domingo, 28 de fevereiro de 2010

Belphegor

Vento norte que em rota inesperada faz desnorte. Esse ar, essas ruas, esse cadáver, eternamente jaz, flutuando sobre mim. Queria uma emoção leve que fizesse do tempo um exercício comum, como não consigo, caminho como quem se suicida, ou tomo o ônibus que leva a um país iverossímil. A persistência que parece insustentável, o ermo feito indizível. Tudo é partida. Subi o monte com grandes expectativas, quando lá cheguei só haviam pedras e árvores. Buscar uma explicação é ter a alma pelo avesso, e eu como nada sei da direção comum, meto a mão no que sinto como um tumor que cresce de dentro pra fora. Viver custa caro, nisso tenho sido obrigado a por de própria algibeira. Por mil anos trabalhei no silêncio, obsoleto, agora minhas estão deformadas e minha vista cegou-se na incomensurável espera. Para o serviço de recenseamento seria eu excesso de contingente ou morto não declarado? Situação ingrata, ter de ser pertencido por alguma parte sem ser pertencido por parte alguma. Nessa terra devassa nem amargor é capaz de definir o meu amor. Todo sacrifício é degradação, toda vez que abro uma janela a paisagem persiste a mesma.

O silêncio às vezes é entrecortado pelos sons dum animal errante. O silêncio é um mistério inominável aos que carregam uma turba pelas ventas.Deus é som, animal, ou silêncio? Há tanta metafísica nas coisas ordinárias que a crença já não é algo mais tão seguro, os inquisidores tiraram férias... Não, não tiraram.

Apaixonar-se é ter nostalgia da perdida infância. Isso seria uma observação ou uma epígrafe? Talvez uma boa coisa pra se escrever nas paredes de um urinol público. As necessidades sempre fazem o homem parecer mais profundo. Irremediavelmente, a nostalgia tateia memórias além da memória, desce ao porão escuro agitando o pó já assentado. Na treva não há o que se contemple. La embaixo todos os sepulcros foram lacrados. Acaso existem infravermelhos pra se enxergar o escuro da alma? Na impossibilidade das respostas vou, com um cemitério na cabeça, com o universo todo por sobre os joelhos.

Conhecer do atemporal é engenho nobre. Irrelevante; debruçar-se a isso num mundo mais raso que um prato de sopa. Bem vindo à época da produção em série. Ave, triunfo burguês! Quem roubou meu cantil? Tenho sede e não há água em canto algum. Depois de certo tempo no deserto as pessoas passam a fazer parte dele. Homens de areia, mulheres de nada, paços insólitos permeiam a cidade. O mundo existe em mim como existe uma bruma a cobrir a paisagem, como existe alojada uma doença a que se quer purgar.

Prometeu amarga um perene castigo. Mandado ao Cáucaso por ser um homem bom? Bondosamente imbecil, salvar os outros é perder-se a si mesmo. O caminho e a resposta vêem de dentro. Também não sei por que cargas d’água me ponho a assim pensar, se dessa feita ocorresse, a espeleologia cuidaria de todos os vazios. Mãos ao alto ao mistério, mãos ao chão na queda. A gravidade é sempre inconstante, pode ser que estar em paz seja fechar os olhos e abrir a boca. Consumir idéias alheias é a forma mais antiética de canibalismo. Todavia fomos salvos, a TV democratizou o saber e fez com que todos soubessem as mesmas coisas. Boa noite e merda!

Depois que a mídia se tornou o nosso aiatolá, existir ficou tão colorido, tão nauseantemente simplificado que nem o vômito surte mais efeito. Tomaria alcalóides e dormiria como um xeique enfeitiçado, as garrafas estão vazias. Tenho de beber da esquizofrenia coletiva e fingir um pouco de lucidez. Onde estão meus óculos? Onde está a forma pacífica de ver as coisas? Já que tudo é guerra coloco botas de borracha e busco despojos na fossa sanitária das consciências. Estão vazias, visceralmente apartadas. Belphegor trabalha às tantas. Abençoados os que não se arrependem, amaldiçoados os que os abençoam. Discursar é uma forma de fazer com que as pessoas não reparem nossas vidraças, toda palavra é agressão. A luz apagou, a tempestade não estiou. Pra onde fugir agora? Que lugar é possível sem que hajam luzes, tempestades e memória? Fronteiras de meu reino, de tantas terras donde nunca ouvirei falar. O vento sopra a este bordo, o vento sempre soprou a mesma nota. Não escutar o arredor é ser ultrapassado pelas costas, talvez exista cera demais nos ouvidos. Quero partir em disparada mas, a letargia parece ter atrofiado meus membros.
*Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Asmodeus

A justa medida de medir todas as coisas, sem conceito pregresso, sem participação no processo. Não se encontra uma boa solução na caixa de achados e perdidos. Salvo o amor próprio todo o tipo de paixão é decadência; essa é uma era de homens decadentes. Do olho furacão todos estão cegados, como criticar as cores do quadro se a vida te fez daltônico? O dia consumido em horas, as horas consumidas em não ser. Viver é tomar parte na antiga tragédia, morrer é figurar nas estatísticas. Solas gastas patinam na lama e é preciso um coturno que amasse a terra com indiferença. Compadecer-se do passo adiante é degradação da pior espécie. Nada se destrói, as coisas vão reformuladas no contínuo de existir. Uma navalha abre carnes, uma navalha decepa membros. Acaso ha lâminas nessa terra que abram idéias ou decepem ideologias? Se os cuteleiros tivessem consciência política a vida na polis seria menos hipócrita. O processo é mais sofisticado.

Vis escravos, pra sempre sejam.

A noite passa. Eu a tecer insônias como quem tece uma camisa de força. Qual a justa medida? Se cada homem é um e vários ao apelo das circunstâncias, qual o sentido de verdade? Toda fé é inútil. A vida vai arrombar sua casa, estuprar seus filhos e te fazer beber um café amargo pela manhã. Maldição! Na ditadura é fácil culpar alguém. Então vem você com seu senso democrático e sua mentira, quer comandar o mundo todo mas, falha no papel simplório de soberano da própria pele. Bem vindo aos tempos do teatro experimental. A selva não permite regras de etiqueta, o que diferencia os homens é o lugar que cada um ocupa na cadeia alimentar. Tragam-me pantomimas, uma vez na vida, deixem que aconteça de dentro pra fora. O preço do pão torna as coisas pouco poéticas, compaixão para com os animais é engenho da mais cínica extravagância. Que Asmodeus dê cabo dos luxuriosos. E aqui estamos e cá continuaremos, por muito tempo até que os guias usem óculos, até que rebente a vergonha naqueles que te fizeram acreditar.

A vida existe na matéria, a matéria existe na aglomeração de átomos. O átomo é cheio de vida, e ao mesmo tempo vazio de matéria. Se não há matéria que preencha o átomo, não há vida na matéria. E se assim é, a vida vem de outra fonte e nada é como se pensa ser ou tudo é representação e nada é sequer coisa alguma. No primeiro caso o discurso é inútil, no segundo, a palavra é na melhor das hipóteses alçapão ou embuste. Detesto o cinismo existencial. Em qualquer feita tudo é ausente de sentido além daquele que o condicionamento permite.

Resumidamente, se tudo é vazio e ausente de sentido, talvez tudo seja deveras nada e como nada, inexiste em realidade. Se isso for, eu que pensei estar raciocinando me enganei, você que pensou estar em dívidas com a vida foi absolvido, e as palavras todas tampouco fizeram sentido, elas nem mesmo foram. Foram? Não foram?
*Leandro M. de Oliveira

O homem que queria eliminar a memória

Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião. Disse que era caso de vida e morte. Não se sabe como, o melhor neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos são imprevisíveis. Precisa-se muito e eles falham; subitamente, estão ali, salvando nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar-comum.

Estava na sala diante do doutor. Uma sala branca, anônima. Por que são sempre assim, derrotando a gente logo de entrada?

O médico:

– Sim?

– Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu cérebro.

– Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu cérebro?

– Porque eu quero.

– Sim, mas precisa me explicar. Justificar.

– Não basta eu querer?

– Claro que não.

– Não sou dono do meu corpo?

– Em termos.

– Como em termos?

– Bem, o senhor é e não é. Há certas coisas que o senhor está impedido de fazer. Ou melhor; eu é que estou impedido de fazer no senhor.

– Quem impede?

– A ética, a lei.

– A sua ética manda também no meu corpo? Se pago, se quero, é porque quero fazer do meu corpo aquilo que desejo. E se acabou.

– Olha, a gente vai ficar o dia inteiro nesta discussão boba. E não tenho tempo a perder. Por que o senhor quer cortar um pedaço do cérebro?

– Quero eliminar a minha memória.

– Para quê?

– Gozado, as pessoas só sabem perguntar: o quê? por quê? para quê? Falei com dezenas de pessoas e todos me perguntaram: por quê? Não podem aceitar pura e simplesmente alguém que deseja eliminar a memória.

– Já que o senhor veio a mim para fazer esta operação, tenho ao menos o direito dessa informação.

– Não quero mais lembrar de nada. Só isso. As coisas passaram, passaram. Fim!

– Não é tão simples assim. Na vida diária, o senhor precisa da memória. Para lembrar pequenas coisas. Ou grandes. Compromissos, encontros, coisas a pagar.

– É tudo isso que vou eliminar. Marco numa agenda, olho ali e pronto.

– Não dá para fazer isso, de qualquer modo. A medicina não está tão adiantada assim.

– Em lugar nenhum posso eliminar a minha memória?

– Que eu saiba não.

– Seria muito melhor para os homens. O dia a dia. O dia de hoje para a frente. Entende o que eu quero dizer? Nenhuma lembrança ruim ou boa, nenhuma neurose. O passado fechado, encerrado. Definitivamente bloqueado. Não seria engraçado? Não se lembrar sequer do que se tomou no café da manhã? E para que quero me lembrar do que tomei no café da manhã?

– Se todo mundo fizesse isso, acabaria a história.

– E quem quer saber de história?

– Imaginou o mundo?

– Feliz, tranquilo. Só de futuro. O dia em vez de se transformar em passado de hoje, mudando-se em futuro. Cada instante projetado para a frente.

– Não seria bem assim. Teríamos apenas uma soma de instantes perdidos. Nada mais. Cada segundo eliminado. A sua existência comprovada através de quê?

– Quem quer comprovar a existência?

– A gente precisa.

– Para quê?

O médico pensou. Não conseguiu responder. O homem tinha-o deixado totalmente confuso. Pediu ao homem que voltasse outro dia. Despediram-se. O médico subiu para os brancos corredores do hospital, passou pela sala de operações. Chamou um amigo.

– Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérbro. Eliminar a memória. O que você acha?

– Muito boa idéia. Por que não pensamos nisto antes? Opero você e depois você me opera. Também quero.
*Ignácio de Loyola Brandão

A liberdade e a obrigação do indivíduo (considerações sobre o alcançe do Estado)

De acordo com nossa hierarquia de valores, o sujeito econômico tem de subordinar-se à pessoa humana como cidadão, de tal modo que todas as leis sobre a simultaneidade dos processos econômicos não representam para a pessoa humana —enquanto membro do Estado—, isto é, para sua vontade como cidadão, senão uma simples soma de regras técnicas, aplicáveis a fins que variam livremente.

A visão kantiana do problema, por mais profunda que seja, não consegue atenuar o erro contido em seus conceitos e fundamentos, nos quais se identifica de um modo falso a pessoa simplesmente social com a pessoa em geral, a pessoa-razão com a pessoa espiritual-individual, e, além disso, a idéia de pessoas racionais, cuja igualdade é o pressuposto de todo direito, e ainda a pessoa-cidadão. Diante disso, não pode haver dúvida de que o núcleo da pessoa espiritual-individual —e a pessoa-razão, como a pessoa-social em geral, representam unicamente um conteúdo abstrato, conteúdo que existe graças à sua referência a certas esferas e funções— é superior a todo Estado e a toda mera personalidade (a pessoa-cidadão), e tanto como sua salvação última independe por completo de sua relação com o Estado. A idéia de Estado, inclusive, está fundada na solidariedade de pessoas espirituais-individuais —e não num contrato entre elas— sendo, antes, uma possível comunidade de amor recíproco.
Considerada do ponto de vista do individuo, da pessoa pura e simples, essa mesma idéia de Estado está fundada numa possível "comunidade de vida" —não é uma sociedade de fins— baseada em simpatia vital. E assim, a comunidade é a matéria do Estado. Como membro de um reino de pessoas espirituais livres, sempre individual e desigual, tanto em si como em seu valor, a pessoa, efetivamente, está, sob todos os aspectos, acima do Estado e até podemos dizer —acima do direito.

Por isto, pode o Estado, numa medida extrema, exigir o sacrifício da vida de uma pessoa —na guerra por exemplo— mas nunca o sacrifício da pessoa, de um modo geral —isto é, de sua consciência moral e de sua salvação— nem mesmo uma entrega absoluta da pessoa. Assim como a pessoa econômica fica submetida ao Estado, o núcleo da pessoa espiritual-individual está acima do Estado em geral. E toda a esfera da pessoa íntima está fora do Estado. Até mesmo com relação à pessoa íntima, porém, vigora o princípio da solidariedade originária, e também a pessoa íntima (a simples pessoa humana) é o núcleo espiritual na área mais íntima da unidade do ser, do ser sensível, vital, espiritual, que o homem representa. Por isso, o homem, como pessoa relativamente íntima, tem relação com outro homem na liberdade de ser próprio foro, acima e além do Estado, prescindindo da tirania de um pacto social, para a efetividade de uma sociedade fundada sobre o amor.

Assim como o pequeno centro de vida unitário, no indivíduo, restringe e ordena, de acordo com seus objetivos, todas as apetências que se dirigem ao útil e ao agradável, também, em proporções maiores, o Estado faz o mesmo com a sociedade e com o homem enquanto cidadão. Dessa forma, deve-se considerar um ato positivo da vontade do Estado o fato de ele abster-se de intervenções de sua vontade nos processos econômicos, regulados legalmente de acordo com entendimentos de um consenso geral.

Se, por exemplo, o Estado faz uma política de livre cambismo, em vez de uma política protecionista, não o faz por força do princípio de livre-cambismo, mas apenas porque entende oportuna, no momento, a abstenção no campo da livre concordância.
Trata-se, assim, de uma ingenuidade e de uma simplificação infantil dos problemas em confronto, a tentativa de encontrar interpretações diversas para os mecanismos do Estado, segundo posições do individualismo ou do universalismo orgânico. Para uns, o Estado é uma realidade, um valor superindividual por sua própria natureza, ao qual o indivíduo deve fazer todos os sacrifícios. Essa interpretação, tipicamente alemã, do valor do Estado, é a mesma dos povos antigos. Mas o Cristianismo eliminou para sempre, de uma vez por todas, aqueles conceitos sufocantes do valor do Estado.
*Max Scheler

Do ridículo amor

Amar é:
Estar imbecilmente vivo!


*Leandro M. de Oliveira;
**Michael Radford

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Tempo de delicadeza

A álgebra e o dinheiro são essencialmente niveladores; o primeiro intelectualmente, o segundo efetivamente.

A beleza é a harmonia entre o acaso e o bem.


Quanto mais o nível da técnica aumenta, mais as vantagens que os novos progressos podem trazer diminuem em relação aos inconvenientes.


O bem é aquilo que dá maior realidade aos seres e às coisas; o mal é aquilo que disso os priva.


Pensa-se hoje na revolução, não como maneira de se solucionarem problemas postos pela atualidade, mas como um milagre que nos dispensa de resolver problemas.


Deus só pode estar presente na criação sob a forma de ausência.


A pureza é a capacidade de contemplar a mácula.


Dinheiro, maquinaria, álgebra: os três monstros da atual civilização.


O inferno é darmo-nos conta de que não existimos e não nos conformamos com isso.


A religião como fonte de consolação é um obstáculo à verdadeira fé; nesse sentido, o ateísmo é uma purificação.


Nada no mundo pode impedir o homem de se sentir nascido para a liberdade. Jamais, aconteça o que acontecer, ele pode aceitar a servidão: pois ele pensa.


A alegria é a nossa evasão do tempo.


Magoar alguém é transferir para outrem a degradação que temos em nós.


De entre os seres humanos, apenas conhecemos completamente a existência daqueles a quem amamos.


A amizade não se busca, não se sonha, não se deseja; ela exerce-se (é uma virtude).


O bem é aquilo que dá maior realidade aos seres e às coisas; o mal é aquilo que disso os priva.


É necessário realizar o possível para tocar o impossível.


Criar raízes quiçá seja a necessidade mais importante da alma humana. É uma das mais difíceis de se definir.


A violência às vezes é necessária, mas a meus olhos não há grandeza senão na doçura.
*Simone Weil

Deleuze e o significado da filosofia

Talvez só se possa colocar a questão "o que é a filosofia" tarde, quando vem a velhice e a hora de falar concretamente. É uma questão que se coloca quando não se tem mais nada a perguntar, mas suas consequências podem ser consideráveis. Antigamente, ela era colocada, não se parava de colocá-la, mas era demasiado artificial, demasiado abstrata, ela era exposta, era dominada mais que dominava. Existem casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude, mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se goza de um momento de graça entre a vida e a morte e onde todas as peças da máquina se combinam para enviar ao futuro um traço que atravessa as idades: Turner, Monet, Matisse. Turner velho adquiriu ou conquistou o direito de levar a pintura por um caminho deserto e sem volta, que não se distingue mais de uma última questão. Assim também na filosofia, a "Crítica do Juízo", de Kant, é uma obra de velhice, uma obra desembestada, atrás e da qual não vão parar de correr seus descendentes.

Nós não podemos aspirar a um tal status. Simplesmente veio a hora de perguntar o que é a filosofia. Não tínhamos cessado de fazê-lo anteriormente, e já tínhamos chegado à resposta, que não variou: a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Mas não era suficiente que a resposta recolhesse a pergunta, era preciso que determinasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão. Era preciso poder colocá-la "entre amigos", como uma confidência ou uma confiança, ou então ante o inimigo, como um desafio, e de uma só vez alcançar essa hora, no lusco-fusco, em que se desconfia até mesmo do amigo.

É que os conceitos precisam de personagens conceituais que contribuam para a sua definição. "Amigo" é um desses personagens, e diz-se mesmo que ele testemunha a origem grega da "filo-sofia", as outras civilizações tinham sábios, mas os gregos apresentam esses "amigos", que não são apenas sábios mais modestos. Os gregos teriam enterrado de vez o sábio, substituindo-o pelos filósofos, os amigos da sabedoria, os que buscam a sabedoria, mas não a possuem formalmente. Poucos pensadores entretanto, se perguntaram o que significa "amigo", mesmo e sobretudo entre os gregos. Amigo designaria uma certa intimidade competente, uma espécie de gosto material ou uma potencialidade, como a do marceneiro com a madeira: o bom marceneiro tem a madeira em potencial, ele é o amigo da madeira? A questão é importante já que o amigo, tal como aparece na filosofia, não designa um personagem extrínseco ao pensamento, um exemplo ou uma circunstância empírica, mas uma presença intrínseca, uma condição de possibilidade do próprio pensamento, em suma, uma categoria viva, uma experiência transcendental, um elemento constituinte do pensamento. E de fato, desde o nascimento da filosofia, os gregos dobram o amigo, que não entra mais em relação com um outro, mas com uma "entidade", uma "objetividade", uma "essência". É o que exprime bem a fórmula tão frequentemente citada, que é preciso traduzir: sou o amigo de Pedro, de Paulo, ou mesmo do filósofo Platão, mas mais ainda amigo da "verdade", da "sabedoria" ou do "conceito". O filósofo está por dentro dos conceitos, e da falta deles, sabe quais são inviáveis, arbitrários ou inconsistentes, não se sustentam um único instante, quais ao contrário são bem feitos, resultado de uma criação, mesmo inquietante ou perigosa (...).

O filósofo é o amigo do conceito, ele tem o conceito em potencial. Isso quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, inventar ou fabricar conceitos, pois esses não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. O amigo seria o amigo de suas próprias criações? Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo, como àquele que o tem em potencial, ou que guarda a sua potência e competência. Não se pode objetar que a criação seja atribuída antes ao sensível e às artes, já que a arte dá existência a entidades espirituais e que os conceitos filosóficos são também "sensibilia". Na verdade, as ciências, as artes, as filosofias são igualmente criadoras, embora caiba somente à filosofia criar conceitos em sentido estrito. Os conceitos não nos esperam já prontos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados, ou melhor criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: "Os filósofos não devem se contentar em aceitar os conceitos que lhes são dados, apenas para limpá-los e lustrá-los, mas é preciso que comecem fabricando-os, criando-os colocando-os e persuadindo os homens a recorrer a eles. Até hoje, em suma, cada um confiava em seus conceitos, como num dote milagroso vindo de um mundo qualquer, igualmente milagroso", mas é preciso substituir a confiança pela desconfiança, e é dos conceitos que o filósofo deve desconfiar mais, já que não foi ele mesmo que os criou (Platão o sabia bem, embora tenha ensinado o contrário...). De que valeira um filósofo de quem se poderia dizer: ele não criou conceito? Vemos ao mesmo o que a filosofia não é: ela não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação, mesmo se às vezes acreditou ser uma coisa, às vezes outra, em razão da capacidade de toda disciplina de engendrar sua próprias ilusões e se esconder por trás de uma névoa que emite especialmente. Ela não é contemplação, pois as contemplações são as próprias coisas vistas na criação de seus próprios conceitos. Ela não é reflexão, porque ninguém precisa da filosofia para refletir sobre o que quer que seja: acreditamos estar dando muito à filosofia ao fazer dela a arte de reflexão, mas estamos lhe tirando tudo, pois os matemáticos nunca esperaram os filósofos para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre a pintura ou a música; dizer que eles se tornam então filósofos é uma brincadeira de mau gosto, já que a reflexão deles pertence à sua criação respectiva. E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação, que só trabalha com opiniões em potencial, para criar "consensus" e não conceito.
*Gilles Deleuze

Χρόνος (Chronos)

Em vezes é como se o tempo rastejasse mais lento, o ar é denso, quase viscoso. Em vezes essa sensação me acomete, como estar dopado numa camisa de força. Aparte isso, o mundo pulsa a virulência das horas irresgatáveis, por entre animais e homens, cospe a fúria do tempo a recolher seus tributos. Olho a medo as sacadas distantes, onde em tempos remotos haviam castelãs virtuosas à minha espera. Constato. A vida corrompe até os mais distantes. Sensação; as mulheres são espectros, a virtude também, todas as coisas são invenções de um recém-chegado a tentar redefinir a dor que se sente na queda.

Tenho medo que meu corpo seja composto da argila dessa terra, que ele tenha se fundido ao chão enquanto os anos passavam sem alarde. A noite passa qual quimera, como passa o desfile de sombras, como passam e se aninham em mim tudo o que há de grave e profundo. Queria buscar na cidade um propósito novo, lá caminhando só encontrei postes e praças. Pelas ruas um silêncio inconsútil reina soberano, às vezes um cão cruza o caminho; silencioso.

O ar é de gelatina, definitivamente baço, mesmo ao sopé das luzes de sódio. Os sinos do campanário anunciam indiferentes, todos tem de prestar contas um dia. Antes, os que devem a si mesmos. Viver pra morrer, morrer pra viver. O pasmo de existir é oscilante em olhos e mãos, postura imobilizada. A única coisa digna de nota parece ser o dilema. Bem aventurados os que não nasceram...
*Leandro M. de Oliveira

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Nothing Else Matters

O homem mais solitário

Prólogo (buscando justificação);

Que pra ser livre é preciso ser solitário. Absorver a indignidade alheia frente ao que te se é mais sacro. Caminhar até aquela fenda escura donde reside a vida além do mito cotidiano. Abandonar-se, mil vezes um milhão à ida sem volta, resignar e inromper na peregrinação sem ícones. Eis o desafio do novo, o impulso que nasce derradeiro insuspeitado, que faz o homem abandonar a condição de homem e recriar-se no além. Mudado em besta, pedra e esquecimento, segue ele o caminho do qual ninguém retorna. Urge amar como um Jesus ressuscitado e odiar como um nazista convicto. O homem livre não tem padrão. A ele cabe, entre puritanos dançar como um bandido bêbado, e entre malfeitores pregar os códigos da ética mais mosaica. A estrada é erma, no ermo qualquer homem vacila sua crença, é preciso ter fé que toda fé vazia em si. O ponto de chegada não existe, entre paredes e objetos só a aceitação do vôo solo é o que o faz conhecer um mundo em além mundos. Ser todas as coisas e ao mesmo tempo não ser nada, estar em todos lugares sem nunca sair de si mesmo.

Tudo é construção. Tudo é um simulacro copioso do nada que os miseráveis inventaram para conceberem sua desgraça em inferior medida. O vazio é a única realidade possível.

Assim, apartado o caos da vida; que é homem, pedra, ou idéia? Que são todas as coisas senão coisa alguma que a mente fingi, distorce, direciona ou aborta? É uma estrada sem pavimento, um jogar-se aos lobos, uma rota sem mapa. O regresso ao comando de si exige abandono e um pouco mais daquilo que é impensável à maioria dos homens, impedidos de um passo a frente, inúteis para sempre. A natureza é implacável. Quantos gênios se perderam entre o instante de agir e o pudor à transgressão do que lhes era imposta? Imobilizados pelo medo, descartáveis como lenços de papel. Não se deve consumir de outros homens idéias ou carne (como é comum nesses tempos), canibalizar-se é ordem do dia. Na indigestão dos tecidos mui familiares, no adocicado ferruginoso do sangue a ser metabolizado pelo mesmo sangue, um algo novo há de surgir. Para essa vida pré-fabricada, nauseantemente confortável, é decretado o fim. É tempo de ser selvagem, o último rei sempre esteve enforcado nas entranhas do último papa, entre a visão e a percepção as brumas do inglório Zeitgeist¹ turbaram um pouco o siso. É hora de recobrar-se da letargia. O que existe para o homem que abraça a caminhada? Nada. Tudo!

Capítulo um: Abençoado seja;

Para além de qualquer revolta meramente desnecessária (como todas o são), as impossibilidades são o conjunto de fatores que moldam a vida. A cara na porta, o carro que nunca se pode possuir, o restaurante em que nunca se pode comer, são no mundo em que o verbo ter a tudo conjuga, determinantes que canalizam as buscas do indivíduo. O homem desentranha da privação o fomento da transcendência, a nascente da força e o domínio do gênio que impulsiona para o além, vivem encerrados no não ser. Pegar o que se tem a mão e daí alçar vôos maiores, quando não há rebelião, tudo é possível. O homo sapiens é como uma árvore, com raízes cravadas à terra mas, tendo no cume uma copa que se abre ao infinito. A chave do universo dorme nesse chão e nessa abertura, não é preciso buscá-la em outro lugar. O caminho da aceitação é a senda da vida plena, os boicotes do destino não vem como castigo, com efeito como impulso ao aprimoramento.
O ser humano está nessa terra como síntese do todo, e participando de cada instância da vida deve realizar-se compreendendo então a totalidade de que é forjado. As privações são apenas uma forma de nos manter mais gratos na conquista e menos soberbos no desfrute. Tudo é perfeito. Abençoado seja.

Capítulo dois: Maldito esteja;

A vida é uma mentira. A compaixão é anestesia barata que cheira a decadência. Essa sandice propagada pelos ressentidos não é mais que um plano para o agrilhoar-se daqueles que nascem livres. “Se te baterem em um lado da face ofereça o outro”, eis aí a forma mais tirana de agressão. O homem de bem só deve odiar seus inimigos, é a única forma de digna de honrá-los. A vida é uma acidente da matéria, o mundo é fruto das predisposições convulsivas da natureza. Fomos todos abortados! Todos frutos indesejados de uma relação maldita entre o natural e o acaso. O amor só é possível na cabeça de alguns sacerdotes e nos filmes de Hollywood, esse ídolo onisciente tem o mesmo fundamento das divagações de um bêbado.

(à minha frente um homem clama misericórdia divina, é preciso dizer a verdade...)

Vocês esquartejaram Deus, comeram suas carnes, e agora com o dedo na garganta querem vomitar pra fora a graça e a clemência que o tempo jamais permitiu aos que hesitam. Abandonem o cadáver, abrace o vivo, o que anda pela terra. O homem herdou um paraíso e fez dele um esgoto a céu aberto. Maldito seja!

Epílogo (das impossibilidades);

O tempo passou, a juventude também. As palavras tornaram alheias nos meandros de seu próprio labirinto. O escritor perdeu-se à procura delas...
Morreu por fim, em desencanto, ao descobrir que a emoção é muda, cega e surda. Toda representação é vã. A noite esmoreceu e o sonho com ela.
Abençoada a vida. Maldita a vida. Incerto o caminho.
*Leandro M. de Oliveira
1 - Zeitgeist é um termo alemão cuja tradução significa espírito de época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. O Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo.

Quanto Mais se Ama Mais Fraco se É ?

Nas relações amorosas o único sentimento que não funciona é o da piedade. Quando é o caso de que se devesse manifestar, o que surge não é a piedade mas o asco ou a irritação. Eis porque em relação alguma se é tão cruel. Todos os sentimentos têm o seu contraponto. Excluída a piedade, a crueldade não o tem. Por experiência se pode saber quanto se sofre quando não se é amado. Mas isso de nada vale quando se não ama quem nos ama: é-se de pedra e implacável.

Decerto, tudo se pode pedir e obter. Exceto que nos amem, porque nenhum sentir depende da nossa vontade. Mas só no amor se é intolerante e cruel. Porque mostrar amor a quem nos não ama rebaixa-nos a um nível de degradação. E a degradação só nos dá lástima e repulsa. A única possibilidade de se ser amado por quem nos não ama é parecer que se não ama. Então não se desce e assim o outro não sobe. E então, porque não sobe, ele tem menos apreço por si, ou seja, mais apreço pelo amante. O jogo do amor é um jogo de forças. Quanto mais se ama mais fraco se é. E em todas as situações a compaixão tem um limite. Abaixo de um certo grau a compaixão acaba e a repugnância começa. Assim, quanto mais se ama mais se baixa na escala para quem ao amor não corresponde.
*Vergílio Ferreira

Gramsci contra o apatismo

Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heróica.

A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às conseqüências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.

A maior parte deles, porém, perante fatos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.
*Antonio Gramsci

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.


Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra; lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
*João Cabral de Melo Neto

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Não: devagar

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.

Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar…
Sim, devagar…
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar…

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima…
Talvez isso tudo…
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar…
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo…
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

*Fernando Pessoa

La nausée

Percorro a sala dos olhos. Que farsa! Toda essa gente sentada com um ar sério; comem. Não, não comem: reparam forças para levar a bom termo a tarefa que lhes foi atribuída. Cada um deles tem o seu pequeno entretenimento pessoal que os impede de se aperceberem que existem; não há nem um que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa.

Não era o Autodidata que me dizia outro dia: “Ninguém era mais qualificado que Nouçapié para empreender esta vasta síntese?” Cada um faz a sua pequena coisa e ninguém é mais qualificado do que ele para a fazer. Ninguém mais qualificado que o caixeiro viajante para usar a pasta Swan. Ninguém mais qualificado do que esse interessante rapaz, para espreitar por debaixo das saias da sua vizinha. E eu, eu estou entre eles, se repararem em mim pensarão que ninguém é mais qualificado que eu para fazer o que faço. Mas eu sei. Não tenho ar de nada, mas sei que existo e eles também existem. Se conhecesse a Arte de persuadir, iria sentar-me perto de um destes senhores de cabelos brancos e explicar-lhe-ia o que é a existência. Ao imaginar a cara que faria, desatei a rir.

O Autodidata olhava-me surpreendido. Gostaria de parar; mas não podia: ri até à lágrimas.

- Está muito feliz, senhor, disse-me o Autodidata com ar circunspecto.

-É porque penso, disse-lhe a rir, que aqui estamos, iguais ao que somos, a comer e a beber para manter a nossa preciosa existência e, que não há nada, nada, nenhuma razão de existir.
*Jean-Paul Sartre

O cientista é um filósofo fracassado?

Pode (...) perguntar-se como é que eu, um filósofo, podia envolver-me em assuntos tratados por cientistas. A melhor maneira de responder a isto é fazendo uma outra pergunta: estamos no domínio da ciência ou da filosofia? Quando estudamos a interação entre dois corpos físicos, por exemplo, entre duas partículas subatômicas, estamos no domínio da ciência; quando perguntamos como podem essas partículas subatômicas – ou qualquer coisa física – existir, e porque é que elas existem, estamos no domínio da filosofia. Quando retiramos conclusões filosóficas a partir de dados científicos, estamos a pensar como filósofos.

Em 2004 afirmei que a origem da vida não pode ser explicada apenas a partir da matéria. Os meus críticos responderam anunciando triunfalmente que eu não tinha lido um certo artigo aparecido numa revista científica ou que não estava a par dos últimos desenvolvimentos da abiogênese (a geração espontânea de vida a partir de matéria inanimada). Com estas críticas, mostravam não entender o que estava em causa. Eu não estava preocupado com este ou com aquele fato da química ou da genética, mas com a questão fundamental do que significa dizer que algo possui vida e da relação que isso tem com o conjunto dos fatos químicos e genéticos considerados como um todo. Pensar a este nível é pensar como filósofo. E, correndo o risco de parecer imodesto, não posso deixar de dizer que este é trabalho para filósofos e não para cientistas enquanto tal. As aptidões específicas dos cientistas não lhes conferem qualquer vantagem quando se trata de pensar sobre esta questão, tal como uma estrela do basebol não tem especial competência para determinar os benefícios para os dentes de uma determinado creme dental.

É claro que os cientistas, tal como qualquer outra pessoa, são livres de pensar como filósofos. E é também claro que nem todos os cientistas concordarão com a minha interpretação particular dos fatos postos por eles à nossa disposição. Mas as suas divergências têm de se manter assentes em pés filosóficos. Por outras palavras, os cientistas têm de perceber que a autoridade ou capacidade científicas não têm qualquer relevância na análise filosófica. Isto não será difícil de perceber. Se expuserem as suas opiniões sobre a economia da ciência, elaborando por exemplo teorias sobre o número de empregos criados no âmbito da ciência e da tecnologia, terão de apresentar os seus argumentos diante do tribunal da análise econômica. Do mesmo modo, um cientista que fala como filósofo terá de apresentar argumentos filosóficos. Como disse o próprio Einstein:
"O homem de ciência é um fraco filósofo".
*Antony Flew

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Poema de uma quarta-feira de cinzas

Entre a turba grosseira e fútil
Um pierrot doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
Feita de sonho e de desgraça…

O seu delírio manso agrupa
Atrás dele os maus e os basbaques.
Este o indigita, este outro apupa…
Indiferente a tais ataques,

Nublada a vista em pranto inútil,
Dolorosamente ele passa.
Veste-o uma túnica inconsútil,
Feita de sonho e de desgraça...
*Manuel Bandeira

Toda palavra é crueldade


Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser

Tudo será
capaz de ferir. Será.
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade)


*Orides Fontela


A propósito do autor (por Contador Borges):
"Se a filosofia nunca soube ao certo o que é o ser (a metafísica ocidental só fez ocultá-lo ainda mais), em Heidegger ele ressurge iluminado pela linguagem poética.
A poesia é a “casa do ser”; só através dela é possível comemorá-lo sem perdê-lo de vista; só ela é capaz de evocá-lo em seu movimento fulgurante. O ser é uma surpresa que os poemas ajudam a vislumbrar.
Seis séculos antes de Cristo, a filosofia nasce justamente em confronto com a poesia (e seus mitos), que antes de emancipar-se como forma autônoma destinava-se à revelação do sagrado.
A idéia heideggeriana de que a poesia nos lembra o ser encontra-se em sua “Carta sobre o humanismo”, a qual se encerra com estas palavras: “na presente indigência do mundo é necessário: menos filosofia e mais desvelo do pensar, menos literatura e mais cultivo da letra”.
Orides Fontela provavelmente pensava nisso quando disse num depoimento: ‘Nossa época é terrível, somos poetas em tempo de desgraça”.
Orides se foi. Já não presencia os infortúnios de nosso tempo nem deles participa, mas sua poesia cristalina continua exercendo o “desvelo do pensar” e o “cultivo da letra”, de que fala Heidegger, provocando o ser à luz da linguagem. Aliás, do que mais se ocupam seus poemas?
Orides Fontela, como Paul Celan, é daqueles artífices que clareiam o ser ao mesmo tempo em que propõem uma indagação essencial sobre o ser da própria poesia. Ler sua obra é constatar que o ser em geral, no sentido heideggeriano, questão sempre aberta, e o ser lucífugo da poesia têm idêntica irradiação. Ambos podem nomear-se como aquilo que não se sabe ao certo o que é, mas que se deixa perceber no mesmo instante em que se furta como pedra filosofal da leitura. “Natureza ama ocultar-se”, conforme o célebre fragmento de Heráclito."
*Orides Fontela
**Contador Borges

Filosofia de Carnaval (uma fábula)

Manhã de um sábado de carnaval, num sobrado antigo, não muito longe da Igreja do Monte, em Olinda.
Um passante esfarrapado anuncia no meio da rua:
- Quem quer comprar vassoura de piaçava para deixar a casa bem limpinha depois da folia?
Dona Filósofa vai até a janela do sobrado:
- O Sr. não teria, por acaso, uma vassoura voadora? Preciso de uma para completar a minha fantasia de Platônica Perplexa!
- Quer dizer que a senhora quer alçar vôo até as transcendências? Mas em que plano pretende chegar - ao das entidades matemáticas, ao das Formas ideais, ou pretende mesmo contemplar o Bem em si?
- E o Sr. poderia me arranjar uma vassoura para vôos tão elevados?
- Só depende de suas reservas de pão espiritual e do vinho da alma.
- Ah, meu Sr., lamento muito, mas o meu forno e a minha adega estão quase vazios...
- Antes estivessem, minha cara Dona Filósofa; de fato, eles estão repletos, plenos de seus apetites e de sua preguiça.
- Ora bolas, mas o que posso fazer contra a minha fome e o meu cansaço?
- Nada, minha senhora, nada. A questão é essa: aprender a querer e a fazer como se fosse nada, simplesmente nada!
- E o que responder a meus desejos?
- Ora bolas, agora digo eu, minha cara, a senhora é surda? Nada, nada mesmo, e sobretudo não ousar sequer tentar escapar do estado de desejar! Seus estudos não lhe ensinaram que esse é o estigma da condição humana? Porventura, não aprendeu, depois de tantos anos, uma lição tão elementar?
- Como é possível, então, desejar sem preencher de objetos meus desejos?
- Com mais coragem e humildade a senhora aprenderia. Compreenderia que não está a seu alcance saber de que vinho e de que pão deve se alimentar! E, nesse caso, só lhe restaria desejar, desejar à toa, em vão... Desejar com intensidade, pensar com atenção, operar com diligência, mas sem se deixar enredar por quaisquer objetos ou objetivos. Lembre-se das palavras do Pater: Seja feita a Vossa vontade... Por acaso, a senhora pretende saber qual é a vontade que vem das transcendências? Já não viveu tantas vezes a experiência do desencanto, até quando julgava saber o melhor para si? Não tente pois, minha senhora, preencher a sua fome com toda a pretensão de sua imaginação. Limite-se a reconhecê-la e, creia-me, isto não seria pouco, seria o limiar da plenitude possível...
- O Sr. sabe se existe algum Fundo de Reservas Espirituais (uma espécie de avesso do FMI) que permitisse acesso a algum crédito sobrenatural, algum empréstimo dessa sabedoria, sem juros existenciais ou outros encargos?
- A senhora quer crédito maior do que a Vida mesma - a chance de, a cada dia, poder contemplar o Sol e recomeçar?
Antes de tudo, é preciso aprender que as melhores vassouras não servem para juntar ou acumular; servem para limpar e esvaziar. Por enquanto, Dona Filósofa, o melhor mesmo é a senhora começar aprendendo a lição mais simples e eficaz desta colorida vassoura de piaçava. Ela servirá também para complementar o faz de conta da sua fantasia. Contente-se com isso; cuide-se bem e brinque um alegre carnaval; não menospreze, sem conhecimento de causa e sem a devida iniciação, as cores e as luzes deste mundo a seu alcance. No próximo ano, quem sabe... Estou sempre passando pelas ruas como os melhores e mais antigos blocos de folia...
*Emília Maria M. de Morais

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A cara da democracia (Hipótese de Huxley)

“Os homens são atormentados pelo pecado original dos seus instintos anti-sociais, que permanecem mais ou menos uniformes através dos tempos. A tendência para a corrupção está implantada na natureza humana desde o princípio. Alguns homens têm força suficiente para resistir a essa tendência, outros não a têm. Tem havido corrupção sob todo o sistema de governo.

A corrupção sob o sistema democrático não é pior, nos casos individuais, do que a corrupção sob a autocracia. Há meramente mais, pela simples razão de que onde o governo é popular, mais gente tem oportunidade para agir corruptamente à custa do Estado do que nos países onde o governo é autocrático.

Nos estados autocraticamente organizados, o espólio do governo é compartilhado entre poucos. Nos estados democráticos há muito mais pretendentes, que só podem ser satisfeitos com uma quantidade muito maior de espólio que seria necessário para satisfazer os poucos aristocratas. A experiência demonstrou que o governo democrático é geralmente muito mais dispendioso do que o governo por poucos.”

*Aldous Huxley

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Brasil (um conto de letargia)

Parece ficção mas, não é. O texto abaixo rendeu à Tatiana Merlino o 1º lugar no 31º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na categoria revista, aparentemente é sobre o judiciário nacional e seu descaso para com os menos afortunados. Todavia, se buscarmos além, uma pergunta habita as entrelinhas; Por quê o brasileiro é tão alheio às privações a ele infligidas? A cada dia passado mais e mais “josés” e “Marias” são tolhidos em seus direitos tendo que assistir indefesos o massacre de sua cidadania. A justiça não é cega, longe disso, ela tem olho clínico para selecionar seus bodes expiatórios, esses em geral, pessoas desvalidas de dinheiro, estrutura e amparo. Pessoas comuns, que poderiam muito bem serem eu ou você, subtraídas de sua vida extremamente comum para uma viagem sem volta ao reino obscuro das frias estatísticas. Sem dignidade, sem perspectiva, sem direitos.
Como é possível ter nostalgia por um tempo em que não se viveu? Ouço ecos de movimentos estudantis, passeatas sindicais, sociedade civil pró-anistia... Pra onde foi todo mundo? Quem nos roubou a capacidade de revolta? “A internet? Ah, a internet! No Orkut eu consigo parecer tão descolado... O carnaval? Ah, o deliciosamente pecaminoso carnaval! Tantas bundas, tantos peitos, orgia gratuita, produto de exportação... A TV? Ah, a TV! O Big Brother me deixa tão confortado, é como estar sedado frente a um pelotão de fuzilamento...” O Brasil é o país do futuro, sim. A grande questão é que os tempos vindouros nascerão das escolhas do agora. Façam suas apostas.

“Maria Aparecida evita olhar para sua imagem refletida no espelho. Faz quatro anos que a jovem paulistana saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria esquecer o que sofreu durante um ano de detenção. Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar um xampu e um condicionador que, juntos, valiam 24 reais. Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por seu “crime”: ficou cega do olho direito.

Portadora de “retardo mental moderado”, a ex-empregada doméstica foi detida em flagrante em abril de 2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada diretamente para a prisão, onde passou a dividir uma cela com outras 25 mulheres. Em surto, a jovem não dormia durante a noite, comia o que encontrava pelo chão, urinava na roupa.
Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto, a carceragem lançou uma bomba de gás lacrimogêneo na área das detentas. Uma delas resolveu jogar água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura do gás com o líquido fez com que seu olho fosse sendo queimado pouco a pouco. “Parecia que tinha um bicho me comendo lá dentro”, conta.
A pedido das colegas de pavilhão, que não agüentavam mais os gritos de dor e os barulhos provocados pela moça, ela foi transferida para o “seguro”, onde ficam as presas ameaçadas de morte. Maria Aparecida passou a apanhar dia e noite. “Eu chorava muito de dor no olho, e elas começaram a me bater com cabo de vassoura”, relembra, emocionada. Somente quando compareceu à audiência do seu caso, sete meses depois de ter sido detida, sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada. Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do olho direito.
Foi nessa época que sua irmã Gisleine procurou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para a advogada Sônia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Sônia entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado. Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido presa por causa de 24 reais.
A advogada também entrou com um pedido de extinção da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”, aplicado quando o valor do patrimônio furtado é tão baixo que não vale a pena a justiça dar continuidade ao caso. No entanto, até hoje, o processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua em liberdade provisória.
A situação indigna Gisleine. “É um descaso muito grande. Já era para esse julgamento ter acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse xampu que não chegou a utilizar”, critica. “Tem gente que não precisa estar na cadeia. Existem penas alternativas e o caso dela não seria de prisão, mas sim de internação, já que desde os 14 anos ela toma medicação controlada”, afirma.

Justiça seletiva

O mesmo recurso jurídico – o habeas corpus – pedido pela advogada Sônia Drigo para que Maria Aparecida respondesse ao processo em liberdade foi solicitado e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas um “pouco” mais rica: a empresária Eliana Tranchesi, proprietária da butique de luxo Daslu, em São Paulo, condenada em primeira instância a uma pena de 94.5 anos de prisão. Três pelo crime de formação de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica”.

***
E enquanto isso na avenida, tudo vai bem...
*Tatiana Merlin
**Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Formas de conhecer

Na linguagem vulgar, quando dizemos que alguém conhece algo podemos querer dizer coisas diferentes com “conhece”. Há diferentes sentidos de “conhecimento” ou, digamos, diferentes tipos de conhecimento. De entre estes, os mais significativos são (1) o conhecimento proposicional, (2) o conhecimento por contato e (3) o "saber-fazer”. Comecemos pelo conhecimento proposicional.
O conhecimento proposicional é o conhecimento de fatos ou de proposições verdadeiras. Consideremos os exemplos seguintes de conhecimento proposicional:

(1) O João sabe que César foi assassinado.

(2) O João sabe que o céu é azul.


Nestes exemplos, os objetos do conhecimento, ou aquilo que é conhecido, são, respectivamente, as proposições verdadeiras César foi assassinado e o céu é azul.
É importante distinguir entre frases e proposições. Considerem-se duas pessoas, o Paulo e o Pedro. Suponhamos que cada um deles está convencido de que o céu é azul. Só que o Paulo apenas sabe falar Português e o Pedro apenas Francês. Ao expressar a sua crença, o Paulo diria “O céu é azul.” e o Pedro “Le ciel est bleu.” Embora cada um deles expresse a sua crença através de uma frase diferente, acreditam ambos na mesma proposição. Do mesmo modo, uma vez que ambos sabem que o céu é azul, conhecem a mesma proposição.
Podemos pensar a crença como uma relação entre um sujeito e uma proposição. Se a proposição de que estamos convencidos é verdadeira, então a nossa crença é verdadeira e se a proposição de que estamos convencidos é falsa, então a nossa crença é falsa. Podemos também pensar o conhecimento proposicional como uma relação entre um sujeito e uma proposição. Mais precisamente, o conhecimento proposicional é uma relação entre um sujeito e uma proposição verdadeira.
O conhecimento proposicional não é a única espécie de conhecimento. Suponhamos, por exemplo, que alguém faz as afirmações seguintes:

(3) O João conhece o presidente dos Estados Unidos.

(4) O João conhece o Papa.


Podemos naturalmente pensar que estas afirmações implicam que o João conhece pessoalmente, quer o presidente dos Estados Unidos, quer o Papa. Podemos naturalmente pensar que (3) e (4) implicam que o João esteve na presença deles. Se realmente entendemos (3) e (4) deste modo, então estamos a atribuir ao João um conhecimento por contacto. Dizer que o João conhece alguém por contacto implica que o conhece pessoalmente ou que esteve na sua presença.
É necessário distinguir o conhecimento por contacto do conhecimento proposicional. É óbvio que podemos ter bastante conhecimento proposicional sobre alguém sem ter conhecimento por contacto dessa pessoa. Posso, por exemplo, ter bastante conhecimento proposicional sobre o presidente. Posso saber que ele nasceu nesta ou naquela data e que ele frequentou tal ou tal universidade. Posso saber muitas mais proposições verdadeiras semelhantes acerca dele. Porém, do fato de ter bastante conhecimento proposicional sobre o presidente não se segue que tenho dele conhecimento por contacto, visto que não o conheço pessoalmente nem estive alguma vez na sua presença.
Na linguagem vulgar, quando dizemos “A conhece B”, estamos por vezes a usar “conhece” no sentido proposicional, outras vezes no sentido do conhecimento por contacto. Suponha-se, por exemplo, que um detetive diz estas palavras sinistras “Conheço este assassino. Ele vai matar outra vez - e brevemente.” O nosso detetive não tem de ser entendido como querendo dizer que esteve realmente na presença do assassino ou que o conhece pessoalmente. Pode querer dizer simplesmente que sabe que o assassino é do tipo que brevemente atacará outra vez. Detém uma certa espécie de conhecimento proposicional acerca do assassino. Da mesma forma, se eu estou impressionado com o vasto conhecimento que o João tem sobre César, posso dizer “O João conhece realmente César.” É claro que estou a dar a entender que o João tem muito conhecimento proposicional sobre César e não que o João esteve na sua presença.
Além de pessoas, podemos conhecer coisas por contacto. Podemos, por exemplo, conhecer Paris ou o sabor da manga por contacto. Se temos esse tipo de conhecimento de Paris é porque lá estivemos; e se temos esse tipo de conhecimento do sabor da manga é porque provamos manga. Mais uma vez, é necessário distinguir o conhecimento deste tipo do conhecimento proposicional. Podemos ter muito conhecimento proposicional acerca de Paris, sabendo quais são os principais boulevards, quando foi fundada a cidade, sabendo onde se localizam vários pontos marcantes da cidade, sem ter o tipo de conhecimento que decorre de ter lá estado.
Consideremos ainda o "saber-fazer.” Por vezes, quando dizemos “A sabe fazer X” queremos dizer ou dar a entender que A tem aptidão para X. Noutros casos, porém, quando dizemos que “A sabe fazer X” não queremos dizer que A tem aptidão para X. Assim, há um sentido em que “saber fazer X” sugere termos aptidão para X e outro que não o sugere. De acordo com o primeiro sentido de "saber-fazer”

(5) O João sabe tocar uma sonata para piano.

Implica

(6) O João tem aptidão para tocar uma sonata para piano.

Lembremos, porém, que há outro sentido de saber fazer X que não implica que se tenha aptidão para X. Para ter uma idéia deste segundo sentido, suponhamos que o João é um violinista talentoso que lê bem música, mas não é capaz de tocar piano. Imaginemos que ele tem um profundo conhecimento sobre como tocar uma certa sonata para piano; pode saber, por exemplo, que o indicador direito deve tocar tal nota e que o polegar direito uma outra, e assim por diante. Na verdade, o João seria capaz de descrever precisamente como tocar a peça, mesmo não sendo capaz, ele mesmo, de a tocar. Neste caso, podemos dizer que o João sabe tocar a sonata, embora não tenha aptidão para tocá-la. Neste sentido de “saber-fazer”, (5) não implica (6). Há, pois, um sentido de “saber fazer" algo que se resume simplesmente a ter conhecimento proposicional sobre como fazê-lo. O violinista João, por exemplo, tem bastante conhecimento proposicional sobre como tocar uma sonata para piano, mas noutro sentido de “saber-fazer” não sabe tocar uma sonata para piano, pois falta-lhe a aptidão para tal.
Como se ilustra pelos casos anteriores, podemos ter muito conhecimento proposicional sobre como fazer algo sem ter a aptidão para o fazer. Inversamente, podemos ter a aptidão para fazer algo sem ter muito conhecimento proposicional sobre o assunto. Para perceber esta situação, imaginemos um fisiologista que tem muito conhecimento proposicional sobre como andar. Estudou o modo como precisamos de transferir peso de um pé para outro, como os joelhos se devem dobrar, que músculos trabalham, etc. O nosso perito pode ter um grande conhecimento proposicional sobre como andar. Consideremos agora a jovem Maria. A Maria tem dez meses e acabou de aprender a andar. Ela sabe andar, mas podemos facilmente imaginar que lhe falta o conhecimento proposicional do perito sobre o assunto. O conhecimento proposicional da Maria sobre como andar é provavelmente bastante fraco, se é que é algum.
Distinguimos o conhecimento proposicional, quer do conhecimento por contacto, quer do saber fazer algo. Tradicionalmente, os filósofos preocuparam-se mais com o conhecimento proposicional. Uma das razões disto é que os filósofos se preocupam tipicamente com o que é verdadeiro. Querem saber o que é verdadeiro e avaliar e apreciar as suas próprias pretensões de conhecimento da verdade, bem como as dos outros. Quando, por exemplo, os filósofos se interrogam sobre a extensão do nosso conhecimento, preocupam-se tipicamente com a extensão do nosso conhecimento proposicional, com o número de verdades que conhecemos. Quando um filósofo diz que sabe que há objetos externos e outro o nega, há um desacordo sobre a existência de um certo tipo de conhecimento proposicional; há desacordo sobre o conhecimento de um certo tipo de verdades . O conhecimento por contato e o "saber-fazer” não estão “focados na verdade” como o conhecimento proposicional.
*Noah Lemos

O salário do determinismo

(O determinismo¹) poderá, na verdade, ser uma doutrina verdadeira. Mas se fosse verdadeira, e se começassemos a levá-la a sério, então, de fato, as mudanças em toda a nossa linguagem, na terminologia moral, nas nossas atitudes em relação aos outros, na nossa visão da história, da sociedade, e de tudo o resto, seriam tão profundas que é até difícil imaginar onde isso levaria. Os conceitos de louvor e censura, inocência e culpa e de responsabilidade individual, dos quais partimos, são apenas uma pequena parte da estrutura que entraria em colapso e desapareceria.

As nossas palavras – a nossa maneira de falar e de pensar – seria literalmente transformada de maneira inimaginável. Defendo que as noções de escolha, de responsabilidade, de liberdade, estão tão profundamente entranhadas na nossa maneira de pensar que a nossa nova vida como criaturas de um mundo onde estes conceitos estivessem realmente ausentes pode ser apenas concebida com muita dificuldade.

1 - Determinismo é a doutrina que afirma serem todos os acontecimentos, inclusive vontades e escolhas humanas, causados por acontecimentos anteriores, ou seja, o homem é fruto direto do meio, logo, destituído de liberdade total de decidir e de influir nos fenômenos em que toma parte, existe liberdade , mas esta liberdade condicionada a natureza do evento em um determinado instante. O indivíduo faz exatamente aquilo que tinha de fazer e não poderia fazer outra coisa; a determinação de seus atos pertence à força de certas causas, externas e internas.
*Isaiah Berlin