covardia, mas não deixa de ser covardia. E eu não procuro me iludir (...)
*J. D. Salinger em "O Apanhador no Campo de Centeio"
**Em tempo, uma nota de pesar pelo empobrecimento do mundo das letras ocorrido hoje (dia 28 de janeiro de 2009) com a morte desse grande artista no auto de seus 91 anos. Vida longa ao doce pessimista...

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O papel da filosofia

Perguntarão então qual é o papel da filosofia, se ela não tem de nos libertar da ignorância e nos elevar ao saber. É que só ela nos traz o entendimento da aparência como aparência. Porque vivemos na aparência, mas não sabemos, uma vez que, ao contrário, deixamo-nos levar continuamente a absolutizar aquilo que nos aparece, e, em vez de deixá-lo valer unicamente nos limites da aparência, nós o supomos valendo pelo "ser" mesmo, e pela essência das coisas, o que nos conduz a rejeitar, a "refutar", a abolir as outras versões, que, no entanto, são sentidas, vividas por outros.

A filosofia da aparência deve conduzir a uma absoluta benevolência: se "sabemos" que tudo o que dizem sobre a Virgem, mãe de Jesus, não passa de um tecido de absurdos, só podemos lançar um olhar de piedade e de condescendência sobre a pobre velha que acende uma vela numa capela da Virgem, mas, então, não estamos fazendo mais do que adotar outro aspecto da ilusão de reificação de que é vítima a velha senhora — como se a Virgem tivesse de ter um ser, um estatuto ontológico; se, ao contrário, estivermos atentos àquilo que se mostra à mulher devota em seu gesto de adoração, à Virgem como valor inspirador de atitudes e de vida, como centro de radiação que ilumina e inspira certa esfera de existência, então, longe de nos sentirmos levados à condescendência ou ao desdém, adquirimos um tipo de respeito indireto por essa "Virgem" poderosa e ativa (dentro dos limites de uma esfera de existência), mesmo não sendo nada.

Os homens da ciência, os filósofos são levados a conceber uma hierarquia em cujo pico se colocam, e o currículo da educação e da instrução lhes parece dever conduzir, de grau em grau, até esse pico: ser "ignorante" ou ser "erudito" faz, para eles, enorme diferença… Mas, a sua existência é realmente mais rica do que a de uma velha ignorante, se eles perderam o poder de adorar (ou um outro poder: por exemplo, aquela forma de generosidade, aquela humildade etc.)? Mas, por outro lado, não são eles também vítimas da mesma ilusão de reificação? Porque pensam ter de ir para além da aparência, para o "ser-verdade" e para a "essência" das coisas — enquanto estão vivendo como toda gente, na aparência, em que o que conta, no desenrolar cotidiano da vida, é uma multiplicidade de coisas singulares que o tempo arrasta consigo. Certamente eles teriam, contudo, razão se existisse esse "ser-verdade" — ou "essência" — das coisas (ou qualquer coisa daquilo que hipostasiam acima da vida em seu curso cotidiano), mas para a filosofia da aparência, ao ignorar que a aparência é o todo, não fazem mais do que substituir a aparência pela ilusão.
*Marcel Conche

A diferença como ponto afirmativo

Não julgo que as culturas tenham tentado, sistemática ou metodicamente, diferenciar-se umas das outras. A verdade é que durante centenas de milhares de anos a Humanidade não era numerosa na terra e os pequenos grupos existentes viviam isolados, de modo que nada espanta que cada um tenha desenvolvido as suas próprias características, tornando-se diferentes uns dos outros. Mas isso não era uma finalidade sentida pelos grupos. Foi apenas o mero resultado das condições que prevaleceram durante um período bastante dilatado.

Chegados a este ponto, não queria que pensassem que isto é um perigo ou que estas diferenças deviam ser eliminadas. Na realidade as diferenças são extremamente fecundas. O progresso só se verificou a partir das diferenças. Atualmente, o desafio reside naquilo que poderíamos chamar super-comunicação ou seja, a tendência para saber exatamente, num determinado ponto do mundo o que se passa nas restantes partes do Globo. Para que uma cultura seja realmente ela mesma e esteja apta a produzir algo de original, a cultura e os seus membros têm de estar convencidos da sua originalidade e, em certa medida, da sua superioridade sobre os outros; é somente em condições de sub-comunicação que ela pode produzir algo. Hoje em dia estamos ameaçados pela perspectiva de sermos apenas consumidores, indivíduos capazes de consumir seja o que for que venha de qualquer ponto do mundo e de qualquer cultura, mas desprovidos de qualquer grau de originalidade.
*Claude Lévi-Strauss

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O Haiti é aqui

Desde o terremoto ocorrido no Haiti há alguns dias, vê-se um desfile de boas ações noticiadas em todas as instâncias da mídia. Governos nacionais, atletas, empresas, milionários, gente comum,todos unidos em prol do socorro a esse país vítima da mais aguda miséria histórica das Américas. Fato pacífico é que esse estado do caribe vive em condições de uma precariedade às vezes inimaginável no século XXI, desde sua fundação como colônia escravista de exploração econômica francesa, até o século XX com a ocupação militar e depois política America, esse país foi continuamente dilapidado em seus recursos financeiros, naturais e sociais. A tragédia haitiana vem de longa data, ao contrário do que se imagina, grande parte do quadro de caos apresentado pelas redes de TV como grande população de rua, falta de emprego, inacesso à educação, escassez alimentícia entre outros, são flagelos que acompanham a população desse desafortunado país com ou menor intensidade desde sua conturbada independência nos idos do ano 1.804.

Como humanista não há como não se apiedar, entendo o homem do futuro como um ser essencialmente sem bandeiras, que se alista em qualquer trincheira disponível à busca do progresso global, aceitando o mundo como pátria, desconhecendo as fronteiras. Entretanto, esse homem novo a meu ver depende de mais que boa vontade e romantismo pra surgir, ele há de ser um evento concreto quando a opção for de dentro pra fora, quando em seu próprio país conhecer e trabalhar por uma justiça social efetiva, poderá ir a outros estados e reivindicar isso àqueles que lá vivem, todo o mais de empreita semelhante é conjetura ou aceitar a condição de massa de manobra dos poderosos.

O que se busca dizer com esse discurso, é que faz-se em esforço de pouca valia nos abstermos de questões básicas à evolução social interna em favor de outra ordem externa. Nesse caso vale o antigo dito popular de não adiantar em nada “descobrir um buraco pra tapar outro”. Vejo nos dias atuais o cinismo do governo brasileiro, enquanto milhões morrem de inanição, falta de emprego, educação, esclarecimento e oportunidade em inúmeros pontos desse país, nosso presidente ainda tem surtos de líder sindical e como em sonho ou ataque psicótico parece se sentir discursando na velha internacional comunista, com aquele grito de guerra inflamado e cheio de segundas intenções. Mas a era das revoluções foi (tristemente) sepultada, e os antigos líderes eram muito mais que fantoches nas mãos de uma pequena elite intelectual filha da classe média que os usa como símbolo e contraponto a uma já alardeada decadência burguesa, objetivando em última análise o status de novos messias da sociedade. Não, aqueles homens eram mais que massa de manobra.

Infelizmente hoje estamos enquanto sociedade acometidos pelo mau do “imbecil coletivo”, essa praga que em parte vem desses tempos de globalização, em parte das intenções escusas de quem nos informa do panorama geral (mídia) e seus afiliados. Tem-se a idéia de que é melhor salvar alguém do outro lado do mundo do que aquele que está perdido à sua porta e tudo só porque o jornal nacional falou que assim soa mais humano. Esse momento de mobilização das boas intenções por um país vizinho é também uma oportunidade de repensar a capacidade e necessidade de resolução das questões domésticas. Acaso é legítimo enviar milhões de dólares entre outros recursos a um país estrangeiro enquanto nós ainda que em menor escala perecemos das mesmas faltas? Os Estados Unidos estão lá, por uma dívida histórica e pela capacidade recursal que possuem, assim como os demais países europeus e os grandes asiáticos. Mas e o Brasil? Será que vale a pena deixar o sistema público de saúde em petição de miséria, igualmente a rede de ensino que nada oferece. Abandonar os miseráveis do nordeste e do Jequitinhonha à própria sorte, tudo em nome da vaidade, do reclame de uma liderança regional que não governa a si própria... Por fim, a respeito dessas intervenções e abstenções do governo faço minhas as palavras do mestre Darcy Ribeiro, um dos maiores humanistas que esse país já conheceu:

“(...) Quem mais representa como massa humana a Latinidade somos nós, os mestiços Brasileiros. Nesse sentido, nós somos a Nova Roma, uma Roma que o mundo vai ver espantado, no momento em que realizarmos nossa potencialidade — tantas! No momento em que resolvermos problemas elementares: que todo mundo coma todo dia, que toda criança tenha uma escola, que se façam aquelas reformas urbanas e rurais para que a terra seja acessível para quem trabalha, para que as cidades sejam a morada dos homens, cordial. Nesse dia, vai florescer no mundo uma civilização diferente, que nunca ninguém viu. (...) Ao lado dos eslavos, milhões de eslavos! Ao lado dos neo-britânicos , milhões! Ao lado dos chineses, milhões! Dos árabes, milhões! De outros tantos milhões, existirá essa face morena."
*Leandro M. de Oliveira

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O mito da moral superior

A propósito da idéia de moralidade do indivíduo, a que se considerar inexatidão de qualquer gradação de valor imposta a ela num panorama de abertura. A palavra “moral” cria uma série de agenciamentos, de maneira geral é possível conectá-la com a idéia de um conjunto de regras, de uma orientação religiosa, de uma forma de relacionar-se em sociedade e daí por diante. Assim é a moral um produto das condições geográficas, políticas, temporais, emocionais e espirituais de cada qual. Tomando-se essa afirmação como positiva, é possível analisar fenômenos históricos de uma outra perspectiva. Por exemplo, os Espanhóis que aportaram na América Central no início do século XVI foram profundamente imorais ao impor sua moral cristã aos povos Maias que nada tinham haver com a mesma, e esses por sua vez cometeram o mesmo crime quando anteriormente à conquista européia guerrearam abertamente com as tribos menores da região dizimando-as ou cooptando-as a seu serviço para a formação do império. Nos dois casos tudo pareceu lícito, tanto aos maias que pela glória de seu nome e da mãe Ixchel¹ subjugaram as pequenas tribos que nada entendiam de sua cultura superior, quanto aos espanhóis e antes ao sul os portugueses que em nome do bem (moral) cristã dizimaram povos inteiros por não serem compatíveis com suas aspirações ético-morais.

Dessa forma, poder-se-ia concluir que a moral é para o homem uma espécie de argumento criado por uma racionalidade não racional, ao passo que não é algo necessariamente descoberto do interior de cada um mas, quase sempre absorvido através das condições em que se vive ou que lhe são impostas por uma força externa. Esse argumento objetiva então, criar um conforto na consciência quando a práxis parece duvidosa, ou ainda nos conferir um sentido de super potência, uma sensação de estar acima de qualquer instância do entendimento humano, permitindo ao ser que se imponha da maneira que lhe convir sem respeitar qualquer espaço comum. Essa segunda faceta da moral que licencia o homem a agir (às vezes bestialmente) vem produzindo ao longo da história episódios impactantes na forma de se perceber o mundo, bons exemplos estão no recém findo século XX. Em amostra, quando se observa o fenômeno do nacional-socialismo alemão, não se vê em essência um grupo de monstros ou de qualquer outra sorte de criatura degenerada, o que se tem são homens comuns, que formam uma das nações mais culturalmente evoluídas do mundo que num determinado momento histórico sob a influência de acontecimentos e circunstâncias anteriores constroem e lapidam uma forma moral que lhes permite a tentativa da limpeza étnica, da invasão de outros países, da destruição de legados artísticos e sociais daqueles que não estão arrimados com a sua visão (moral) de mundo.

Os carrascos de Auschwitz só se tornaram carrascos porque foram derrotados pela história mas, se o vento tivesse lhes soprado a favor, hoje poderiam ser considerados heróis da raça humana e bustos de bronze poderiam ser erguidos em homenagem a tais feitos por todo o mundo. Talvez adaptando sua moral aos novos tempos, o vaticano poderia até canonizá-los como já fez algumas vezes com colonizadores das Américas e outros assassinos brutais. Nesse sentido, o crime nazista não foi a caçada de judeus, gays e ciganos, foi em última análise a inabilidade em fazer sua visão triunfar.

Assim, a moral prevalecente é antes uma afirmação política legada pelos vencedores da história, seja em um país, cidade, gueto ou nas nações unidas. É preciso abandonar o ideal imaculado de uma Aletheia² suprema, o bom e o justo que a nosso entendimento são dois dos responsáveis diretos pela produção da moral enquanto imperativo que orienta um determinado grupo, consubstanciam-se tão somente na legitimação de uma idéia qualquer, que na quase totalidade dos casos é alcançada pelo triunfo dessa idéia em seu meio. Por fim, não há moral fundamentalmente superior, todas são expressões da diversidade humana e merecem ser igualmente tomadas em conta. Budistas, católicos, protestantes, comunistas, homoafetivos, veteranos de guerra, hindus, vegetarianos, carnívoros... todos possuem uma raiz comum em sua percepção da vida, ao homem evoluído cabe adentrar esses meandros para extrair o melhor de cada um sem nunca encerrar o diálogo com todos. O que determina a abominação de determinada moral é tão somente o instinto de sobrevivência das demais.
*Leandro M. de Oliveira
1 Ixchel – A principal deusa do panteão Maia.

2 Aletheia – Do grego, verdade.

A produção de um ponto moral é uma afirmação política?

Se eu fundamentar minha moral em minha religião, vocês contestarão minha religião em nome de outra religião ou da irreligião (se forem agnósticos ou ateus), e minha moral não passará de uma moral como as outras, de uma moral entre outras, uma moral particular. Só poderei dizer: esta é minha moral, vocês têm a sua, e eu a minha.

Se eu fundamentar minha moral em minha filosofia, vocês contestarão minha filosofia em nome de outra filosofia ou da não filosofia, e minha moral não passará de uma moral entre outras, sem nenhum direito de se impor.

Se vocês contestarem a necessidade de fundamentar a moral, porque todos já dispõem de uma, acreditarei decerto que minha moral é a melhor, mas vocês acharão o mesmo da moral de vocês. Todas as morais terão igual direito de julgar o que é bom e o que não é. Então os assassinos de Buchenwald, Dachau, Auschwitz etc. estarão com a faca e o queijo na mão. Terem sido vencidos por uma força superior, mas da qual não será possível dizer que estava, mais do que qualquer outra, a serviço da verdade moral, terem sido vencidos, repito, será seu único erro.
Caso contrário, deve-se, em primeiro lugar, fundamentar a moral; em seguida, deve-se fundamentá-Ia não no particular — e uma religião ou uma filosofia sempre são particulares, porque existem outras –, mas no universal. O universal é o que deixa de lado todas as particularidades.

Deixar de lado o que nos separa ou nos distingue é o que é feito no diálogo, quando se escuta. Eu falo, você escuta; você fala, eu escuto. Operamos ambos a redução dialógica, colocando de lado nossas crenças, nossas opiniões, nossas tradições, nossas particularidades de todos os tipos para estarmos exclusivamente atentos ao verdadeiro e ao falso. Realizamos o universal vivo por nossa operação recíproca. O que acontece então? Cada qual pressupõe que o outro pode apreender a verdade que é a sua verdade, mesmo que para cada um deles esta seja apenas a do outro. Ou: cada qual, simplesmente para poder dirigir-se ao outro, falar-lhe, pressupõe o outro como capaz de verdade. Por esse motivo, cada qual pressupõe o outro como seu igual. A partir do momento em que os desiguais dos regimes baseados em privilégios se dirigissem um ao outro de uma maneira que não fosse para julgar, louvar ou criticar, ou comandar sem réplica, colocariam em perigo, pelo simples fato de serem dois seres humanos falando um com o outro apenas para dizer o verdadeiro e o falso, o próprio sistema que os estabelecia como desiguais. É por esse motivo que privilegiados e não privilegiados não dialogavam e muitas vezes não se falavam. Ora, dessa igualdade de todos os homens, implicada no simples fato de se poder travar uma conversa de fato, extrai-se toda a moral — aquela que, diferentemente das morais coletivas particulares, é a mesma para todos e contém todos os direitos e deveres universais do homem.

A moral baseia-se não nesta ou naquela crença, religião ou sistema, mas neste absoluto que é a relação do homem com o homem no diálogo. … A moral, não a ética. A "ética" de Espinosa supõe o sistema desse filósofo. É portanto uma ética particular, pois somos espinosistas ou não. O mesmo ocorre com a ética nietzschiana do super-homem, ou com a ética epicurista, ou com a estóica, ou com qualquer outra. A ética é a doutrina da sabedoria — mas, a cada vez, de uma sabedoria; e a sabedoria é a arte de viver a melhor vida possível. Como viver? Nosso juízo a esse respeito será este ou aquele conforme, por exemplo, concebamos a morte como um ponto final ou uma passagem. Acontece a mesma coisa com as filosofias e as religiões: elas são necessariamente múltiplas, e ninguém pode demonstrar a inexatidão das concepções que não partilha.

(...)

Criticou-se a filosofia de Heidegger por não conseguir fornecer nenhuma diretriz moral. Se nós mesmos, porém, não estivermos em condições de fundamentar uma moral universal, se permanecermos em uma moral de opinião — a nossa –, a ser confrontada com outras morais de opinião igualmente não fundamentadas, estaremos no mesmo ponto que ele: no niilismo moral; e um consenso qualquer sobre os "direitos do homem" nada muda com relação a isso. Quanto à ética, se a filosofia de Heidegger não propôs uma nova visão da vida, como explicar que tenha "repercutido profundamente no coração da juventude alemã”?! …
*Marcel Conche

domingo, 17 de janeiro de 2010

A subjetividade no juízo de valor

As questões sobre os valores - isto é, sobre o que é bom ou mau em si, independentemente dos seus efeitos estão fora do domínio da ciência, como os defensores da religião afirmam veementemente. Eu penso que nisto têm razão, mas retiro outra conclusão que eles não retiram - a de que as questões sobre "valores" estão completamente fora do domínio do conhecimento. Por outras palavras, quando afirmamos que isto ou aquilo tem "valor", estamos a exprimir as nossas emoções, e não a indicar algo que seria verdadeiro mesmo que os nossos sentimentos pessoais fossem diferentes. (...)

Qualquer tentativa de persuadir as pessoas de que algo é bom (ou mau) em si, e não apenas por causa dos seus efeitos, depende não de qualquer recurso a provas, mas da arte de suscitar sentimentos. O talento do pregador consiste em criar nos outros emoções semelhantes às suas - ou diferentes, se ele for hipócrita. Ao dizer isto não estou criticando o pregador, mas analisando o caráter essencial da sua atividade.

Quando um homem diz "Isto é bom em si" parece estar a exprimir uma proposição como se tivesse dito "Isto é um quadrado" ou "Isto é doce". Julgo que isto é um erro. Penso que aquilo que o homem quer realmente dizer é "Quero que toda a gente deseje isto", ou melhor, "Quem me dera que toda a gente desejasse isto". Se aquilo que ele diz for interpretado como uma proposição, esta é apenas sobre o seu desejo pessoal. Se for antes interpretado num sentido geral, nada afirma, exprimindo apenas um desejo. O desejo, enquanto acontecimento é pessoal mas, o que se deseja é universal. Penso que foi este curioso entrelaçamento entre o particular e o universal que provocou tanta confusão na Ética. (...)

Se esta análise está correta, a ética não contém quaisquer proposições, sejam elas verdadeiras ou falsas, consistindo em desejos gerais de uma certa espécie, nomeadamente naqueles que dizem respeito aos desejos da humanidade em geral - e dos deuses, dos anjos e dos demônios, se eles existirem. A ciência pode discutir as causas dos desejos e os meios para os realizar mas, não contém quaisquer frases genuinamente éticas, pois esta diz respeito ao que é verdadeiro ou falso.

A teoria que estou defendendo é uma forma daquelas que é conhecida pela doutrina da "subjetividade" dos valores. Esta doutrina consiste em sustentar que, se dois homens discordam quanto a valores, há uma diferença de gosto, mas não um desacordo quanto a qualquer gênero de verdade. Quando um homem diz "As ostras são boas" e outro diz "Eu acho que são más", reconhecemos que nada há para discutir. A teoria em questão sustenta que todas as divergências de valores são deste gênero, embora pensemos naturalmente que não o são quando estamos a lidar com questões que nos parecem mais importantes que as das ostras. A razão principal para adotar esta perspectiva é a completa impossibilidade de encontrar quaisquer argumentos que provem que isto ou aquilo tem valor intrínseco. Se estivéssemos de acordo a este respeito, poderíamos defender que conhecemos os valores por intuição. Não podemos provar a um daltônico que a relva é verde e não vermelha, mas há várias maneiras de lhe provar que ele não tem um poder de discriminação que a maior parte dos homens tem. No entanto, no caso dos valores não há qualquer maneira de fazer isso, e aí os desacordos são muito mais frequentes que no caso das cores. Como não se pode sequer imaginar uma maneira de resolver uma divergência a respeito de valores, temos de chegar à conclusão de que a divergência é apenas de gostos e não se dá ao nível de qualquer verdade objetiva.
*Bertrand Russell

Filosofar é estar sozinho

“Mas, tratando-se da natureza em seu conjunto, o irracional maravilhoso sempre estará presente, pois o infinito excede a razão. No seio da enormidade do tempo e do espaço, num ponto da natureza infinita, ou talvez infinitamente infinita, como quer Espinosa, o homem tem o sentimento do Englobante e do sem limites como de um mistério insondável, diante do qual a razão se detém.

Decerto a filosofia é obra da razão, do “bom senso”, como diz Descartes. Mas ao contrário da razão científica que passa ao lado do maravilhoso e do mistério sem o ver, a razão filosófica reconhece, identifica o irracional, o maravilhoso, o mistério. Seu fracasso, sua impotência em apreender os arcanos das coisas lhe revelam mistérios impossíveis de desvendar: o mistério da natureza insondável e infinita, o mistério da morte e do sentido, ou do não-sentido, do homem. Não há, aqui, “problemas” que o filósofo poderia resolver. A filosofia não resolve nenhum problema. Não existe, a bem da verdade, problema filosófico. O papel da filosofia é, para além do racional nos fazer tomar consciência do demônico que age na natureza, do mistério que envolve todas as coisas, e revelar o homem a si mesmo como enigma: enigma do qual resulta a liberdade radical da escolha filosófica. Pois a filosofia repousa não numa “revelação” qualquer, ou em alguma necessidade demonstrativa, mas na liberdade.


Abstração feita da experiência religiosa que, dizem, revela-lhe o sagrado e o coloca em relação com o Tu absoluto, o homem está sozinho. Não há ninguém para escutar suas questões e sua queixa. A “luz natural” serve principalmente para acentuar, de todos os lados, as sombras. Resta-lhe, tendo abandonado o sagrado no caminho, assumir sua solidão. Filosofar é isso.”

*Marcel Conche

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Teses Brasileiras - A RELIGIÃO É UMA CAUSA DE ATRASO ?

1. Aproveitando o mote que nos é dado com a discussão em torno de crença, ou descrença, em Deus, é inevitável associar a ideia de religião e atraso. Simplificadamente,lembramos o contraponto que Max Weber faz ao nosso catolicismo que vem do Vaticano nos moldes mais ortodoxos. A ele Weber contrapõe a religiosidade dos Estados Unidos, fundada no calvinismo, o que teria permitido àquela sociedade se desenvolver materialmente, enquanto cá pra baixo, do Mexico à Patagônia, amargamos a hipocrisia que fala em bobagens como camelo, fundo de agulha e rico entrar no reino de Deus. Claro, essa não pode ser a única razão de nosso atraso, mas é um dos caminhos a percorrer para entendê-lo.

2. Nossa história está coberta de exemplos de fanatismo religioso que explicam o nosso atraso e são decorrentes dele. Antes de Canudos, na última década do século 19, quando tivemos um modelo "avançado" de fanatismo - uma mistura de misticismo e revolta social - tivemos outros modelos, atrasados, no Rodeador, em Bonito, e Pedra Bonita, que hoje está em São José do Belmonte e, quando se deu a tragédia provocada pelo fanatismo, estava em Serra Talhada. São histórias que mostram grandes massas sendo manipuladas por vigaristas, em nome de Deus, de salvação eterna e, sobretudo, vitória material em vida.

3. Tudo isso está na ordem do dia, no século 21. Do ponto de vista emocional, o Brasil não passou do século 19. Pior, estamos regredindo, voltando à idade das trevas, quando toda miséria do mundo provinha do mau humor de um Deus vingativo, rancoroso, raivoso. Quem tiver estômago para aguentar alguns minutos em seis a dez canais de televisão que transmitem programas "religiosos" a toda hora do dia ou da noite, vai ver que continua havendo grandes massas de brasileiros que são manipuladas em nome da fé. Vai ver coisas assustadoras, como a negação de todos os avanços da Medicina em todo mundo, com um "pastor", ou algo que o valha, botando a mão na cabeça das pessoas, diante de câmeras de TV, e tirando paraplégicos das cadeiras de roda, fazendo cego ver, paralítico andar, curando de câncer a unha cravada. Sem nenhum protesto das entidades médicas do País, nem do Ministério Público, de ninguém. Um escândalo, protegido pelas leis brasileiras, leis "cristãs" que asseguram que os vigaristas fiquem cada vez mais ricos, sem pagar um tostão de imposto.

4. Um repórter do jornal Folha de São Paulo fez o levantamento de cada passo dado na fundação de uma dessas "igrejas" e conseguiu, ele próprio, fundar uma gastando menos de R$ 500 reais. Daí por diante, é ganhar dinheiro, muito dinheiro, isento de impostos. Produto absoluto da ignorância que alimenta as crenças e retardam nosso País. Principalmente porque essa gente está formando quadrilha legislativa dentro do Congresso. Em toda eleição elegem mais e mais deputados, que formam uma "bancada" voltada só para os interesses deles. Que futuro podemos esperar de um país que faz da crença uma mercadoria isenta de impostos?
*Jodeval Duarte

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Alienista

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissões, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor (...)

Mal dormia e mal comia; e ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista (...)

- A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárecere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, – a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, duas ou três de consideração – foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer germe de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública (...)

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental.
*Machado de Assis

A arte e o "sepultamento" de Deus

Pois Deus e o Belo mantém uma relação homotética (têm uma colocação semelhante) : a matéria de um é, frequentemente a mesma do outro.

Consistências idênticas, lógicas semelhantes, invisibilidades comparáveis, fazem habitualmente da Arte uma religião de substituição ou uma aliada da religião dado que o seu registro é radicalmente imanente.

Incriados, incorruptíveis, inacessíveis à razão pura, mesmo que esta seja bem conduzida, eternos, imortais, imutáveis, inacessíveis, inalteráveis, Belo e Deus conduzem conjuntamente os seus respectivos interesses.

Duchamp concretiza o crime Nietzscheniano depois da morte de Deus, que significa igualmente a morte do Bem, logo do Mal, mas também do Belo, Nietzsche sublinhou-o em certos fragmentos da "Vontade de Poder" acendemos a um mundo imanente, a um real do aqui e agora. O céu esvaziado torna possível a plenitude da terra. A partir deste ato fundador, Marcel Duchamp avança no sentido de uma desteologia da Arte em prol de uma rematerialização da sua aspiração.

A súbita e imediata vitalidade assim gerada permanece inigualável em toda a história da Arte.

No entanto, esta revolução não desemboca no niilismo, ausência de sentido ou deriva conceitual. Antes pelo contrário, pois doravante a famosa Fonte gera um Novo Paradigma que deixa para trás vinte séculos de estética.

A obra de Arte torna-se mais que nunca coisa mental, cessa de ser Bela e carrega desde então uma carga de sentido a decifrar. Com esta ruptura epistemológica potencia-se o aspecto inacabado de cada objeto.
*Michel Onfray

Mundo Tupinambá

A idéia de uma filial terrena do Éden bíblico, onde ninguém precisaria de ler leis escritas para ser feliz para sempre existia muito antes de 1500 (1502 era a data da carta de Américo Vespúcio ao banqueiro Lourenço de Medici em 1502, relatando a descoberta na baia de Guanabara, de um grupo de índios, os Tupinambás. Esta carta segundo teses citadas pelo autor serviria de inspiração à obra de Thomas More Utopia)O problema era que não se sabia onde ficava esse Éden e quais eram as horas de visita. Mas, com as grandes navegações, vieram os descobrimentos e os primeiros contatos com as populações dos trópicos. Finalmente se tinha um Éden para mostrar, melhor ainda que o do Gênesis - e, pelo que se depreendeu do relato de Vespúcio, ele ficava no Rio. Por quê?

Porque, aqui, em meio da natureza mais exuberante que se pudesse imaginar, vivia um povo doce e inocente, sem noção de governo, moeda, bens materiais ou propriedade privada, desprovido de cobiça, inveja e egoísmo, e alheio a qualquer noção de "bem" e de "mal". Sem culpa também, porque, no perene verão da Guanabara, os homens, mulheres, crianças e velhos circulavam nus dia e noite, sem que isso levantasse sobrolhos entre eles. E, ao contrário do que se poderia pensar, não se tratava de feras com o corpo coberto de pêlos e um terceiro olho na testa, mas de uma gente simpática, de grande beleza física e com uma saúde de fazer inveja a qualquer europeu. O "homem natural", filho direto de Adão, existia de verdade, e que isto servisse de lição para o homem europeu, subitamente esmagado pelo surgimento das grandes potências, pela emergência do capitalismo e pelo individualismo que começava a grassar - eis o recado da Utopia de sir Thomas More.
Tudo isso era confirmado pelos piratas franceses, normandos e bretões que começaram a aportar na Guanabara em 1504, apenas dois anos depois de Vespúcio, e que voltavam para contar a história. Diziam eles que, ao se aproximar do Rio, assim que as suas naus despontavam na barra, eram cercados pelas canoas dos tupinambás e recebidos com tratamento VIP. Os indígenas subiam a bordo, faziam-lhes festinhas, ofereciam-lhes frutas e presentes e ainda lhes entregavam as mulheres. (...)

Surpreendentemente, uma outra especialidade dos Tupinambás, observada pelos visitantes, não conseguiu diminuir sua cotação em sociedade: o canibalismo. Talvez porque o seu hábito de comer carne humana fosse movido apenas por vingança (nada a ver com escassez de alimento na praça) e obedecesse a rígidas regras de etiqueta. Primeiro só comiam os seus prisioneiros de guerra e, mesmo assim, só os fortes e corajosos - de preferência os temiminós, uma tribo com quem mantinham uma guerra quase esportiva havia quinhentos anos. Segundo, nada era feito às pressas: o prisioneiro tinha uma série de direitos e deveres antes de morrer.
*Ruy Castro

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Confusões do fim

"Óbito do Autor"

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!

(...)

"O delírio"

Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida! Para devorar e seres devorado depois! Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando me?
Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, flagelos e delícias, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia se, como uma ilusão.
*Machado de Assis

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Moral como decadência; Institucionalismo como vingança dos fracos

(...) Não há absolutamente atos “desinteressados”. Os atos nos quais o indivíduo se torna infiel aos seus próprios instintos e escolhe em seu detrimento, são sinais de decadência (uma quantidade de “santos” os mais célebres estão decididos em ser decadentes, simplesmente devido a sua falta de “egoísmo”—). Os atos de amor, de “heroísmo” são de tal forma pouco “altruístas”, que são precisamente a prova dum “ego” vigoroso e abundante: os “pobres” não são livres para abandonar algo de si mesmos... estão privados também da grande intrepidez, da alegria da aventura que participa do “heroísmo”. Não é sacrificar-se que é o “fim”, mas desabrochar fins onde as conseqüências não nos inquietam, devido a confiança que temos em nós mesmos, fins que vos são indiferentes...

Psicologia dos atos que chamamos não-egoístas. — Na realidade são regulados estritamente conforme o instinto de conservação. É o caso contrário para atos que chamamos egoístas: ali o instinto diretor falta precisamente, — a consciência profunda do que é útil e prejudicial. Toda força, toda saúde, toda vitalidade, pelo fato de que aumentam a tensão, visam o instinto soberano do eu. Todo afrouxamento é decadência.

Segundo sua origem, a moral é a soma das condições de existência de uma espécie de homens pobre e malnascida. Esta pode ser o “grande número”: daí seu perigo. Nas suas aplicações é o principal meio do parasitismo dos sacerdotes, em sua luta contra os fortes, contra as afirmações da vida. — Os sacerdotes ganham o “grande número” (os humildes, os que sofrem, em todas as classes — as vítimas de toda espécie —. Uma espécie de insurreição geral contra o pequeno número dos seres bem-nascidos... (— crítica dos “reformadores”—). Em suas conseqüências, chega a falsear radicalmente, a aniquilar até as camadas de exceção. Estas terminam, para apenas poderem se sustentar em não serem verídicas, em nenhum ponto, quanto a si mesmas — a completa corrupção psicológica com o que daí se segue... (Crítica dos homens “bons”—).
*Nietzsche

É encargo da arte criar uma realidade paralela?

Que, para o artista, o talento máximo seja imitar a realidade até se confundir com ela é, no entanto, um lugar comum do juízo estético que, mesmo entre nós até a época recente, prevaleceu durante muito tempo. Para glorificarem os seus pintores, os gregos reuniam pequenas histórias: uvas pintadas que os pássaros vinham debicar, imagens de cavalos que os seus congêneres pensavam estar vivos, cortina pintada que um rival pedia ao autor que levantasse para poder contemplar o quadro dissimulado por detrás. A lenda atribui a Giotto e a Rembrant este mesmo tipo de proeza. Sobre os seus pintores famosos, a China e o Japão contam histórias muito semelhantes: cavalos pintados que, à noite, deixam o quadro para irem pastar, dragão partindo a voar pelos ares quando o artista acrescenta o último pormenor que faltava.

Quando os índios das pradarias da América do Norte viram, pela primeira vez, um pintor branco a trabalhar, ficaram confusos. Catlin tinha retratado um deles de perfil; um outro índio que não simpatizava com o modelo, gritou que o quadro provava que aquele era apenas uma metade de homem. Seguiu-se uma desordem mortal.

É a imitação do real que Diderot começa por admirar em Chardin: "Este vaso é de porcelana, estas azeitonas ficam de fato separadas do olhar pela água em que nadam (...) estes biscoitos é só agarrá-los e comê-los."

(...)

A sabedoria das nações atesta que Pascal levanta um verdadeiro problema ao exclamar: "Que vaidade a da pintura, que suscita a admiração pela semelhança com coisas cujos originais não são admirados." O romantismo para quem a Arte não imita a Natureza mas, exprime o que o artista põe de si próprio nos quadros, não escapa ao problema; o mesmo acontecendo à crítica contemporânea que faz do quadro um sistema de signos. Pois o trompe - l'oil¹ exerceu, e continua a exercer, o seu império sobre a pintura. Refaz o visível quando pensamos que ela se libertou definitivamente dele.
*Claude Lévi - Strauss
**1 Trompe-l'oeil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão óptica que mostre objetos ou formas que não existem realmente. Provém de uma expressão em língua francesa que significa engana o olho e é usada principalmente em pintura ou arquitetura.