quinta-feira, 28 de outubro de 2010

La Mensaje

Hay mensajes cuyo destino es la pérdida,
palabras anteriores o posteriores a su destinatario,
imágenes que saltan del otro lado de la visión,
signos que apuntan más arriba
o más abajo de su blanco,
señales sin código,
mensajes envueltos por otros mensajes,
gestos que chocan contra la pared,
un perfume que retrocede
sin volver a encontrar su origen,
una música que se vuelca sobre sí misma
como un caracol definitivamente abandonado.

Pero toda pérdida es el pretexto de un hallazgo.
Los mensajes perdidos
inventan siempre a quien debe encontrarlos.
*Roberto Juarroz

San Marco

A sabedoria é para os barcos
sob as pontes da noite,
a alma, o oiro.
Aqui dormiria, à distância singular
de um beijo, um lençol de água,
um travesseiro de cuidada pedra.
Outras coisas da infância, mas devagar,
outros corpos a penumbra percorrendo,
a poeira da luz espiando os sapatos,
a navalha chamuscada.


Também eu herdei a perigosa ilusão
da bicicleta, um silêncio
danado por mulheres,
pelo ardor cristalino do álcool,
no limbo mais rasgado do mundo;
o segredo tão natural da pintura
na profecia azul dos mosaicos,
no carvão amargo da noite;
certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:
sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,
caixinhas de laque, sandálias
gastando, dia após dia, a mágoa.

Que posso fazer pelas pedras desta praça senão
cobri-las de aves, trapos, moedas
e pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,
os óleos santos, o sândalo,
o bolor intenso das paredes?

Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidro
de oficiante fogo, como em Murano a família Barelli?

Que poderei comprar para o vazio
deste anoitecer? um pouco do meu sol?
daquele mar, um punhado de areia?
*Jorge Velhote

Bento de Espinoza - Parte 2

(...) Foi a partir daí que tentei averiguar por que motivo se designaram os hebreus por eleitos de Deus. E como visse que isto signifique apenas que Deus escolheu para eles uma certa região do mundo onde pudessem viver em segurança e comodidade, conclui que as leis reveladas por Deus a Moisés não eram senão o direito particular do Estado hebraico e, por conseguinte, ninguém, a não ser os judeus, lhe estava sujeito. E mesmo estes, só enquanto durasse o referido Estado.

Depois, para saber se podia concluir da Escritura que o entendimento humano está por natureza corrompido, fui investigar a religião católica, ou seja, a lei divina revelada a todo gênero humano pelos profetas e pelos apóstolos, seria diferente daquela que a luz natural também ensina: e em seguida, se os milagres acontecem ao arrepio da ordem natural e provam a existência e a providência de Deus de maneira mais certa e mais clara do que as coisas que entendemos clara e distintamente pelas suas causas primeiras. Mas como não encontrasse, naquilo que a Escritura expressamente ensina nada que não tivesse de acordo com o entendimento ou lhe repugnasse, e como, por outro lado, visse que os profetas só ensinavam coisas extremamente simples e acessíveis a todos, além de recorrerem ao estilo e à argumentação que melhor pudessem incitar os ânimos da multidão à devoção para com Deus, fiquei completamente persuadido de que a Escritura deixa a razão em absoluta liberdade e não tem nada em comum com Filosofia, assentando, pelo contrário, cada uma delas nas suas próprias bases.

(...)

Passo em seguida a analisar os preconceitos que surgem pelo fato de o vulgo (sujeito à superstição e preferindo reliquías do passado à própria eternidade) adorar os livros da Escritura em vez do próprio Verbo de Deus. Depois, mostro que o Verbo de Deus revelado não consiste em determinado número de livros, mas sim num conceito simples da mente divina revelada aos profetas, a saber, obedecer inteiramente a Deus, praticando a justiça e a caridade. E provo que esta doutrina é ensinada na Escritura de maneira adequada ao poder da comprensão e às opiniões daqueles a quem os profetas e os apóstolos costumavam pregar a palavra de Deus, de modo a que os homens a pudessem aceitar integralmente e sem qualquer repugnância.

Uma vez assim apresentados os fundamentos da fé, concluo, finalmente, que o conhecimento revelado não tem outra finalidade senão a obediência e que, tanto pela finalidade como pelos fundamentos e pelo método, ele é completamente diferente do conhecimento natural, não tendo nada em comum com este, pois cada ocupa a sua área sem que o outro se insurja e sem que nenhum tenha de considerar subordinado. Como, além, disso, os homens são por temperamento bastante diferentes, e como uns preferem esta, outros aquela opinião, inspirando a uns sentimentos religiosos o que a outros só provoca escárnio, concluo ser necessário deixar a cada um a liberdade de julgar e a possibilidade de interpretar os fundamentos da fé segundo a sua maneira de ser, e não se ajuizar de ninguém, a não ser pelas suas ações, conforme piedosas ou impías. Só assim poderão todos obedecer a Deus de livre e inteira vontade e dar valor apenas à justiça e a caridade.

Após evidenciar a liberdade que a lei divina revelada concede a cada um, passo a outro aspecto da questão, o qual consiste em mostrar que essa mesma liberdade pode e deve ser concedida, sem que isso lese a paz social e o direito das autoridades soberanas, e que, pelo contrário, não pode ser suprimida sem graves riscos para a paz e em detrimento de todo o estado. Para demonstrar esse ponto, começo, porém, pelo direito natural do indivíduo, que vai até onde for o seu desejo e o seu poder, sem que alguém esteja, com base em tal direito, obrigado a viver a mando de outrem e sendo, em vez disso, cada um o responsável pela sua própria liberdade. A seguir, mostro que, em realidade, ninguém renuncia a esse direito, a não ser que transfira para outrem o poder de se defender, e que, nesse caso, aquele para quem todos transferiram o direito de viver à sua vontade e, ao mesmo tempo, o poder de se defenderem possui necessariamente um direito natural absoluto. Demonstro então que os que detém o poder supremo a tudo o que estiver em seu poder e são os únicos responsáveis pelo direito e pela liberdade, ao passo que os outros devem fazer tudo de acordo apenas com o que eles determinam.

Todavia, como ninguém pode privar-se a um ponto tal do seu poder de se defender que deixasse de ser um homem, resulta daí que ninguém pode ser absolutamente privado do seu direito natural e que os súditos mantém, quase como um direito da natureza, alguns privilégios que lhes não pode ser recusado sem grave perigo para o Estado e que, ou lhes são tacitamente concedidos, ou eles estipulam expressamente com aqueles que detém o poder. Posto isto, passo ao estado hebraico, que descrevo em pormenor, para explicar por que razão e por ordem de quem a Religião passou a ter força de lei, bem como outras coisas, que, de caminho me pareciam dignas de registro.

(...)

Tinha ainda mais coisas a dizer, mas não quero que este prefácio se alongue ao ponto de parecer um volume, sobretudo porque julgo que o essencial é soberanamente conhecido dos filósofos. Quanto aos outros, não tento sequer recomedar-lhes este tratado, pois nada me leva a esperar que ele, por qualquer razão, lhes possa agradar. Sei, efetivamente, quão arriscado estão na mente os preconceitos a que se adere como se de coisa piedosa se tratasse; sei, além disso, que é impossível libertar o vulgo da superstição e do medo: e sei, finalmente, que a constância no comum dos homens é obstinação e que, em vez de ser a razão que os guia, é a tendência para louvar ou vituperar que os arrebata.

*Baruch de Espinoza

Há sol na rua

Há sol na rua
Gosto do sol mas não gosto da rua
Então fico em casa
À espera que o mundo venha

Com as suas torres douradas
E as suas cascatas brancas
Com suas vozes de lágrimas
E as canções das pessoas que são alegres
Ou são pagas para cantar

E à noite chega um momento
Em que a rua se transforma noutra coisa
E desaparece sob a plumagem
Da noite cheia de talvez
E dos sonhos dos que estão mortos

Então saio para a rua
Ela estende-se até à madrugada
Um fumo espraia-se muito perto
E eu ando no meio da água seca

Da água áspera da noite fresca
O sol voltará em breve.
*Boris Vian

Descartes o homem que duvidava - Parte 2

(...) Para piorar ainda mais as coisas, na afirmação reflexiva da realidade da dúvida estão pressupostas duas crenças: a crença na continuidade da consciência entre a dúvida e a reflexão, e o conhecimento da distinção entre verdade e falsidade.

1º Aquele que reflete sobre a dúvida sabe que ainda é “o mesmo” que teve a dúvida; e se o ato de duvidar é formalmente distinto do ato da reflexão, o eu consciente, ao refletir, sabe que é sujeito de dois atos distintos — distintos logicamente e distintos no tempo —, donde se conclui que é esse eu é logicamente e temporalmente anterior aos dois atos e independente deles: não é o ato da dúvida que funda a certeza do eu, mas, ao contrário, a certeza da continuidade do eu é a garantia única de que a dúvida foi realmente vivenciada. Pois a dúvida, se não recebesse da reflexão posterior o nome que lhe confere a aparente unidade de um estado, acabaria por se reduzir a mera sucessão de negações e afirmações irrelacionadas, sucessivas alucinações de um sujeito esquizofrenicamente plural, destituído do império de si e dissolvido no fluxo atomístico dos seus estados. Para poder ser objeto de reflexão, a dúvida recebe a artificial unidade de um nome; e se logo em seguida a mente se esquece de que essa unidade é um mero ente de razão e a toma como unidade substancial, então se trata de um desses casos de auto-hipnose reflexiva em que o nome produz magicamente, a posteriori, a realidade do seu objeto.

2º Sendo formalmente distintos, os dois atos são distintos também empiricamente, isto é, no tempo: primeiro duvido (isto é, vou e venho entre sucessivas afirmações e negações), depois reflito que duvidei (isto é, unifico sob o nome “dúvida” essa multiplicidade de vivências antagônicas). Mas a unidade do eu, que está subentendida nessa reflexão mesma, e portanto na certeza da dúvida, é aquela continuidade no tempo, que se denomina memória e recordação: a memória, estando pressuposta na reflexão, é lógica e temporalmente anterior a ela: longe de poder fundar a nossa confiança na memória, é a dúvida que depende dela para ter um fundamento lógico e para tornar-se possível no campo dos fatos psicológicos.
Mas, se a dúvida depende da garantia que lhe é dada pelo eu e pela memória, então ela não tem nenhum poder fundante. É coisa fundada, é certeza secundária e derivada, é obra de um agente mais profundo e mais inquestionável.

3º Porém, a dúvida subentende algo mais. Como é possível duvidar? A possibilidade da dúvida repousa inteiramente no nosso poder de conceber que as coisas sejam de um outro modo que não aquele com que se nos apresentam num dado momento. A dúvida assenta-se numa suposição; ela requer e subentende o poder de supor. Ora, tendo as coisas se apresentado ao sujeito de um certo modo, e não de outro, este outro e suposto modo só pode apresentar-se à consciência como obra do sujeito mesmo, como produto de imaginação ou conjetura. Para saber que duvida, é necessário então que o sujeito saiba que supôs; que se reconheça portanto como sujeito não apenas de dois atos, como acabamos de ver, mas de três: o ato de duvidar, o ato de refletir a dúvida e, antes de ambos, o ato de supor ou imaginar. A imaginação é, somando-se à continuidade do eu e à memória, um terceiro requisito e um terceiro fundamento da possibilidade da dúvida.

4º Mas, se o sujeito não percebesse nenhuma diferença entre as coisas tal como se lhe apresentam e as coisas tal como as supõe, não poderia tomar consciência de que supôs, pois não haveria para ele diferença entre supor e perceber. Eis, portanto, que a consciência dessa diferença é, ela também, um requisito e um fundamento da possibilidade da dúvida. Para duvidar, necessito distinguir, na representação, o dado e o construído, o recebido e o inventado, aquilo que me vem pronto e aquilo que faço e proponho. Logo, está aí pressuposta a consciência da diferença entre o objetivo e o subjetivo e, portanto, a crença na objetividade do objetivo e na subjetividade do subjetivo. Mais ainda: se o sujeito confundisse esses dois domínios, acreditando que supôs o percebido e percebeu o suposto, teria perdido a continuidade da consciência e da memória, que é, como vimos, condição de possibilidade da dúvida. Logo, a dúvida sobre a realidade do mundo não pode se apresentar como simples escolha entre duas possibilidades de valor igual e idêntica origem, mas sempre como escolha entre um dado e um suposto, entre o recebido e o inventado.

5º Não é possível portanto duvidar da realidade do mundo sem saber de antemão que esta dúvida, e a suposição que a fundamenta, são puras invenções do próprio sujeito, e que esta invenção é formal e temporalmente distinta do ato de perceber, bem como do conteúdo percebido. A dúvida é uma suposição de que um mundo inventado é mais válido que o mundo recebido, suposição que se funda por sua vez na consciência de inventar, de supor e de fingir. A dúvida quanto à realidade do mundo é sempre e necessariamente um fingimento, e quanto mais o fingidor se esforce para levar esta dúvida a sério, para torná-la cada vez mais verossímil, tanto mais o brilho mesmo da performance atestará a diferença entre o verossímil e o verdadeiro, assim como, no teatro, concedemos nossos aplausos ao ator precisamente porque sabemos que ele não é o personagem.

6º Mas esta consciência de fingir seria impossível se não se fundasse, a seu turno, na consciência da diferença entre pensar e ser, imaginar e agir. Pois, subentendida a consciência da diferença entre supor e perceber, paralelamente à consciência que o eu tem de suas próprias ações, não haveria como negar que o eu pensante tem consciência da diferença entre ação suposta e ação realizada, de vez que a ação realizada não é somente pensada, mas percebida fisicamente, exatamente como os seres do mundo sensível. Não posso portanto colocar em dúvida os seres do mundo sensível sem no mesmo ato colocar também em dúvida os atos físicos que me vejo realizando, como por exemplo os movimentos de minhas mãos e pernas. Mas, ao mesmo tempo, não os posso colocar em dúvida sem questionar, no mesmo instante, a continuidade e unidade do eu, a qual no entanto está pressuposta, como vimos, no ato mesmo de duvidar do que quer que seja. Eis aí outro motivo pelo qual a dúvida, sendo dúbia por sua natureza mesma, não poderia instalar-se senão pondo-se também a si mesma em dúvida, isto é, sabendo-se fundada numa suposição e num fingimento voluntário. Eis também por que a dúvida é tão rara e dificultosa: ela implica um movimento que se desmente a si mesmo, que coloca em questão as condições mesmas que o possibilitam.

7º Finalmente, a dúvida só é possível quando se sabe que algo, seja no percebido, seja no suposto, é insatisfatório, que não atende a um requisito fundamental de veracidade. Mas como poderia o sujeito dubitante exigir veracidade de suas suposições ou percepções se não tivesse nenhuma idéia a respeito da veracidade? Esta exigência seria inconcebível sem uma idéia da verdade, ainda que como mero objeto imaginário de desejo. O desejo de fundamento pressupõe no sujeito ao menos a possibilidade de imaginar que seus conhecimentos possam ser mais seguros do que realmente ele sente que o são num dado momento, ou seja, a verdade como ideal e a opção pela verdade. Mas, ao mesmo tempo, vimos que o sujeito não conhecia esta verdade somente como ideal abstrato, mas já tinha idéia de pelo menos uma diferença efetiva entre verdade e falsidade: a diferença entre o dado e o suposto, acompanhada da consciência verdadeira de que o suposto não foi dado, nem dado o suposto.

A dúvida ergue-se, assim, sobre todo um edifício de dados e pressupostos: longe de ser logicamente primeira, ela é um produto requintado e elaboradíssimo de uma máquina de saber. Longe de ter um poder fundante, ela não é senão uma manifestação mais ou menos acidental e secundária de um sistema de certezas.
*Olavo de Carvalho

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

La Ballade du Désespéré

Qui frappe à ma porte à cette heure?
- Ouvre, c'est moi. - Quel est ton nom?
On n'entre pas dans ma demeure
A minuit ainsi, sans façon.

- Ouvre. - Ton nom ? - La neige tombe,
Ouvre. - Ton nom? -Vite, ouvre-moi!
- Quel est ton nom ? - Ah ! dans sa tombe
Un cadavre n'a pas plus froid.

J'ai marché toute la journée
De l'ouest à l'est, du sud au nord.
A l'angle de ta cheminée
Laisse-moi m'asseoir. - Pas encor!

Quel est ton nom? - Je suis la gloire,
Je mène à l'immortalité.
- Passe, fantôme dérisoire !
- Donne-moi l'hospitalité.

Je suis l'amour et la jeunesse,
Ces deux belles moitiés de Dieu.
-Passe ton chemin : ma maîtresse
Depuis longtemps m'a dit adieu.

- Je suis l'art et la poésie:
On me proscrit. Vite, ouvre. - Non.
Je ne sais plus chanter ma mie,
Je ne sais même plus son nom.

- Ouvre-moi ! je suis la richesse,
Et j'ai de l'or, de l'or toujours.
Je puis te rendre ta maîtresse.
- Peux-tu me rendre nos amours?

- Ouvre-moi : je suis la puissance,
J'ai la pourpre. - Vœux superflus !
Peux-tu me rendre l'existence
De ceux qui ne reviendront plus?

-Si tu ne veux ouvrir ta porte
Qu'au voyageur qui dit son nom,
Je suis la mort : ouvre, j'apporte
Pour tous les maux la guérison.

Tu peux entendre à ma ceinture
Sonner les clés des noirs caveaux ;
J'abriterai ta sépulture
De l'insulte des animaux.

--Entre chez moi, maigre étrangère,
Et pardonne à ma pauvreté.
C'est le foyer de la misère
Qui t'offre l'hospitalité.

Entre : je suis las de la vie,
Qui pour moi n'a plus d'avenir.
J'avais depuis longtemps l'envie,
Non le courage de mourir.

Entre sous mon toit, bois et mange,
Dors, et quand tu t'éveilleras,
Pour payer ton écot, cher ange,
Dans tes bras tu m'emporteras.

Je t'attendais ; je veux te suivre.
Où tu m'emmèneras, j'irai ;
Mais laisse mon pauvre chien vivre,
Pour que je puisse être pleuré!

(Tradução)

- Quem bate à porta a tais horas?
- Abre, sou eu. Quem tu és?
Não se entra na minha casa
Tão tarde assim, bem o vês.

- Abre. - Teu nome? - Há geada,
Abre. Teu nome? - És tardio!
Qual é teu nome? - Ai, na cova
Um morto não tem mais frio.

Eu caminhei todo o dia
Do sul ao setentrião,
Ao pé da tua lareira
Quero sentar-me - Inda não!

Diz teu nome... - Eu sou a glória
E aspiro à posteridade...
- Passa fantasma irrisório...
- Ó dá-me hospitalidade!

Eu sou o amor e a esperança
As duas porções de Deus...
- Segue a estrada... A minha amante
Há muito me disse adeus!

- Eu sou a arte e a poesia,
Proscreveram-me... Abre! - Não!
Já não canto minha amante.
Nem sei que nome lhe dão!...

- Abre, que eu sou a riqueza,
E trago do ouro o fulgor,
- Posso dar-te a tua amante...
- Podes dar-me o seu amor?

- Sou o poder, tenho a púrpura.
Abre a porta! -- Anelo vão!
Podes trazer-me a existência
Daqueles que já não sâo?!

- Se tu não abres teus lares
Senão a quem diz seu nome
Sou a morte! trago alívio
P'ra cada dor que consome!

Podes ver, trago na cinta
Ruidosas chaves fatais...
Abrigarei teu sepulcro
Do insulto dos animais.

- Entra, estrangeira funérea...
Perdoa à mendicidade,
Porque é no lar da miséria
Que tens hospitalidade.

Entra; cansei-me da vida
Que nada tem que me dar...
Há muito eu tinha desejos
(Não força) de me matar!

Entra no lar, bebe e come,
Dorme, e quando despertares,
Para pagar tua conta
Hás de levar-me aos teus lares.

Eu te esperava, eu te sigo...
Vamos... arrasta-me... assim...
Mas deixa o meu cão na terra
P'ra eu ter quem chore por mim!
*Henry Murger
**Tradução Castro Alves

Di Profundis

Vai-se por mim à cidade dolente,
vai-se por mim à sempiterna dor,
vai-se por mim entre a perdida gente.

Moveu justiça o meu alto feitor,
fez-me a divina potestade, mais
o supremo saber e o primo amor.

Antes de mim não foi criado mais
nada senão eterno, e eterna eu duro.
Deixai toda a esperança, ó vós que entrais.
*Dante Alighieri

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Imperador Filósofo

"Corpo, alma, inteligência. Pertencem ao corpo as sensações; à alma os instintos; à inteligência os princípios. Receber impressões do que se pode ver, disso até as bestiagas são capazes. Ser zarandeado como marionetas pelos instintos, são disso muito capazes as bestas-feras, os andróginos, os Fálaris e os Neros.

Tomar por guia a inteligência rumo ao que se apresenta como dever nosso também disso são capazes os que não respeitam os deuses¹, traem a pátria, cometem todas as torpezas à porta fechada. Se tudo o mais é comum aos seres de que falamos, privilégio do homem de bem é fazer acolhimento com alegria e amor ao que lhe sucede e vem entretecido na trama da sua vida; é de não deixar imiscuir-se nem perturbar no formigueiro das idéias o gênio que estabeleceu morada no seu íntimo; velar porque ele se mantenha sem agravo, obedeça, como é bem, a Deus, sem soprar palavra contrária à verdade, nem perpetrar ação contra a justiça.

Mesmo que os homens todos recusem acreditar que essa vida é reta, modesta e bem humorada, ele não está atrelado a ninguém e não se desvia uma polegada do caminho que leva ao termo da vida, termo a que nos cumpre chegar puros, calmos, livres de entraves e numa perfeita harmonia com o destino."


(Marco Aurélio)

Marco Aurélio, imperador de Roma, foi adepto e talvez o maior nome romano entre aqueles que la seguiram a doutrina estóica. De uma maneira geral, o estoicismo é uma corrente filosófica fundada por Zenão de Cítio em Atenas e que afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino. A alma está identificada com este princípio divino, como parte de um todo ao qual pertence. Este lógos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um kosmos (termo que em grego significa "harmonia").

O estóicos propunham viver de acordo com a lei racional da natureza, aconselhando a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio obedece à lei natural reconhecendo-se como uma peça na grande ordem e propósito do universo, devendo assim manter a serenidade perante as tragédias e coisas boas.

A partir disso surgem duas conseqüências éticas: deve-se (viver conforme a natureza): sendo a natureza essencialmente o logos, essa máxima é prescrição para se viver de acordo com a razão.

Sendo a razão aquilo por meio do que o homem torna-se livre e feliz, o homem sábio não apreende o seu verdadeiro bem nos objetos externos, mas bem usando estes objetos através de uma sabedoria pela qual não se deixa escravizar pelas paixões e pelas coisas externas.


Estóico em última instância é aquele que revela fortaleza de ânimo e austeridade. Impassível; imperturbável; insensível. É o homem que se desapega da vida externa pra vivê-la numa dimensão mais profunda a partir do verdadeiro ser que fala pela razão.
*Marco Aurélio
**1 – entenda-se “Deuses” por faculdades da razão.

Fundação da Ilha

I

Um barão assinalado
sem brasão, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que é de aquém e de além-mar
a ilha que busca e amor que ama.

Nobre apenas de memórias,
vai lembrando de seus dias,
dias que são as histórias,
histórias que são porfias
de passados e futuros,
naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.

Alegrias descobertas
ou mesmo achadas, lá vão
a todas as naus alertas
de vaia mastreação,
mastros que apóiam caminhos
a países de outros vinhos.
Está é a ébria embarcação.

Barão ébrio, mas barão,
de manchas condecorado;
entre o mar, o céu e o chão
fala sem ser escutado
a peixes, homens e aves,
bocas e bicos, com chaves,
e ele sem chaves na mão.

*Jorge de Lima

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Descartes o homem que duvidava

Descartes assegura-nos que a seqüência das Meditações que o leva do questionamento do mundo exterior à descoberta do cogito não é apenas um modelo lógico, uma articulação hipotética de pensamentos pensáveis, mas uma experiência vivida, uma narrativa de pensamentos pensados. Mas terá sido boa a sua auto-observação? Podemos dar por suposta a fidedignidade do seu relato? Mais ainda, podemos dar por suposta a universalidade paradigmática dessa seqüência de pensamentos, admitindo que se dará de modo igual ou semelhante, com semelhantes ou iguais resultados, em todo homem que se disponha a reexaminar desde os fundamentos o edifício de suas crenças? Será possível a um homem realizar experiência similar, ou, ao contrário, foi Descartes quem experimentou de fato coisa totalmente outra, deixando-se enganar e tomando por descrição o que é pura invenção?

Que é possível duvidar das nossas sensações, das nossas imaginações e dos nossos pensamentos, é coisa que qualquer um de nós pode testemunhar. Que é possível, a rigor, colocar todo o orbe das nossas representações entre parênteses, reduzindo o “mundo” a uma hipótese evanescente, é também certo.

Mas, após ter feito essas operações, Descartes assegura-nos ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um pensamento, e, no instante em que a penso, não posso duvidar de que a penso. A autoconfiança na solidez metafísica do ego pensante surge como poderosa compensação psicológica para a perda da confiança na realidade do “mundo”.
Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que antecedem o estado de dúvida, Descartes é estranhamente evasivo quanto ao estado de dúvida mesmo. Na verdade, ele não o descreve: afirma-o, apenas, e, saltando imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe.

Façamos nós o que não fez Descartes. Tentemos refrear o automatismo do impulso conseqüencialista, e detenhamo-nos por um momento na descrição do estado de dúvida. Em que consiste esse estado?

Em primeiro lugar, não é um estado — uma posição estática em que um homem possa permanecer inalteradamente, como permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. É uma alternância entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-se num dos termos da alternativa sem que o outro venha disputar-lhe a primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita de sua coexistência antagônica e de nada mais. Mas esse antagonismo não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde possa repousar e “estar”. Só que, como cada um dos termos é a negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, por um instante, negar o outro: e, precisamente nesse instante, não está em dúvida — está afirmando ou negando, afirmando uma coisa e negando a outra, ainda que não consiga perseverar na afirmação ou na negação sem que lhe ocorram mil e uma razões para abandoná-la. E, no instante em que nega ou afirma, a dúvida suprime-se a si mesma como dúvida, e luta para se estabelecer como afirmação ou negação; mas fracassa, e é só neste fracasso que consiste precisamente, a dúvida. Segue-se a conclusão fatal: é impossível uma dúvida que não se ponha em dúvida a si mesma, uma dúvida que, suspendendo a alternância, se imponha como “estado” e permaneça. Ao tomar a dúvida como um “estado”, omitindo que se trata de uma alternância entre dois momentos antagônicos, Descartes a coisifica e a toma como uma certeza: “Não posso duvidar de que duvido no instante em que duvido”, frase que Descartes toma como expressão da mais patente obviedade, manifesta no entanto um contra-senso lógico e uma impossibilidade psicológica. Mais certo é: ao duvidar, ponho tudo em dúvida, inclusive a dúvida mesma. A dúvida não é um estado: é uma sucessão e coexistência de estados antagônicos, é um não poder estar.

O que leva Descartes ao erro é o fato de que confunde a dúvida com a negação, mais propriamente com a negação hipotética. Posso efetivamente produzir uma negação hipotética e repeti-la indefinidamente. Posso mesmo ampliá-la — hipoteticamente, é claro — até que abranja a totalidade do que julgo saber. Mas não posso “duvidar” do meu saber sem ao mesmo tempo afirmá-lo reiteradamente, na medida em que só assim poderei intercalar às suas afirmações sucessivas as sucessivas negações, e a estas as afirmações, cujo círculo vicioso constitui a dúvida.
Colocado nesses termos, o cogito cartesiano se reduz apenas a uma nova e aliás bastante nebulosa enunciação do antigo argumento de Sócrates contra o céptico, de que não se pode negar sem afirmar a negação, sem afirmar portanto alguma coisa. Mas, vistas as coisas assim, a bem pouco se reduz a descoberta cartesiana: longe de ter instaurado um novo fundamento, crítico ou negativo, para o mundo do saber, ela não fez senão demonstrar novamente, pelas vias tortuosas de uma falsa autodescrição psicológica, o primado lógico da afirmação sobre a negação. Só que o reconhecimento deste primado é, no mesmo ato, a negação da dúvida como ato fundante. A descoberta de Descartes é uma não-descoberta, é a descoberta da impossibilidade de descobrir o que quer que seja por uma via em cuja definição mesma está contida uma autocontradição intolerável.

Mas, com isto, demonstrei apenas que a dúvida, como tal, não pode servir de fundamento crítico; não expus ainda os fundamentos que, por sua vez, possibilitam a dúvida. E este é o ponto decisivo, pois, se há um algo “por trás” da dúvida, é este algo, e não a dúvida, que constitui o ponto de apoio firme que Descartes buscava, e que acreditou ingenuamente ter encontrado na constatação da dúvida.

Descartes diz que a dúvida é uma certeza no instante em que é pensada. Mas isto é falso: o que é certeza é a reflexão posterior que afirma a realidade da experiência da dúvida. No instante mesmo da dúvida, o que há é, como vimos, uma alternância entre afirmação e negação, e portanto a impossibilidade mesma de afirmar um estado qualquer, se por estado entendemos, como se deve entender, a coincidência entre um juízo de fato e o sentimento que o valoriza negativa ou positivamente, como ocorre na tristeza, na raiva, na pressa, na esperança etc. A dúvida não é um estado, pela simples razão de que nela o sentimento, que pode ser de ansiedade, de esperança, de curiosidade, etc., não coincide com um juízo determinado, mas provém justamente da impossibilidade de afirmar ou negar um juízo. Ela é antes um momento de suspensão entre estados, um vazio agitado que contém em germe vários estados possíveis — pelo menos dois — e não se resolve em nenhum deles sem suprimir-se a si mesma. O homem portanto nunca “está” em dúvida: apenas passa por ela, precisamente como transição entre estados. É só quando a dúvida deixa de ser vivência presente para passar a ser objeto de reflexão que surge esta certeza puramente retrospectiva e narrativa: “Não consegui, até agora, estabilizar-me na negação ou na afirmação.”

Existe, portanto, não só distinção lógica como também separação de fato entre a dúvida enquanto vivência presente e a dúvida enquanto objeto de recordação e reflexão — e é esta que é certa e indubitável, não aquela, embora Descartes tome uma pela outra e nos repasse como evidência intuitiva direta o que é fruto de reflexão posterior. É somente esta reflexão que, dando um nome à alternância vivenciada, confere artificialmente a unidade de um “estado” ao que é na verdade uma sucessão de estados que se suprimem mutuamente ou uma coexistência de estados puramente potenciais, dos quais cada um só se pode atualizar à custa da exclusão dos outros. Conferindo ao vazio da alternância a consistência positiva de um estado, no mesmo instante Descartes transforma a dúvida em mera negação hipotética, tomando então como estado psicológico efetivo o que é apenas o conceito lógico de um estado possível.
*Olavo de Carvalho

Arnaldo e ela é "Dilmais"

Olá pessoal, como ja foi dito anteriormente a orientação política desse blog no sentido de filiação partidária é na verdade apolítica, isto é, não levantamos nenhuma bandeira em particular por entendermos que todo sectarismo é burro. E não obstante, principalmente pelo fato de que em tempos como os nossos a palavra ideologia tem continuamente se dissolvido em interesses digamos, obscuros às idéias originais.

Dito isso, apresento aqui um texto do Arnaldo Jabor que chegou a mim por e-mail. De um modo geral, o autor tece alguns comentários sobre os aliados da Dilma e o pacote que você recebe ao votar no PT nessas eleições. Todavia, o que está me levando a publicá-lo aqui não é somente seu conteúdo, posto que qualquer pessoa com o mínimo de senso crítico é capaz de entender o que está acontecendo... A grande questão é o contexto que envolveu a publicação original. Pelo que consta, tão logo o site da CBN deixou à disposição os comentários do Jabor, foi impelido a tirá-los do ar pelo TSE.


Amigos do Soturna Primavera, uma república não pode sobreviver sem democracia, o direito à liberdade de expressão é um bem sagrado no nosso sistema jurídico e é justamente o limiar que separa uma comunidade de homens livres de um fascismo travestido. Será que o PT pretende fabricar uma ditadura de modos mais sofisticados onde o cacetete aparece em forma de canetas de juízes comprometidos e nada isentos? Será que todas as lutas, a recessão, as crises pelas quais esse país passou serviram só para voltarmos ao mesmo lugar? Não me sinto capaz a afirmar nada categoricamente, entretanto me coloco obrigado a levantar essas questões. Lembrai: na década de 1930 Adolf Hitler foi considerado o melhor governante que a alemanha jamais teve... O poder absoluto corrompe e degenera absolutamente, mas isso eu acho que vocês ja sabiam. Abaixo segue o texto do Jabor e no fim alguns vídeos com performances da nossa candidata, seria cômico se não fosse trágico.

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Tudo isto e muito mais...




Isso mesmo, agora o plano é lutar contra o meio ambiente :s



*Arnaldo Jabor
**Leandro M. de Oliveira
***Ps: Agradecimentos à Aida Zorkot
****Pps: O pior é que é tudo verdade

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Verso Elástico

Tentar abarcar o desmedido
como se fora ínfimo;
tocar o pequeno
como se transbordasse.

A forma inconclusa
das cordilheiras verdes,
a estranha flor azulada
sobre a pedra inóspita.

Para o besouro
(grifo guerreiro)
mil palavras.
Para a vida e a morte
dois monossílabos;
para a estrada inteira,
um discurso impossível
com vírgulas erradicadas.

Para cada urgência de água,
navegar
com diferentes calados:
a canoa instável

*Marcantonio

domingo, 10 de outubro de 2010

Breve Ensaio Metafísico (Parte 2) - O Ser em Platão

Com efeito, deve-se reconhecer que Parmênides, justamente pela preocupação de insistir sobre o ser das coisas, deixou sem solução a clarificação da alteridade, isto é, não empreendeu o exame do modo pelo qual o outro é ser sem cessar de ser o outro ou, inversamente, o modo pelo qual o ser é também o outro sem cessar de ser. Foi a especulação platônica que se empenhou nesta clarificação e neste exame.

Platão está substancialmente de acordo com Parmênides: a verdade é manifestação daquilo que verdadeiramente é, e aquilo que verdadeiramente é tem as características da necessidade, da imobilidade e da eternidade. Aquilo que verdadeiramente é constitui o mundo inteligível, o mundo das idéias. Platão chega à afirmação de tal mundo com a segunda navegação, ou seja, com aquele procedimento metodológico – a especulação -, com o qual, depois do percurso através do mundo empírico e fenomênico dos sentidos e das sensações, cujo conteúdo são as coisas que aparecem (os corpos etc.; este percurso constitui a primeira navegação), alcança a esfera do mundo puramente inteligível e metempírico do lógos – raciocínios e postulados -, cujo conteúdo é constituído das coisas que são: as idéias.

Esta passagem do plano físico ao plano metafísico era necessária ao escopo de dar a razão do sensível e de salvá-lo da contradição, pela qual é torturado, toda vez que se o considera por si mesmo (= realidade que jamais verdadeiramente é e que jamais é idêntica a si mesma) (cf. Fédon). Isso mostra que o motivo pelo qual Platão foi induzido ao aprofundamento da alteridade ou da multiplicidade não reside tanto no mundo da experiência sensível, quanto na visão do mundo inteligível: o mundo das idéias, ou seja, no fato de que o mundo das coisas que verdadeiramente são, é mundo da multiplicidade. Convém, pois, examinar como aquilo que verdadeiramente é – no sentido parmenidiano -, é ao mesmo tempo aquilo que multiplamente é. Este exame é exposto essencialmente no Sofista.

A respeito disso convém evidenciar duas observações.

O parricídio é simplesmente uma imagem; o assassínio de Parmênides, o ancião terrível, não significa senão progresso referente à sua posição, mas progresso que progride sobre sua linha.

Para Platão permanece firme que o ser é e é ser, e é o que ele exprime com a fórmula: aquilo que verdadeiramente é ou, mais precisamente, aquilo que entitativamente é; ou ainda com a fórmula: o próprio ser.

Além disso, não se pode aceitar, senão com muita circunspecção e com um redimensionamento radical e crítico, a acusação que Aristóteles dirige a Platão a respeito deste argumento central. A acusação é dupla: Platão pôs o problema “em termos antiquados”, ou seja, em termos parmenidianos; em segundo lugar, Platão para superar o monismo parmenidiano – todas as coisas se reduzem à unidade, isto é, ao ser em si -, deduz que “seria necessário mostrar que o não-ser é”.

A primeira acusação não é exata, porque também Aristóteles enfrentará o mesmo problema a propósito do devir: portanto, o problema parmenidiano não é arcaico, mas atual e imprescindível; não é exata nem mesmo a segunda, melhor, o é ainda menos, porque Platão não deduz necessariamente que o não-ser é; e porque o outro, do qual examina a natureza, não é um misto de ser e de não-ser, entendido quase como dois elementos, dos quais seria composto.

Podemos, agora, expor a solução platônica. O ser, que aparece absolutamente, se contrapõe absolutamente ao não-ser absoluto: sobre a linha deste absoluto entre o ser e o não-ser corre uma relação de oposição contraditória, de absoluta contradição (= enantíon, o contrário). Mas nesta linha absoluta aparece um ser certo e determinado; pelo simples fato de que aparece não pode ser negado; a impossibilidade de negá-lo equivale à necessidade de afirmá-lo: aquele ser certo e determinado é; mas porque aparece como aquele ser certo e determinado, ele aparece também junto e ao lado daquele outro ser certo e determinado; e justamente porque aparece como aquele ser certo e determinado junto e ao lado de outros, no ato em que é necessário pensar que é, é igualmente necessário pensar que não é aquele outro ser certo e determinado: a árvore é, mas não é o animal ou a pedra ou qualquer outro ser; se, então, também este outro ser certo e determinado é necessário pensar que é, será necessário pensar que tanto a árvore quanto
o animal é e que tanto a árvore em relação ao animal quanto o animal em relação à árvore não é.

Mas isto implica que com a mesma necessidade com a qual se afirma que a árvore é e que o animal é, se deve afirmar que a árvore não é e que o animal não é. Disto resulta que tanto o é quanto o não é podem assumir um significado, que se diferencia daquele da oposição de contradição (ou de contrariedade), e que, ao contrário, é aquele da oposição de alteridade ou de diversidade: ser e não-ser como outro ou diverso (= éteron); existe, portanto, uma oposição de contradição e uma oposição de diversidade; a primeira no plano absoluto: absoluto ser e absoluto não-ser; a segunda no plano relativo: ser outro e não ser outro. Este último pano é aquele no qual se põe a multiplicidade: de cada coisa que aparece é necessário pensar que, relativamente ao absoluto não-ser, é, e que, relativamente ao absoluto ser, não é; no primeiro momento, pensando que é, se exclui o absoluto não-ser; no segundo momento, pensando que não é se exclui que seja o absoluto ser; a coincidência deste é e deste não é é a constituição essencial do outro.

Completando o que se disse até aqui, vale a pena anotar que:

a) Trata-se de coincidência; pois não se tem o que fazer com dois elementos – ser e não-ser -, de cuja composição resultaria a constituição do outro;

b) a constituição do outro implica dois tipos de relação: o primeiro com o ser absoluto e com o não-ser absoluto, o segundo com todos os outros entes: como diz respeito ao não-ser absoluto e não ao ser absoluto, assim diz e não diz respeito a todos os outros entes;

c) visto que esta constituição duplamente relativa varia com o variar dos entes múltiplos, podemos concluir com as palavras de Platão: “Conseqüentemente, o ser, por sua vez, por inumeráveis coisas em inumeráveis casos, indiscutivelmente não é, e assim também os outros gêneros, cada um tomado em si e todos juntos, por muitos aspectos são e, ao contrário, por muitos outros não são” (Sofista 259B);

d) tanto o é – obviamente – quanto o não é são internos ao ser; por isso o não é tem sempre um significado positivo, que se pode avistar quando se pensa que a proposição: a árvore não é o animal, se pode sempre traduzir na proposição idêntica: a árvore é diversa do animal, ou então: é outra coisa. O que vem ainda confirmado pelas palavras de Platão: “discordando sempre concorda”.

Mas é necessário também clarear a estrutura da relação que o outro implica com o ser absoluto e o absoluto não-ser. Tal estrutura é vista por Platão – mas depois por toda a tradição clássica sucessiva – na figura metafísica da participação. Tal figura, que constitui um genial e original contributo de Platão – cuja sistematização será aperfeiçoada pelo neoplatonismo e pela metafísica cristã (a criação) -, se configura de vários modos.

- A participação como tal ou a metessi; esta palavra deriva de metéchein = ter parte em; afim é metalambánein = tomar parte em; desse modo se pode dizer que a participação é um ter parte em como resultado do tomar parte no ser (em latim: partem capere: cf. Santo Tomás: participar = partem capere = partialiter recipere = partialiter accipere).

- A imitação ou mimesi (miméishai), da qual resulta a semelhança: porque imita (realiza o ato de imitar), alguma coisa é semelhante (possui a, é constituído pela semelhança).

- A comunhão ou koinonía: entre aquilo que participa e aquilo do qual participa se estabelece a comunhão daquilo que é participado.

- A presença ou parusía (de paréinai): diz respeito sobretudo ao ser e ao ente: pela presença do ser os entes são; os entes são a presença = a presentificação = a apresentação do ser.

O desenvolvimento do conceito de participação constitui o sistema platônico, que se pode chamar sistema da participação ou também sistema henologico (= dominado pelo Uno). Em síntese, os elementos são estes: a) esfera da multiplicidade sensível; b) esfera da multiplicidade inteligível; c) esfera dos princípios supremos; ou seja: a) o mundo físico, b) o mundo dos entes matemáticos e das idéias, c) a idéia do Bem ou do Uno, isto é, a protologia.

As relações que ligam a esfera (a) à esfera (b) e a esfera (b) à esfera (c) são relações de participação, as quais, sendo dominadas pelo Bem-Uno, são relações de participação ao Uno (Hen). Do Uno como princípio supremo põe-se ao lado d Díade Infinita inteligível: na esfera (b), se o Uno é causa da unidade a Díade Infinita inteligível é causa de gradação, de diferença e de multiplicidade. Mas ao pólo oposto ao Uno existe uma Díade Infinita sensível, constituindo uma dimensão independente, alógica, assimétrica, desordenada, informal, anômala (aquela dimensão que Aristóteles chamará a matéria prima universal), a qual é origem do devir, da inconsistência ontológica, da obscuridade e da problematicidade gnosiológica na esfera (a).

Por causa desta independência da Díade Infinita sensível do princípio do Uno, o sistema platônico é um sistema dualístico. Para concluir, reenviamos à leitura da República VI, 507D-509C, onde a relação de participação considerada é aquela entre a esfera (b) e a esfera (c), ou seja entre o Bem/Uno e o mundo inteligível. Precisamos, além disso, que o Bem/Uno significa a plenitude e a compatibilidade do ser em si e por si, enquanto a Díade Infinita inteligível (e, analogicamente, a Díade Infinita sensível) desempenha a função do não-ser como diferenciação, diversificação e multiplicação; que a relação de participação é uma relação de fundação e de hierarquização da realidade.
*Aniceto Molinaro

17 - III

Detener la palabra
un segundo antes del labio,
un segundo antes de la voracidad compartida,
un segundo antes del corazón del otro,
para que haya por lo menos un pájaro
que pueda prescindir de todo nido.

El destino es de aire.
Las brújulas señalan uno solo de sus hilos,
pero la ausencia necesita otros
para que las cosas sean
su destino de aire.

La palabra es el único pájaro
que puede ser igual a su ausencia.

*Roberto Juarroz

A Grande Invenção

O Documentário abaixo contempla algumas vertentes que trabalham a figura de Satanás como uma invenção socialmente construída. Mostra sua interação nas culturas ao longo do tempo e sua mundança de significação de acordo com cada época até chegar aos dias de hoje onde deixa de ser a tradicional antítese ao deus cristão e passa também a figurar como legítimo ícone pop.

Vale aqui citar aquele versículo infame contido no livro de João 8; 32: "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." embora nesse caso, a "verdade" opere provavelmente contra o interesse daqueles que a criaram por assim dizer. De todo, não seria a primeira vez que alguém do metiê bíblico joga contra o patrimônio. Enfim, espero que aproveitem o filme.













*Leandro M. de Oliveira

sábado, 9 de outubro de 2010

Bento de Espinoza

Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro, ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vitímas da superstição. Mas, como se encontram freqüentemente perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre prontos a acreditar seja o que for, se tem dúvidas, deixam-se levar com a maior das facilidades para aqui ou para ali; se hesitam, sobressaltados pela esperança e pelo medo em simultâneo, ainda é pior; porém, se estão confiantes, ficam logo inchados de orgulho e presunção.

Julgo que toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convicto de que a maioria dos homens se ignoram a si próprios. Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os homens que não se tenha dado conta de que a maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem ofendidos se alguém lhes quer dar um conselho. Todavia, se estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, suplicam o conselho de quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou inútil, que eles não sigam.

Depois, sempre por motivos insignificantes, voltam de novo a esperar melhores dias ou a temer desgraças ainda piores. Se acontece, quando estão com medo, qualquer coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram, julgam que é o prenúncio da felicidade ou da infelicidade e chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto, apesar de já terem se enganado centenas de vezes. Se vêem, pasmados, algo de insólito, crêem que se trata de um prodígio que lhes revela a cólera dos deuses ou do Númem sagrado, pelo que não aplacar com sacríficios e promessas tais prodígios constitui um crime aos olhos desses homens submergidos na superstição e adversários da religião, que inventam mil e uma coisas e interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles. Tanto assim é, que quem nós vemos ser escravo de todas as superstições são sobretudo os que desejam sem moderação os bens incertos.

Todos eles, designadamente quando correm perigo e não conseguem por si próprios salvar-se, imploram o auxílio divino com promessas e lágrimas de mulher, dizem que a razão é cega porque não pode indicar-lhes um caminho seguro em direção às coisas vãs que desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios da imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas divinas. Até julgam que Deus sente aversão pelos sábios e que os seus decretos não estão inscritos na mente, mas sim nas entranhas dos animais, ou que são os loucos, os insensatos, as aves, quem por instinto ou sopro divino os revela.

A que ponto o medo ensandece os homens! O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Se, depois do que já dissemos, alguém quiser ainda exemplos, veja-se Alexandre, que só se tornou supersticioso e recorreu aos adivinhos, quando, às portas de Susa, começou pela primeira vez a temer por sua sorte (vide Q. Cúrcio, Livro V, §7); assim que venceu Dario, desistiu logo de consultar os adivinhos e arúspices. Até ao momento em que, uma vez mais aterrado pela adversidade, abandonado pelos Bactrianos, atacado pelos Citas e imobilizado devido a uma ferida, recaiu (como diz o mesmo Q. Cúrcio, Livro VII, §7) na superstição, esse logro das mentes humanas, e mandou Aristandro, em quem depositava uma desconfiança cega, explorar por meios de sacríficios a evolução futura dos acontecimentos.

Poderíamos acrescentar muitos outros exemplos que provam com toda a clareza o mesmo: os homens só se deixam dominar pela superstição enquanto têm medo: todas essas coisas que já alguma vez foram objetos de um fútil culto religioso não são mais do que fantasmas e delírios de um caráter amedrontado e triste; finalmente, é quando os Estados se encontram em maiores dificuldades que os adivinhos detém maior poder sobre a plebe e são mais temidos pelos seus reis. Mas como tudo isto, ao que presumo, é suficientemente conhecido de todos, não insistirei mais no assunto.

Se esta é a causa da superstição, há que concluir, primeiro, que todos os homens lhe estão naturalmente sujeitos (digam o que disserem os que julgam que ela deriva do fato de os mortais terem todos uma qualquer idéia, mais ou menos confusa, da divindade); em segundo lugar, que ela deve ser extremamente variável e inconstante, como todas as ilusões da mente e os acessos de furor, e por último, que só a esperança, o ódio, a cólera e a fraude podem fazer com que subsista, pois não provém da razão, mas unicamente da paixão, e da paixão mais eficiente. Daí que seja tão fácil os homens acabarem vítimas de superstição de toda espécie quanto é difícil conseguir que eles persistam numa só e na mesma superstição.

Precisamente porque o vulgo persiste na sua miséria é que nunca está por muito tempo tranqüilo e só lhe agrada o que é novidade e o que ainda não lhe enganou, inconstância essa que tem sido a causa de inumeráveis tumultos e guerras atrozes. Na verdade (como se prova pelo que já dissemos e como Cúrcio muito bem observou, no livro IV, cap. X), não há nada mais eficaz que a superstição para governar as multidões. Por isso é que estas são facilmente levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para todo gênero humano.

Foi, de resto para prevenir este perigo que houve sempre o cuidado de rodear a religião, fosse ela verdadeira ou falsa, de culto e aparato, de modo a que se revestisse da maior gravidade e fosse escrupulosamente observada por todos. Entre os turcos, isto foi tão bem sucedido que até o simples discutir eles consideram crime, deixando a inteligência de cada um ocupada com tantos preconceitos que não há mais lugar na mente para a reta razão, nem sequer para se duvidar.

Se, efetivamente, o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhes interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em que devem ser contidos para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só homem, em contrapartida, numa República livre, seria impossível conceber ou tentar algo de mais deplorável, já que repugna em absoluto à liberdade comum sufocar com preconceitos ou coartar de algum modo o livre discernimento de cada um. E no que diz respeito aos conflitos desencadeados a pretexto da religião, é evidente que eles surgem unicamente porque se estabelecem leis que concernem matéria de especulação e porque as opiniões são consideradas crime e, como tal, condenadas.

Os seus defensores e prosélitos são, por isso, imolados, não ao bem público, mas apenas ao ódio e à crueldade dos adversários. Porque se o direito estatal fosse de modo a que os fatos fossem incrimináveis, mas as palavras fossem impunes, semelhantes conflitos não poderiam jamais invocar qualquer espécie de direito, nem as controvérsias se converteriam em sedições. E já que nos coube em sorte esta rara felicidade de viver numa República, onde se concede a cada um inteira liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprouver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável do que a liberdade, pareceu-me que não seria tarefa ingrata ou inútil mostrar que esta liberdade não só é compatível com a liberdade e paz social, como inclusivamente, não pode ser abolida, sem se abolir, ao mesmo tempo, a paz social e a piedade.

(...)

Inúmeras vezes fiquei espantado por ver homens que se orgulham por professar a religião cristã, ou seja o amor a alegria, a paz, a continência e a lealdade para com todos, combaterem-se com tal ferocidade e manifestarem cotidianamente uns para com os outros um ódio tão exacerbado que se torna mais fácil reconhecer a sua fé por estes do que por aqueles sentimentos. De fato, há muito que as coisas chegaram a um ponto tal que é quase impossível saber se alguém é cristão, turco, judeu ou pagão, a não ser pelo seu vestuário, pelo culto que pratica, por freqüentar esta ou aquela igreja, ou finalmente porque perfilha esta ou aquela opinião e costuma jurar pelas palavras deste ou daquele mestre. Quanto ao resto, todos levam a mesma vida.

Procurando então a causa deste mal, conclui que ele se deve, sem sombra de dúvidas, ao fato de os cargos da Igreja serem considerados como títulos de nobreza, os seus ofícios como benefícios, e consistir a religião, para o vulgo, em cumular de honras os pastores. Com efeito, assim que começou na Igreja este abuso, logo se apoderou dos piores homens um enorme desejo de exercerem os sagrados ofícios, logo o amor de propagar a divina religião se transformou em sórdida avareza e ambição; de tal maneira que o próprio templo degenerou em teatro onde não mais se veneravam doutores da Igreja mas oradores que, em vez de quererem instruir o povo, queriam era fazer-se admirar e censurar publicamente os dissidentes, não ensinando senão coisas novas e insólitas para deixarem o vulgo maravilhado. Daí o surgirem grandes contendas, invejas e ódio, que nem o correr do tempo foi capaz de apagar.
*Baruch de Espinosa
**Bento de Espinoza também Benedito Espinoza ou como é mais conhecido no Brasil, Baruch de Spinoza. Foi um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da chamada Filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz. Nasceu em Amsterdam, nos Países Baixos, no seio de uma família judaica portuguesa e é considerado o fundador do criticismo bíblico moderno