quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A ALEGRIA E O TRÁGICO EM NIETZSCHE

Roberto Machado é o convidado da série "Café Filosófico" e nessa oportunidade apresenta a construção do trágico no pensamento de Nietzsche. Uma aula de muito bom conteúdo acerca das formas poéticas de obtenção do sublime pela consciência do ser enquanto objeto decadente. Aconselho a tdos...







*Leandro M. de Oliveira

Indelicadeza igual a decadência?

Assim, entre a quantidade de grandes virtudes do gênero Bem, Belo, Verdadeiro, Justo, procuraremos em vão uma minúscula virtude capaz de produzir efeitos magníficos. O BEM, sim, mas como? De que modo? Dissertar com ídolos maiúsculos afasta-nos da realidade que é, no entanto, o terreno de toda a intersubjetividade ética. (...)

A delicadeza fornece a voz de acesso às realizações morais. Pequena porta de um grande castelo, ela conduz diretamente ao outro. Que diz? Afirma diante do outro que o vimos. Logo, que ele é. Segurar uma porta, praticar o ritual das fórmulas, perpetuar a lógica das boas maneiras, saber agradecer, acolher, dar, contribuir para uma alegria necessária na comunidade minimal - dois - eis como fazer ética. Criar a moral, encarnar os valores. O saber viver como saber ser.

A civilidade, a gentileza, a doçura, a cortesia, a urbanidade, o tato, a boa-vontade, a reserva, a complacência, a generosidade, o dom, a despesa, a atenção, tantas variações sobre o tema da moral hedonista. O cálculo hedonista supõe, assim como o cálculo mental, uma prática regular precisamente para gerar a velocidade necessária. Quanto menos praticarmos a gentileza, mais ela se torna difícil de concretizar. Inversamente, quanto mais a ativamos, melhor ela funciona. O hábito supõe o adestramento neurológico. Fora do campo ético, não encontramos senão um campo etológico. A indelicadeza caracteriza a selvageria. As civilizações mais pobres, mais sombrias, mais modestas, dispõem de regras de delicadeza. Só as civilizações divididas, em risco de desaparecer, submetidas por outras mais fortes, praticam a indelicadeza em larga escala (...)
*Michel Onfray

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Santa Claus is a "Bad Guy"

Que o natal é outra maldita invenção do comércio, qualquer pessoa com o mínimo de senso crítico pode constatar. E como sinceramente ha muito tempo me cansei de dialogar com a esquizofrenia capitalista, sem mais discussões, aí vai nosso singelo protesto com a música do "Garotos Podres" que tem aquela letrinha infame sobre essa personagem a meus olhos tão suspeita.

*Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Senhora Liberdade

Senhora Liberdade, curta metragem dirigido por Caco Souza e rodado em 2004, baseia-se na história de William da Silva Lima um dos idealizadores do atualmente denominado Comando Vermelho, movimento gerado no Instituto Penal Cândido Mendes em Ilha Grande (RJ) no final dos anos 1970. Memória viva dos primórdios do Comando Vermelho, William é o único sobrevivente desse período de formação do movimento criminoso mais articulado da história recente do país. Quando foi feita a entrevista que aparece no filme, William estava cumprindo 36 anos de pena no presídio Ary Franco, seu testemunho sobre a gênese da concepção de uma causa social para a atuação criminosa é de fundamental importância para a compreensão do contexto de violência urbana que nesses dias vem assolando as grandes cidades do Brasil. Ele relembra a convivência com os presos políticos (intelectualizados) da ditadura militar e as contribuições desse para a formatação da ideologia do grupo, que originalmente, diga-se de passagem, era focada em fazer uma espécie de justiça aos excluídos, levando até os marginalizados do sistema as coisas que o estado não era capaz. Isso tem reflexos claros na orientação atual das relações criminais do país. No estatuto do PCC por exemplo, ha uma menção direta da ligação ou influência exercida pelos ideais do Comando Vermelho, ele diz:
"Em coligação com o CV, iremos revolucionar o país de dentro das prisões e o nosso braço armado será o terror "dos poderosos" opressores e tiranos que usam o "anexo de Taubaté" e o Bangu 1 no Rio de Janeiro como instrumento de vingança da sociedade na fabricação de monstros".
Além disso o estatuto do PCC difunde várias das idéias centrais que nortearam a fundação do Comando Vermelho, como a proibição da prática de estupro, assalto e extorsão dentro das cadeias (cujo desrespeito é punido com a morte) e a formação de um caixa para financiar o grupo nas prisões e suas famílias do lado de fora.
Vale a pena assistir o depoimento desse sobrevivente.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sócrates contra a demagogia retórica

"É incrível como as histórias se repetem. Às vezes fico questionando sobre os líderes de nosso tempo, o quão mau intencionados são e foram, as técnicas de alienação, a forma como bajulam as massas, com suas mentiras e suas indulgências pré-fabricadas. As eternas promessas, pra sempre irrealizáveis... Mas, a verdade é que a demagogia não é um fenômeno da era moderna, nas linhas que seguem, retiradas de um texto platônico escrito ha 2.400 anos, começo a compreender que o homem esta para a dominação assim como dezembro tem estado para as chuvas. Em se tratando de história humana, desde eras remotas, talvez o impulso capital nas ações dos de nossa espécie seja mesmo a vontade de poder."

Sócrates -Vou expressar-me com mais clareza. Depois que concordamos, eu e tu, que há algo bom e também algo agradável, e que o agradável é diferente do bem, e que para a aquisição de cada um deles há uma espécie de exercício e de preparação: de uma parte a caça ao agradável, de outra, ao bem... Mas, a esse respeito, declara primeiro se estás ou não de acordo comigo. Estás?


Cálicles — Estou.

Sócrates — Então prossigamos, e começa por declarar-me se o que eu disse há pouco a estes aqui, te parece acertado, o que lhes disse foi que para mim a culinária não é arte, porém simples rotina, o que não se dá com a medicina, que é arte, firmado em que ela só trata da doença depois de estudar a sua natureza e conhecer a maneira por que atua, e no fato de poder apresentar a razão de ser de tudo isso, a medicina, enquanto a outra, que só visa o prazer, procede sem arte na prossecução de sua finalidade, e não examina nem a natureza do prazer nem a sua causa, procede pois de maneira inteiramente irracional, por assim dizer, e sem calcular coisa alguma, só alcançando pela prática e pela rotina uma noção vaga do que é costume fazer-se, com o que, precisamente, proporciona prazer. Inicialmente, desafio-te a considerar se há fundamento no que eu disse e se não existirão processos idênticos com relação à alma, alguns, de fato, baseados em arte e preocupados em promover os mais elevados interesses da alma, outros negligenciando de todo esses interesses e só cuidando, como no caso anterior,do prazer da alma e de que modo possa ser alcançado, mas sem distinguir entre os prazeres bons e os maus, com o que não se preocupam no mínimo, pois têm em vista apenas a produção do prazer, pouco importando se é para o bem ou para o mal. A meu ver, Cálicles, existem esses processos, que não sei definir a não ser como adulação, tanto em relação ao corpo como à alma, ou onde quer que sejam empregados com vistas à produção do prazer, sem considerarem se é em proveito ou detrimento próprio. A este respeito, como te comportas? Estás de acordo com esta maneira de pensar ou rejeita-a?

Cálicles — Não, não rejeito; pelo contrário: concordo, não só para ser agradável a Górgias, como para que chegues ao fim de tua demonstração.

Sócrates — E isto é válido só para uma alma, não o sendo para duas ou para muitas?

Cálicles — Não; vale também para duas e para muitas.

Sócrates — Sendo assim, é possível o desejo de agradar a um grande número de almas,
sem saber dos seus verdadeiros interesses? E agora, poderás dizer-me quais são as ocupações que produzem esse efeito?

(...)

Sócrates — Muito bem. E com relação à retórica que se dirige ao povo ateniense e ao de outras cidades de homens livres, que diremos que seja? És de parecer que os oradores falam sempre com a finalidade precípua do maior bem e que só têm em mira, com seus discursos, deixar virtuosos, quanto possível, os cidadãos? Ou, pelo contrário, só desejam agradar aos cidadãos e descuidam, no interesse próprio, dos interesses da comunidade, além de tratarem as multidões como a crianças, por só pensarem em lhes ser agradável, sem se preocuparem, no mínimo, se desse modo eles virão a ficar melhores ou piores?

Cálicles — Essa pergunta não é simples. Há oradores que dizem o que dizem no interesse dos cidadãos, e há outros como acabaste de descrever.

Sócrates — Isso basta-me. Se há, portanto, duas maneiras de falar ao povo, uma delas é adulação e oratória da pior espécie; a outra é algo belo, porque se preocupa com deixar boa quanto possível a alma dos cidadãos, esforçando-se para dizer o que é melhor, quer agrade quer não agrade ao auditório. Porém nunca viste oratória dessa espécie; e se já encontraste algum orador com semelhantes características, por que não declaraste quem ele seja?

Cálicles — Não, por Zeus! Não conheço nenhum orador nessas condições, pelo menos entre os modernos.

(...)
*Platão, Górgias 380 a.c.

domingo, 6 de dezembro de 2009

A literatura e o fim de tudo

A reflexão sobre a cultura está conspicuamente a tomar a forma de uma necrofilia. Esta já tem uma tradição centenária, se pensarmos que a primeira morte foi anunciada há um século quando Zarathustra anunciou então a morte de Deus e nos anunciou a visão do homem do futuro, o super-homem para além do bem e do mal, o qual representa uma transcendência ao mesmo tempo do humano e do divino.

A segunda morte teve lugar já no neste século [XX], após a Segunda Guerra Mundial, ao ser anunciada a morte do homem e, eo ipso, a inexequibilidade do projecto do super-homem. Estas duas mortes estão entre si relacionadas, uma vez que a morte de Deus foi causada pela ciência e a morte do homem foi causada por um produto da ciência, a máquina. Assim, enquanto a ciência levou à eliminação da percepção mágica do mundo, a máquina eliminou o comportamento mágico do homem e transformou-o num autómato.

Somos contemporâneos da terceira morte, a morte da Literatura, tal como ela é anunciada no ensaio de Hans Magnus Enzensberger com o depressivo título Mediocridade e Loucura. Os algozes da Literatura não são uma entidade abstracta, como a ciência, ou um objecto material, como máquina, eles são antes os consumidores dos meios de comunicação de massas, para os quais Hans Magnus Enzensberger adopta a designação hierárquica de «analfabetos secundários». Estes distinguem-se dos analfabetos primários sobretudo pelo facto de, além de saberem ler e escrever (com erros), estarem limitados a imitar a linguagem dos meios de comunicação de massas.

Assim, enquanto a contradição entre a magia e a ciência dá origem à morte de Deus, e a contradição entre a alma e a máquina dá origem à morte do homem, agora a contradição entre a linguagem da imaginação e a dos meios de comunicação de massas dá origem à morte da Literatura.

Mas a morte da Literatura não pode ser exclusivamente imputada aos analfabetos secundários, e a injustiça desta imputação torna-se mais óbvia se considerarmos os géneros literários tradicionais.

O fim da poesia épica tem de ser atribuído a causas alheias à cultura da audiência a quem o poeta épico se dirige. O sentido do poema épico consiste essencialmente em apoiar a configuração de uma concepção de Estado, já realizada ou a realizar. Mas como os fins que os Estados actualmente propõem aos seus súbditos não podem ser sublimados, porque são manifestamente imorais ou porque são simplesmente mercenários, a degradação da figura do Estado arrasta consigo a obsolescência da poesia épica.

A morte da poesia trágica é também independente da incultura das massas. Ao contrário, é um produto da cultura que está na origem do desaparecimento do género trágico. Este produto da cultura é a doutrina ética conhecida pelo nome de «voluntarismo», uma doutrina segundo a qual a vontade precede e determina a acção. Mas é óbvio que num mundo onde eu só faço aquilo que quero, deixo também de ter qualquer experiência trágica.

Enfim, no que diz respeito à poesia lírica, os temas do sujeito lírico e da sua união com a natureza são inconciliáveis com a catástrofe ecológica. Para o poeta lírico, o mundo não só deixou de ser mágico como se tornou repugnante: os rios, as florestas e a lua já o são, em breve seguem-se os planetas do sistema solar e o espaço cósmico em geral.

É preciso tornar cristalinamente óbvio em que é que consiste a minha diferença em relação às teses de Enzensberger. Sem dúvida que a constituição de uma plebe audiovisual, com um número sempre crescente de participantes, torna a Poesia impossível, uma vez que deixa de haver interlocutor para a asserção poética. Simplesmente a plebe audiovisual, que representa a negação da cultura, está paradoxalmente associada com alguns produtos da cultura, os quais também podem ser vistos como a causa eficiente da morte da Literatura.

Deixando agora de lado os factores de carácter político e económico que estão na origem da decadência da poesia épica e da poesia lírica, voltemo-nos uma vez mais para os factores endógenos da cultura. Além do voluntarismo, a que já aludi acima como responsável pela obsolescência da tragédia, a doutrina de estética literária conhecida pelo nome de «funcionalismo» produz efeitos em tudo idênticos aos do analfabetismo secundário.

Para o escritor funcionalista, o fim da obra literária é a comunicação de uma ideia. E tal como numa comunicação telefónica a forma está subordinada à informação a transmitir, assim também na obra de arte literária a forma é função da mensagem. Nestas circunstâncias, o valor de uma obra de arte literária é o valor da ideia nela representada. Enquanto para Auerbach a narrativa do Novo Testamento é responsável pela queda da doutrina clássica dos estilos, em virtude de uma mesma pessoa ser ao mesmo tempo uma reencarnação do sublime e do vulgar, agora estamos perante uma doutrina para a qual o estilo e a forma deixam de ser o fim da obra de arte literária.

Não é assim de surpreender que ao funcionalismo se viesse juntar aquela forma de cepticismo estético que é representada pelo relativismo, o ponto de vista da estética literária segundo o qual tudo tem igualmente o mesmo valor: não há fronteiras entre o literário e o não-literário, e é indiferente se se lê uma crónica da Bolsa ou uma página de Proust. Mas evidentemente se tudo é igual a tudo, então também não vale a pena dizer nada, e é esta genuinamente a morte da Literatura.

A consequência prática desta doutrina é a abolição da diferença entre o escritor e o analfabeto secundário, caminhando ambos para uma legitimação recíproca e sem conflitos. Os escritores legitimam a plebe audiovisual escrevendo sem estilo e sem forma, sem exigências para consigo ou para com o seu público, o qual, por sua vez, legitima o escritor não fazendo perguntas, porque nem autor nem leitor sabem o que é o ramo de Eneias, o que é que Ariana faz na ilha de Naxos.

Entretanto, cem anos de perplexidade chegaram para mostrar que Deus não morreu, uma vez que a todo o momento os deuses ressuscitam. A segunda prognose também ainda não se realizou e, embora pendurado à beira de um abismo, o homem ainda não morreu. Ambos, Deus e o homem, são uma criação da Literatura, do Logos, que é o princípio por meio do qual as coisas passam a ser. Assim a morte da Literatura é o Apocalipse.
*M. S. Lourenço

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Anarquismo (ou; daquilo de que é feito o homem?)

A Noite e o Caos são parte de mim. Dato do silêncio das estrelas. Sou o efeito de uma causa do tempo do Universo [e que o excede, talvez]. Para me encontrar tenho de me procurar nas flores, e nas aves, nos campos e nas cidades, nos actos, nas palavras e pensamentos dos homens, na luz do sol e nos escombros esquecidos de mundos que já pereceram.

Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho. Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus.

Na minha presença hodierna têm parte as idades anteriores à Vida, os tempos mais antigos do que a Terra, os ocos do espaço antes que o mundo fosse.

Na noite onde nasceram as estrelas comecei a constelar-me de ser.

Não há um único átomo da mais longínqua estrela que não colaborasse no meu ser.

Porque Afonso Henriques existiu, eu sou. Porque Nun'Álvares combateu, existo. Seria outro - não serei, portanto - se Vasco da Gama não tivesse achado o Caminho da Índia nem Pombal tivesse governado (...) anos.

Shakespeare é parte de mim. Para mim trabalhou Cromwell quando arquitectou a Inglaterra. Ao ganhar com Roma, Henrique Oitavo fez-me ser hoje o que eu sou.

Para mim pensou Aristóteles e cantou Homero. Neste sentido místico e profundo deveras [...], Cristo morreu por mim. Um místico índio que eu não sei se existiu, há 2000 anos colaborou no meu ser actual. Pregou moral Confúncio à minha presença de hoje. O primeiro homem que achou o fogo, o que inventou a roda, o primeiro que ideou a seta - se hoje eu sou eu é porque eles existiram.
*Fernando Pessoa

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Amor ao próximo

Está fora de dúvida que através dela [a atividade maquinal] uma existência sofredora é aliviada num grau considerável: a este fato chama-se atualmente, de modo algo desonesto, "a bênção do trabalho". O alívio consiste em que o interesse do sofredor é inteiramente desviado do sofrimento - em que a consciência é permanentemente tomada por um afazer seguido de outro, e em conseqüência resta pouco espaço para o sofrimento: pois ela é pequena, esta câmara da consciência humana!

A atividade maquinal e o que dela é próprio - a absoluta regularidade, a obediência pontual e impensada, o modo de vida fixado uma vez por todas, o preenchimento do tempo, uma certa permissão, mesmo educação para a "impessoalidade", para o esquecimento de si, para a "incuria sui" -: de que maneira completa e sutil o sacerdote ascético soube utilizá-la na luta com a dor! Precisamente quando tinha de lidar com sofredores [...] necessitava ele de pouco mais que a pequena arte de mudar os nomes e rebatizar as coisas, para fazer com que vissem benefício e relativa felicidade em coisas até então odiadas. [...] Um meio ainda mais apreciado na luta contra a depressão é a prescrição de uma pequena alegria que seja de fácil obtenção e possa ser tornada regra.

[...] A forma mais freqüente em que a alegria é assim prescrita como meio de cura é a alegria de causar alegria (ao fazer benefício, presentear, aliviar, ajudar, convencer, consolar, louvar, distinguir); no fundo, ao prescrever "amor ao próximo", o sacerdote ascético prescreve uma estimulação, embora em dosagem prudente, do impulso mais forte e mais afirmador da vida - da vontade de poder. A felicidade da "pequena superioridade", que acompanha todo ato de beneficiar, servir, ajudar, distinguir, é o mais abundante meio de consolo de que costumam servir-se os fisiologicamente obstruídos, supondo-se que estejam bem aconselhados. [...] Todos os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza: o sacerdote ascético intui esse instinto e o promove; onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que a organizou.

* Friedrich Nietzsche in "Genealogia da Moral"

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O mito da igualdade

Em última instância, desde que criemos qualquer coisa, criamos desigualdade: se escrevo um livro terei um sucesso e um renome que o meu vizinho não tem porque ainda não escreveu um livro. Impossível terminar com as desigualdades (...) a nossa perturbação resulta de um exagero contemporâneo sobre o valor da igualdade. Ora Aristóteles - que em matéria moral nunca foi ultrapassado - demonstra na Ética a Nicómaco que se uma exigência (exigence) é forçada ao seu extremo, acaba por ter um efeito perverso. Isto é verdadeiro para qualquer valor: uma liberdade desmensurada acaba na tirania dos mais fortes. E, do mesmo modo, uma igualdade sem proporção provoca uma série de desigualdades.

Podemos observá-lo na Escola: em média há hoje menos crianças de operários nas grandes escolas do que havia nos anos cinquenta. Apesar da constante exigência de igualdade, houve uma regressão! Simplesmente porque hoje é considerado contra-produtivo, e enfim hipócrita, tratar de um modo igual uma criança da burguesia - que tem acesso aos bens culturais, a aulas particulares, etc - e uma criança dos subúrbios. Ao tratar cada caso de forma diferente , reforçamos as desigualdades iniciais.

De outro modo, penso que a ideologia igualitária é tanto mais perniciosa quanto põe em perigo a nossa necessidade de democracia. Porque acredito que há, não apenas um desejo mas uma necessidade de igualdade. É uma necessidade ética: um pobre é igual a um rico em dignidade, um deficiente mental tem-na tanto como um não-deficiente . É preciso que voltemos a Aristóteles: encontrar "o justo meio" (ou a justa medida) entre a igualdade extrema e a extrema desigualdade. Porque esta igualdade preguiçosa que reina hoje sem exceção, não encoraja ninguém a ultrapassar-se a si próprio. A nossa civilização ao perder o sentido do alto e do baixo, está ameaçada por aquilo que, num livro precedente, chamei de "Barbaria interior".
*Jean-François Mattéi

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Montserrat Caballé

Montserrat Caballé como Norma, performance executada no "Thèatre Antique d'Orange", 20 de julho de 1974. Casta Diva, uma de minhas árias favoritas.

Wagner

A algum tempo venho estudando o mundo de Wilhelm Richard Wagner (Leipzig, 22 de maio de 1813 — Veneza, 13 de fevereiro de 1883) e me achei na obrigação de citar algumas coisas a respeito. Mulherengo, aproveitador, cínico, vaidoso mas, sobretudo gênio. Foi ele o maior compositor clássico do povo alemão no gênero ópera, revolucionando aquele cenário musical de então com uma proposta inédita. Nessa época as óperas em sua maioria tinham temas leves, feitas somente para entreter, ou ainda possuíam argumentos que vislumbravam a decadência humana numa tradição próxima da tragédia grega, todavia, isso era realizado de um prisma mais individual. Wagner amplificou isso, com o auxílio de lendas do seu povo e alguns personagens históricos ele cria uma música que ambicionava unir o povo alemão em torno de um espírito comum. Exaltando-os como uma grande raça descendente direta dos míticos árias pais de Siegfried, Wotan e todos os outros heróis da gnose germânica. Além de músico, Wagner também era maestro, poeta, teórico musical e ensaísta. Alguns dos homens mais influentes da Alemanha vieram dar com ele mantendo relações estreitas como o filósofo Friedrich Nietzsche que chegou a considerar-se seu pupilo, além do rei Ludwig II da Bavária, o qual foi seu maior patrono e nutria por ele a admiração de um peregrino ante o sacrário. Apoiando-o ilimitadamente e sendo submisso a todos os seus caprichos. Mas talvez o que chame a atenção na obra de Wagner foi o fascínio que ela despertou sobre um homem já no século XX, seu nome era Adolf Hitler.

Ao assistir Rienzi, a ópera sobre o dilema histórico do revolucionário Cola di Rienzo, ele teve um insight e no pequeno teatro de sua modesta cidade Linz vislumbrou o que seria anos mais tarde a ideologia que deixaria enfeitiçado todo a Alemanha. Essa peça que tanto o inspirou é ambientada na Roma Medieval, Rienzi, porta-voz do povo, opõe-se à aristocracia. Ele quer retroagir um século e restabelecer a República da Antiguidade. Ele passa a ser o porta-voz do povo e os convoca a uma luta pela soberania frente ao tirano rei. Hitler comoveu-se profundamente com Rienzi, e supondo-se como uma espécie de versão alemã do herói, ele traça planos para seu futuro e para o futuro do seu povo. Mais tarde diria: ''Foi naquela hora que tudo começou”. Além disso há outras passagens onde Hitler afirma por exemplo: ''Só entende o Nazismo, quem conhece Wagner''. Ocorre que nosso compositor era também um anti-semita radical. E esse fato associado à história de Hitler faria Wagner parecer o idealizador do nazismo no século XIX, o que não é verdade. Na época de Wagneriana, os judeus eram o bode expiatório da sociedade alemã, se algo não dava certo o lugar comum era culpar judeus por isso. Nesse sentido, ter idéias anti-semitas era considerado normal. Tão normal que o nazismo hitlerista emergeria anos depois como uma continuidade dessa linha de pensamento. Mas o fato é que politicamente correto ou não, amante da causa humanista ou não, Wagner foi grande.

Sua música é difícil, como ele mesmo dizia.
Para ouvir uma ópera italiana basta estar relaxado ou despretensioso, já a experiência de Wagner é tensa, traz uma busca pelo resgate da glória, como aceitar um escultor remodelando seus sentidos às marteladas. Abaixo deixo aqui alguns vídeos, de partes da ópera favorita de Hitler. Sua fantástica abertura e a bela “oração de Rienzi” onde ele pede forças aos Deuses para recompor o passado glorioso de seu povo, essa ária vai interpretada pelo tenor alemão René Kollo em setembro de 1986 na ópera de Berlim, espero que gostem.



*Leandro M. de Oliveira.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A ostra e a pérola

"Lasciate ogni speranza, voi che'ntrate"
(Dante)

Não se farte comendo outras pessoas, não as mutile pela necessidade de mutilar, esse é para o ser um crime sem perdão. Tal prática degrada a individualidade, nega tudo quanto há de augusto e belo na vida. Derrota o homem livre em sua expressão maiúscula. É preciso caminhar até ferir os pés, moldar a argila até que as mãos sangrem. O homem superior tem como seu Graal a senda do não querer, ele concede trégua à futilidade da vida média, da escravidão da vontade. Quer se desvenciliar dos fetiches primários, anseia ser livre para o que vem depois. Com efeito, a humanidade do futuro vai além, requer mais coragem e menos daquilo que nos deixou a todos ultrapassados. Porque assim caminhamos, perdidos no próprio tempo. A assim dita necessidade do outro, não é mais que um labirinto de clamores onde se perde o EU. Andei sobre a terra, vivi entre homens. Deles nada me foi mostrado além fraqueza e pensamento degenerado. No mundo exterior não a há espaço para mendicância emotiva, só uma lei prevalece, aquela que é a todos os animais irrevogável, a soberania do mais forte. Esses são tempos primitivos, selvagens nada sabem de cordialidade. É preciso treinar o corpo, aprender a resistir. Deixar a alma congelar ao sabor dos ventos, vê-la uivar com o fim dos ciclos. Rosnar é necessário, alto e forte até que todos os abutres e chacais tomem distância. Com o tempo as intempéries da natureza soarão como uma carícia ao longo da pele. E você será imune, outra vez gigante, outra vez Titã.

Compreender a beleza não é simples como dormir à noite ou copular em horas impróprias, se assim fosse os asnos seriam dramaturgos de renome e as gralhas, divas da ópera. Tem-se que se dar por inteiro, exaurir-se, afastar-se, submergir ao fundo do mar no ponto extremo onde só existe aquela ostra embrutecida e com ela obcecar-se. Perder as carnes dos dedos, dilacerar com os dentes, romper às cabeçadas, deve-se provocar a abertura custe o que custar. E quando estiver gasto, entregue e derrotado, do interior desse receptáculo hostil vai ver surgir a perfeição na redondilha sem verso de uma pérola virgem. Você é a ostra, agarre a pérola, ela esteve aí dentro o tempo todo. Mas antes de abrir a porta é preciso se livrar dos cadáveres, daqueles já frios vindos de um passado que pra sempre jaz imutável e dos outros, produtos da crença no impossível futuro, as crianças sem ovário, os bebês de alma anincéfala. Escravos dão a luz a outros escravos, liberte-se antes de acontecer. Você conseguiria por um minuto deixar de ser um animal de carga? Nada te impede de tentar. A esquizofrenia deve ser suplantada em nome de algo mais são, Chronos não se apieda de quem hesita, sua marcha é veloz.

O homem novo, o gigante gerado pelo anão, que se rebela e encontra na rebeldia um algo maior. Ele nada possui, vai serpenteando à casa celeste e lá chegando ultrapassa-a, mais alto que o céu, mais baixo que o inferno. E assim sendo é o todo e ao mesmo tempo o nada, eternamente vazio, pra se preencher do que vier, onipresente. O que for de urgência, as circunstâncias proverão, a vida cuidará pra que se realize. Por hora basta estar atento ao fluxo interior, não ao passo cambaleante das ovelhas ou de qualquer outra das miseráveis manadas. Vocês mataram Deus e agora querem que eu pague para que o mantenham vivo. Vocês transformaram o que havia de nobre, converteram em favores de pecúnia, vocês e suas malditas tabelas de preço. Sempre a pisotear o campo quando esta prestes a florir, sempre a urinar nas fontes quando a água ainda é límpida. Solte fogos no velório, chore nos bacanais da “moralidade”. Constatar que essa vida é uma causa perdida pode não ser o melhor juízo pra começar o dia mas, com alguma boa vontade pode ser a raiz pedagógica de aprender um algo inédito. A transformação não permite escudeiros, é uma busca singular. Dessa vez tente com as próprias pernas. Sem cadáveres nas costas, sem rédeas na boca, só o caminho importa. Se te parece belo, torpe, colorido, cinza ou vil. Tudo o que acrescer de ti é incidental, frívolo e dispensável. O caminho tem desígnios próprios, ele é a opção dos que já não buscam mais mentir a si mesmos.

*Leandro M. de Oliveira

Justificativa da ação

Saber a razão primária por que alguém agiu como agiu é saber a intenção com que a ação foi feita. Se viro à esquerda numa bifurcação porque quero chegar a Katmandu, a minha intenção, ao virar à esquerda, é chegar a Katmandu. Mas saber a intenção não consiste, necessariamente, em conhecer a razão primária com todo o pormenor. Se James vai à igreja com a intenção de agradar à sua mãe, deverá ter alguma pró-atitude face a agradar à sua mãe, mas é necessária mais informação para que se possa dizer se a sua razão é a de gostar de agradar à sua mãe, se é pensar que isso é o correto, se é um dever ou se é uma obrigação.

[...]

Quando perguntamos a alguém por que agiu como agiu, queremos obter uma interpretação. Talvez o seu comportamento pareça estranho, alienígena, ultrajante, injustificado, mal interpretado, desconexo. Ou talvez nem consigamos mesmo reconhecer uma ação nesse comportamento. Quando compreendermos a sua razão teremos uma interpretação, uma nova descrição do que fez e que encaixará num quadro habitual. Esse quadro inclui algumas das crenças e atitudes do agente. Talvez também inclua metas, fins, princípios, traços gerais de caráter, virtudes ou vícios. Para além disto, a redescrição de uma ação proporcionada por uma razão pode situá-la num contexto de avaliação — social, econômico, linguístico — mais alargado. Compreender, mediante a compreensão da razão, que o agente concebeu a sua ação como uma mentira, o pagamento de uma dívida, um insulto, o cumprimento de uma obrigação avuncular ou um jogo de xadrez, significa apreender o desígnio da ação enquanto aplicação de regras, práticas, convenções e expectativas.

Comentários como estes, inspirados no segundo Wittgenstein, têm sido elaborados com sutileza e profundidade por um considerável número de filósofos. E não há maneira de negar que são verdadeiros: quando explicamos uma ação através da respectiva razão, redescrevêmo-la. Redescrever a ação dá à ação um lugar num certo padrão e, por este caminho, explica-se a ação.

*Donald Davidson

domingo, 15 de novembro de 2009

Ao mestre com carinho

"É assim que me identifico, viajante,
arqueólogo do espaço,
procurando em vão reconstituir
o exotismo
com o auxílio de fragmentos
e de destroços"

Claude Lévi-Strauss Bruxelas, 28 de novembro de 1908 — Paris, 30 de outubro de 2009


Morreu no último dia 30 Claude Lévi-Strauss, andei me sentindo culpado por não ter citado nada a respeito desse homem que tanto fez pela formação intelectual do mundo nos últimos 50 anos. Foi antes de antropólogo, etnólogo ou pensador das gentes um devoto à causa de entender o fenômeno humano. Esse homem devolveu aos povos indígenas as suas almas, reconhecendo os mais distintos legados e legitimando-os perante nossa cultura (branca) através de teses estruturalistas (por ele inventadas) que investigaram questões capitais para a formação da psique das sociedades como a herança toteísta, à qual dedicou uma quadrilogia. Mas a obra desse pensador em verdade, talvez diga mais a nós brasileiros. Como não desfolhar “Tristes Trópicos” e ao sentir o impacto daquele olhar estrangeiro dizendo que a baía de Guanabara é feia, que a pureza do selvagem foi corrompida não parar um pouco e se perguntar? Lembro de um título lançado originalmente em 1994, “Saudades do Brasil”, onde através da observação da produção artística marajoara em cerâmica Claude propõe que esses artefatos produzidos no interior da Amazônia Brasileira são indícios de uma grandiosa civilização de tempos remotos a qual deu origem à toda cultura andina tal qual se conhece, fazendo assim um contraponto com tudo o que aprendemos até então. Essa suposição da grandeza ancestral leva-nos à redescoberta de nossa própria terra e à busca do significado profundo de nosso papel histórico nas Américas. Realmente de estremecer...
Sem mais o que acrescentar além de meus respeitos e minha reverência, deixo o fragmento de uma entrevista em vídeo onde relembra entre outras coisas sua passagem pela terra brasilis.


*Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Esmo

A história vai, a história leva consigo o que quer, deforma, fingi, fica. E eu homem comum, estou para ela como está uma folha, inadvertidamente a boiar na corrente de um rio, que está a boiar numa placa de terra, que bóia no magnetismo dum pólo, que bóia feito esfera na amplidão dum infinito. Quantos auges e decadências, quantas partidas e chegadas, quanta existência tenho ainda de suportar? Já vivi muitas vidas, habitei muitos corpos. A cada dia passado distancio mais dos sentidos de outrora. Permaneço solto pela campa onde muitas vezes não queria estar. O ser aqui vai fluindo em estado de sobrevida, acima dos modos locais e ao mesmo tempo, emaranhado em seus meandros como raízes de um jardim suspenso. Pode ser que eternamente permaneça aqui atado, nesse estreito horizonte tendo das assas tão somente o delírio. Irremediavelmente na condição de uma pérola que cresceu por reação alérgica ou na de um objeto estranho que numa cúpula se entranha sem que ninguém o pressinta. Pra quebrar a rotina procurei trabalhar na encenação do próximo espetáculo, preparei um discurso de redentor mas, a mim só coube o papel do gentio. Não, não fui educado na casa grande. Não tive tempo apto a decorar o catecismo romano, pensei ser uma abstenção salutar o exercício de não aprender dos homens as formas tradicionais de auto-repulsa. Quis dar aos que se diziam meus um mundo novo, a mensagem não era exatamente didática, na impossibilidade do passo além recebi na fronte o selo agudo da anátema. Cresci como cedro por entre eucaliptos, ou seria o contrário? Caminhei descalço só pra ver como é sentir os pés em carne viva. Contestação como profissão de fé. Sempre o estreito ao invés do largo, porque há mais luz fora que dentro da caverna. Fartei-me das sombras dos seres, quero agora conhecer o ser, contato imediato. Não tenho etiqueta, obediência, dieta saudável. O que trago no alforje é espólio das resultantes de um carisma selvagem. Minha fúria, minha tragédia, meu cabelo mau cortado. Tenho a irrelevância do anônimo e a turba da multidão. E isso se me afigura grave e isso me confunde o julgo. No ermo das noites não dormidas, na amplidão das estradas desabitadas, ao passo que me encontro me perco. E sendo eu, não sou ninguém. E não sendo nada, sinto as humanidades mais improváveis. Meu coração é essa fenda delgada donde o sol não visita. Meu coração é o lar donde habitam os homens que não querem mais mentir a si mesmos. Eles estão aqui, eles vem de toda parte, depositando por sobre o altar imaginário suas flores e suas cicatrizes.

Acordei com grandes planos, como a vida é pequena, esqueci tudo e me dei a seduções gratuitas.
*Leandro M. de Oliveira

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ah, perdona al primo affetto

Já que beleza nunca é demais, um pouco de Mozart para nós.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Carta à minha alma (se de fato existires)

Sabes quanto é inexplicável. Muitos tentaram insistentemente me convencer disso, nunca acreditei de todo. E vós sois minha mais grave testemunha. Todavia, avesso àquelas implacáveis convicções produzidas em outrora, devo ceder. Há deveras alguns processos na mente humana que embora conduzidos por essa, não possuem um vínculo lógico com a racionalidade. Está acontecendo comigo agora. Alheio a tudo quanto foi de alto e elevado a meu pretenso entender, mergulho agora no túnel das lembranças mais frugais. Nenhum momento capital se me afigurou. Nem a lembrança de quando tive sexo pela primeira vez, nem a de quando chorei perdido ou a de quando fiz que chorassem por mim, nem mesmo o dia em que ganhei a primeira soma de dinheiro que me permitia mais que um punhado de balas e fui ludibriado por aquela velha que me vendeu coisas que eu nem queria. Nada. O frisson que nesse instante me domina é concebido de momentos banais, e ainda mais agudamente da displicência com esses. Vem me visitar agora por exemplo, a lembrança que nem sabia se tinha, daquele dia de chuva. Um dia qualquer sem grandes eventos. Mas lembro-me bem, a visão de meus pés pisando a terra molhada, a densidade do ar, o cheiro de vida acontecendo no ambiente... Tudo soa tão imaterial e mesmo assim tão presente. As formas assimétricas de minhas pegadas impressas no chão cor de chocolate, a fúria reconquistada das corredeiras do rio que com a chuva se despediam da vazante. O som da água contra as rochas na ribeira, o som dos cânticos pra sempre perdidos no tempo. Sempre. Haverão de existir em toda parte coisas perdidas, portos vazio, louça em cacos. Mas agora, depois de tempo passado é que posso enfim concluir. Na simplicidade daquele momento úmido eu estava em paz. Num assalto de inesperada transição fui dar em visita a outro quarto dessa casa estranha. Agora me vejo ainda mais remoçado. Minha pele lisa. Ainda virgem de pêlos e espinhas, marcas de expressão ou testemunho dos anos. Olho à frente, como em mágica ou engenho do sobrenatural, assisto a mulher de olhos agudos passar por mim. Não foi sequer um flerte, ela nem olhou diretamente. Mas como me lembro e de forma tão lúcida, do desenho assombrosamente perfeito de sua íris, naquela fração de segundo em que o sol raiva por sobre a fronte corada, pude testemunhar o reflexo que cega, a metamorfose de cores que daquela aquarela viva emanavam. Primeiro o negro, depois aclareando até um tom de mel e depois até um verde opaco. Misterioso, coisa em si ao mesmo tempo esparsa e concisa. Hipnótico como uma esmeralda tirada do útero da terra. Encantamento em estado bruto, perfeição não lapidada. Ela passou por mim. Foi quando nesse momento me dei ao exame mais apurado de sua silhueta. A textura de um algo esculpido por mãos superiores, o espírito das tentações míticas. Acho que foi ali, naquele acaso rápido, naquele momento insuspeitado, foi ali onde deveras aprendi a admirar uma anca. Não era mais possível retroceder. Não haviam mais chances de tornar a ser criança. A invasão da masculinidade se fez em mim como tributo pago pelo fito ao desconhecido e eu subtraído da identidade cotidiana, nem me dei conta do que em verdade se formava à minha frente. De qualquer forma ela passou por mim, se foi pra nunca mais. Quantos anos fazem? Dez, quinze? Não sei. Mas o perfume ainda habita minhas narinas como um hálito fresco. Mais um porta cerrou, dei em outro quarto. Não reconheço o lugar, estou como que de olhos fechados. As sensações são familiares. Parte dos cabelos longos de uma moça deitados sobre meu ombro enquanto durmo, o cheiro que invadia a casa quando minha bisavó derretia rapadura pra fazer pé-de-moleque, o transe durante um beijo de quase hora em quem se gosta, ficar deitado ouvindo o som das tempestades de março. É tudo tão diverso e ao mesmo tempo tão uno. Filhos diferentes de um mesmo pai, dedos inaparentes da mesma mão. É como se durante a vida inteira eu tivesse feito a mesma coisa de várias maneiras. Uma forma diferente a cada dia, um dia em cada minuto. E sendo desagregado fui intenso, e perdendo o que mais amava encontrei a mim mesmo. É impossível recobrar a ausência adormecida por sob as areias do tempo. É impossível fazer planos quando a morte passeia por entre o bosque. Talvez tenha descoberto o enigma. Talvez entenda porque tanto me é agora revelado. Estou pra morrer! Há um pelotão de fuzilamento à minha frente. Nazistas, fascistas, judeus, cristãos, mulheres, crianças, chineses, neo-zelandeses... Gente de bem. Todos com armas apontadas. Todos estão com sede de sangue. Foi breve demais, minha alma. Será que de fato existes? Ou aquilo a que chamo alma é um departamento de arquivos que em momentos de angústia nos permite revisitar tudo o que não foi completamente sorvido pela percepção? Claro, um pouco de cada vez. Do contrário, o repertório se tornaria monótono. Parece injusto o fato ter consciência de como se existe só quando esse estado de percepção vai prestes a fenecer. Nunca fui saudosista, aceito o novo, a mudança da biologia que é por si dinâmica. Entretanto, mesmo sabendo que não há perdão àquele que hesita, creio ter direitos de pelo menos nisso poder vacilar um pouco. Quase me entristece partir quando ainda existem tantos diamantes semeados pela estrada. Tão longa, tão sinuosa. Não tenho garantias e nem preciso tê-las. Durante alguns anos idealizei Valhala, onde os grandes ascendem à sede da imortalidade. Depois... Pó e sombra! Acidente da matéria, disso me senti composto. Quando a luz cessa sobre o corpo ele se funde com o esquecimento, deixa de existir. Foi bom sentir assim, foi bom ser tão livre quanto possível. Nenhum devir, nenhuma obrigação com a perenidade. O dilema de existir tem me vitimado nesses tempos. A consciência é minha porção divina? A consciência é o sintoma mais agudo da minha síndrome de fuga da própria condição? Pode ser que ocorra, talvez seja que tudo não passe de covardia. Seja como for, estou pronto. Posso morrer se assim o querem. Posso partir em vez derradeira. Mas como morrer ou partir? E se há algo depois? E se Valhala existe com outro nome, ou sem ele? Se esse escrito mesmo sobreviver, acaso não é uma forma de estar perene no inconsciente alheio e assim resistir à evasão última? O legado de cada um parece implacável, sempre reféns de nossos próprios fantasmas. Queria que alguém desligasse o plugue de meu corpo. Talvez uma oração sincera à santa da boa morte fosse útil. É pena, já não sou mais tão inocente. O pelotão faz mira em meu peito, engatilha as armas. Sei que a maioria das pessoas em meu lugar estaria no mínimo aterrorizada ou puta da vida, claro, no caso de que o medo permitisse essa última. Concretamente se pode dizer, pensar na brevidade da hora, ter ciência que caminha à extinção sem ter feito mais quando se podia. Andar a passos humanos por sobre a terra não é uma sucessão de horas coordenadas mas, antes uma corrente infinda de questionamentos. Nunca ter perguntado o nome daquela moça, não ter rolado naquela lama que parecia chocolate, nunca ter se entregue à correnteza do rio que em minha frente seguia... Aos de osso e carne lá estava, alheio e insondável como qualquer milagre deve ser. Sei que a indignação é legítima. Pelo julgamento dos que me conhecem e possivelmente daqueles que talvez me conhecerão (se houverem para conhecer). Tenho tudo, ao mesmo tempo nada possuo. Não há segurança do que se leva, tão somente do que se deixa. Se acaso penetramos na totalidade daquilo que à nossa volta subsiste em silêncio. E são tantas coisas... É preciso mais que a eternidade pra chegar à comunhão plena e esse nó na garganta me fornece a suspeita vil de que talvez nem isso haja à disposição daquele vai. Meu deus, meu deus por quê me abandonastes?! Quando dei por mim já não estavas. Existes em aqui ou no sonho? Nas igrejas ou nos bordéis? Existes? Há muito não sei que são trombetas nem vejo anjos aqui ou lá. Queria ter a retidão dos monges, como não posso, galopo por sobre os sapatos me meto a cabeça em fazer anarquias. Descendência de Caim. Tenho a praga dos hereges, se assim não fosse meu contento seria mais prático. Curiosamente, mesmo com toda a gravidade ainda quero sorrir. Poderia praguejar ou revoltar ou desesperar. Mas pra mim não parece justo. Como desperdiçar mais tempo se há entre nós tanta beleza?

Att,
P.A
Porto Firme; Ano Domini? MMIX
*Leandro M. de Oliveira

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Se te queres matar

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…

A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros…

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada…
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além…
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido…
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia…

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos…
Se queres matar-te, mata-te…
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! …
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo…

*Fernando Pessoa

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Chamado

Te encontro as seis pra mudar o mundo. Se não der pode ser as sete ou as oito, avise com antecedência. Seus pais, assim como seus fantasmas não dormem à noite, temo que fique muito tarde. De que adianta um triunfo se todos estão em suas camas. Esperaremos outro dia. Essas medidas artificiais de tempo. Os dias, são como cartas de baralho, com naipes diferentes em mãos diversas mas, sempre servindo ao mesmo jogo sujo. O tempo em si é um artifício sujo, o cadáver pré-fabricado de si mesmo. Como quero transgredir! Como quero entender como se pode ter nostalgia por lembranças que às vezes nem são suas... O maio de 68, a primavera dos povos, minha habilidade em ser melhor nunca posta em prática. Sombras ruidosas, ecos do fundo. Gostaria de uma bebida ou uma noite de sono, ambas serviriam bem ao propósito de me entorpecer um pouco. E andamos mil léguas usando o sonho como um par de coturnos, aqui estamos, de volta à miséria que consome a cada um. Ela diz acreditar na ordem, do mesmo modo que todos os tiranos conhecidos, talvez só não tenha atinado para essa parte. As pessoas são boas ou indulgentes até que alcançam seus objetivos. Busco o natural que vem de dentro, antipatizo com as regras que vem de fora. Pra que tanta euforia em dizer que o facismo vale a pena? Se homens são como gado ou formigas, quero me matar com uma faca cega, não tolero isso. Entendo que a sua carência por um novo Hitler seja um sentimento urgente mas compreenda, seu sangue não é o dos escolhidos. Só porque Deus está morto, não queira exibir sua cabeça por mera vaidade. As balas e fuzis não tem consideração com quem os deseja. É mais fácil teorizar sobre o inferno quando nunca se esteve nele. É mais fácil matar que deixar viver. Droga! O óbvio sempre me embrulha a vida e o estômago. Quero o não trilhado. Odiar e amar, é como abrir os olhos ou ir ao banheiro. E se fosse tão simples a ponto de ser mentira? E se fosse tão acessível a ponto de ser engodo? Não há mais porque temer a luz ou a sombra. Aos que caminham pela senda tortuosa da descoberta do “EU” não deve haver espaço para outra companhia senão o da presença santa do nada sem termo. Esqueça as algemas e os cadáveres que te deram de presente, a libertação é uma experiência solitária. O templo só abre as portas aos que estão completamente nus diante dele. Mas você prefere fechar os olhos e vestir sua vergonha, levanta cedo pra ser adestrado como um cão. Ainda me lembro do canto dos ressentidos... Nas escolas ensinam algo como que o nosso modo de vida foi construído a partir de termos éticos e morais, que a religião e a política são o escudo e lança do homem de bem. Não obstante a isso, a história do mundo ocidental (cristão) é construída por guerras, suplícios e martírios sem nenhum sentido. A política vai conduzida por tiranos e aspirantes aos mesmos, invariavelmente como abutres sobre o corpo decomposto do povo. Como falar em bem ou ética ou moral? A beleza dos sistemas é a tragédia dos que a ele são submetidos. Talvez a vida seja mesmo uma causa perdida. Talvez haja pó demais assentado por sobre os móveis. Pode não ser o melhor pensamento, mas é uma hipótese pedagógica. E a consciência da finitude do tempo e espaço de cada um faz o Sísifo que há no homem reclamar seu inútil papel de eternidade. A vontade de poder nos guia a cooptar a vida alheia pra que a nossa se nos pareça um pouco mais perene. Esse deve mesmo ser o segredo dos ratos que fazem barulho à noite no sótão. Acordai homens! Acordai do sono de ontem, do medo de sempre...
*Leandro M. de Oliveira