sábado, 30 de maio de 2009

Dialética: Para além do senso comum

Para o senso comum, a oposição entre verdadeiro e falso é algo de fixo; habitualmente ele espera que se aprove ou se rejeite em bloco um sistema filosófico existente; e, numa explicação sobre tal sistema, ele só admite uma ou outra dessas atitudes. Não concebe a diferença entre os sistemas filosóficos como o desenvolvimento progressivo da verdade; para ele, diversidade significa unicamente contradição. O broto desaparece na eclosão da flor e poder-se-ia dizer que aquele é refutado por esta; do mesmo modo, o fruto declara que a flor é uma falsa existência da planta e a substitui enquanto verdade da planta.

Essas formas não só se distinguem, mas se suplantam como incompatíveis. No entanto, sua natureza cambiante faz delas momentos da unidade orgânica em que não só não estão em conflito mas onde tanto um quanto outro é necessário; e essa igual necessidade faz a vida do conjunto. Mas comumente não é assim que se compreende a contradição entre sistemas filosóficos; e, ademais, o espírito que apreende a contradição habitualmente não sabe liberá-la ou conservá-la livre de sua unilateralidade, e reconhecer na forma, do que parece se combater e se contradizer, momentos mutuamente necessários.

*Georg Wilhelm Friedrich Hegel

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Padrões de gosto (A necessidade de um ponto de convergência)

O mesmo Homero que agradava a Atenas e Roma há dois mil anos é ainda admirado em Paris e Londres. Todas as diferenças de clima, governo, religião e linguagem foram incapazes de obscurecer a sua glória. A autoridade ou o preconceito são capazes de dar uma voga temporária a um mau poeta ou orador, mas a sua reputação jamais poderá ser duradoura ou geral. Quando as suas composições forem examinadas pela posteridade ou por estrangeiros, o encanto será dissipado e os seus defeitos aparecerão como realmente são. Pelo contrário, no caso de um verdadeiro gênio, quanto mais as suas obras durarem mais amplo será o seu sucesso, e mais sincera a admiração que despertam. Dentro de um círculo restrito há demasiado lugar para a inveja e o ciúme, e até a familiaridade com a pessoa pode diminuir o aplauso devido às suas obras. Quando desaparecerem estes obstáculos, as belezas que naturalmente estão destinadas a provocar sentimentos agradáveis manifestam naturalmente a sua energia. E sempre, enquanto o mundo durar, conservarão a sua autoridade sobre os espíritos humanos.

Vemos portanto que, no meio de toda a variedade e capricho do gosto, há certos princípios gerais de aprovação ou de censura, cuja influência um olhar cuidadoso pode verificar em todas as operações do espírito. Há determinadas formas ou qualidades que, devido à estrutura original da constituição interna do espírito, estão destinadas a agradar e outras a desagradar. Se em algum caso particular elas deixam de ter efeito, é devido a qualquer deficiência ou imperfeição do órgão. Um homem cheio de febre não pretende que o seu paladar seja capaz de distinguir os sabores, nem outro com um ataque de icterícia teria a pretensão de pronunciar um veredicto a respeito das cores. para todas as criaturas há um estado de saúde e um estado de enfermidade, e só do primeiro podemos esperar receber um verdadeiro padrão do gosto e do sentimento. Se, no estado saudável do órgão, se verificar uma uniformidade completa ou considerável das opiniões dos homens, podemos daí derivar uma idéia da perfeita beleza. da mesma maneira que a aparência dos objetos à luz do dia, aos olhos das pessoas saudáveis, é chamada a sua cor verdadeira e real mesmo que se reconheça que a cor é simplesmente um fantasma dos sentidos.

Apesar de todos os nossos esforços para determinar um padrão de gosto e reconciliar as opiniões discordantes das pessoas, permanecem ainda duas fontes de variação que, todavia, não são suficientes para confundir as fronteiras da beleza e da deformidade, mas que servem frequentemente para produzir diferenças de grau na nossa aprovação ou censura. Uma são os diferentes estados de espírito dos homens particulares; a outra são os costumes e opiniões particulares da nossa época e país. Os princípios gerais de gosto são uniformes na natureza humana: onde os juízos dos homens variam, algum defeito ou perversão nas faculdades pode geralmente ser observado. Estes resultam do preconceito ou da falta de prática ou da falta de delicadeza - e há aí razões justas para aprovar um gosto e condenar outro. Mas, onde a há diversidade na concepção interna ou da posição externa que de nenhum modo é censurável em qualquer dos lados da disputa e que não deixa lugar a que se prefira um em detrimento do outro, nesse caso um certo grau de diversidade nos juízos é inevitável e será útil procurar um padrão pelo qual podemos reconciliar opiniões contrárias.
*David Hume, Do Padrão do Gosto (1757)

Aspectos da fundamentação científica de Kant e Hume

(...) os resultados proporcionados pela física newtoniana iam fazendo desaparecer as dúvidas que ainda poderiam subsistir em relação ao ponto de vista mecanicista e determinista da natureza. Os progressos foram imensos, o que parecia confirmar a justeza de tal ponto de vista. A velha questão acerca do que deveria ser a ciência estava, portanto, ultrapassada. Interessava, sim, explicar a íntima articulação entre matemática e ciência, bem como os fundamentos do método experimental. Mas tais problemas imediatamente iriam dar origem a outro mais profundo: se o que caracteriza o conhecimento científico é o fato de produzir verdades universais e necessárias, então em que se baseiam a universalidade e necessidade de tais conhecimentos? Este problema compreende-se melhor se pensarmos que a inferência válida que se usa na matemática e na lógica tem uma característica fundamental que a diferencia da inferência que se usa na ciência e a que geralmente se chama "indução", apesar de este nome referir muitos tipos diferentes de inferências. Na inferência válida da matemática e da lógica, é logicamente impossível que a conclusão seja falsa e as premissas sejam verdadeiras. Mas o mesmo não acontece na inferência indutiva: neste caso, podemos ter uma boa inferência com premissas verdadeiras, mas a sua conclusão pode ser falsa. Isto levanta um problema de justificação: como podemos justificar que as conclusões das inferências são realmente verdadeiras? Na inferência válida, é logicamente impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa; mas como podemos justificar que, na boa inferência indutiva seja impossível que as conclusões sejam falsas se as premissas forem verdadeiras? É que essa impossibilidade não é fácil de compreender, dado que não é uma impossibilidade lógica. E apesar de as ciências da natureza usarem também muitas inferências válidas, não podem avançar sem inferências indutivas. O filósofo empirista escocês David Hume (1711-1776) no seu Ensaio sobre o Entendimento Humano defendia que tudo o que sabemos procede da experiência, mas que esta só nos mostra como as coisas acontecem e não que é impossível que aconteçam de outra maneira. É um fato que hoje o Sol nasceu, o que também sucedeu ontem, anteontem e nos outros dias anteriores. Mas isso é tudo o que os sentidos nos autorizam a afirmar e não podemos concluir daí que é impossível o Sol não nascer amanhã. Ao fazê-lo estaríamos a ir além do que nos é dado pelos sentidos. Os sentidos também não nos permitem formular juízos universais, mas apenas particulares. Ainda que um aluno só tenha tido até agora professores de filosofia excêntricos, ele não pode, mesmo assim, afirmar que todos os professores de filosofia são excêntricos. Nem a mais completa coleção de casos idênticos observados nos permite tirar alguma conclusão que possa tomar-se como universal e necessária. O fato de termos visto muitas folhas caírem em nada nos autoriza a concluir que todas as folhas caem necessariamente, assim como o termos visto o Sol nascer muitas vezes não nos garante que ele nasça no dia seguinte, pois isso não constitui um fato empírico. Mas não é precisamente isso que fazemos quando raciocinamos por indução? E as leis científicas não se apoiam nesse tipo de raciocínio ou inferência? Logo, se algo de errado se passa com a indução, algo de errado se passa com a ciência. Mas se as coisas na natureza sempre aconteceram de uma determinada maneira (se o Sol tem nascido todos os dias), não será de esperar que aconteçam do mesmo modo no futuro (que o Sol nasça amanhã)? Para Hume só é possível defender tal coisa se introduzirmos uma premissa adicional, isto é, se admitirmos que a natureza se comporta de maneira uniforme. A crença de que a natureza funciona sempre da mesma maneira é conhecida como o «princípio da uniformidade da natureza». Mas, interroga-se Hume, em que se fundamenta por sua vez o princípio da uniformidade da natureza? A resposta é que tal princípio se apoia na observação repetida dos mesmos fenômenos, o que nos leva a acreditar que a natureza se irá comportar amanhã como se comportou hoje, ontem e em todos os dias anteriores. Mas assim estamos a cair num raciocínio circular que é o seguinte: a indução só pode funcionar se tivermos antes estabelecido o princípio da uniformidade da natureza; mas estabelecemos o princípio da uniformidade da natureza por meio do raciocínio indutivo. Por que razão insistimos, então, em fazer induções? A razão — ou melhor, o motivo — é inesperadamente simples: porque somos impelidos pelo hábito de observarmos muitas vezes a mesma coisa acontecer. Ora, isso não é do domínio lógico, mas antes do psicológico. O que Hume fez foi uma crítica da lógica da indução. Esta apoia-se mais na crença do que na lógica do raciocínio. O mesmo tipo de crítica levou também Hume a questionar a relação de causa-efeito entre diferentes fenômenos. Como tal, para Hume, o conhecimento científico, enquanto conhecimento que produz verdades universais e necessárias, não é logicamente possível, assumindo, por isso, uma posição céptica. Seria o cepticismo de Hume que iria levar Kant (1724-1804) a tentar encontrar uma resposta para tal problema. Depois de uma crítica completa, na sua obra Crítica da Razão Pura, à forma como, em nós, se constituía o conhecimento, Kant concluiu que aquilo que conferia necessidade e universalidade ao conhecimento residia no próprio sujeito que conhece. Para Kant, o entendimento humano não se limitava a receber o que os sentidos captavam do exterior; ele era ativo e continha em si as formas a priori — que não dependem da experiência — às quais todos os dados empíricos se teriam que submeter. Era, pois, nessas formas a priori do entendimento que se devia encontrar a necessidade e universalidade do conhecimento: Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir seguramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico. É verdade que a experiência nos ensina que algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente. Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori (...). Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori. (...) (...) Pois onde iria a própria experiência buscar a certeza se todas as regras, segundo as quais progride, fossem continuamente empíricas e, portanto, contingentes? Kant, Crítica da Razão Pura Verificando que os conhecimentos científicos se referiam a fato observáveis, mas que se apresentavam de uma forma universal e necessária, Kant caracterizou as verdades científicas como juízos sintéticos a priori. Sintéticos porque não dependiam unicamente da análise de conceitos; a priori porque se fundamentavam, não na experiência empírica, mas nas formas a priori do entendimento, as quais lhes conferiam necessidade e universalidade. Restava, para este filósofo, uma questão: saber se a metafísica poderia ser considerada uma ciência. Mas a resposta foi negativa porque, em metafísica, não era possível formular juízos sintéticos a priori. As questões metafísicas — a existência de Deus e a imortalidade da alma — caíam fora do âmbito da ciência, ao contrário da ciência medieval em que o estatuto de cada ciência dependia, sobretudo, da dignidade do seu objeto, sendo a teologia e a metafísica as mais importantes das ciências. A «solução» de Kant dificilmente é satisfatória. Ao explicar o caráter necessário e universal das leis científicas, Kant tornou-as intersubjetivas: algo que resulta da nossa capacidade de conhecer e não do mundo em si. Quando um cientista afirma que nenhum objeto pode viajar mais depressa do que a luz, está para Kant a formular uma proposição necessária e universal, mas que se refere não à natureza íntima do mundo, mas antes ao modo como nós, seres humanos, conhecemos o mundo. Estavam abertas as portas ao idealismo alemão, que teria efeitos terríveis na história da filosofia. Nos anos 70 do século XX, o filósofo americano Saul Kripke (1940-) iria apresentar uma solução parcial ao problema levantado por Hume que é muito mais satisfatória do que a de Kant. Kripke mostrou, efetivamente, como podemos inferir conclusões necessárias a partir de premissas empíricas, de modo que a necessidade das leis científicas não deriva do seu caráter sintético a priori, como Kant dizia, mas antes do seu caráter necessário a posteriori.
*Aires de Almeida
**Marcelo, espero que seja suficiente para um ponto de partida, mais tarde enviarei o material completo. Por enquanto acredito que seja o bastante para aguçar os primeiros raciocínios. Abraços e até mais.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Beleza, contemplação e desejo

Contemplação e desejo

É (...) verdade que os objetos do juízo estético e do desejo sexual podem ser ambos descritos como belos, mesmo se eles fazem surgir interesses radicalmente diferentes naquele que os descreve como tal. Uma pessoa, ao deparar-se com o rosto de um homem de idade, cheio de interessantes rugas e pregas, mas de olhar distinto e plácido, pode descrevê-lo como belo. No entanto, não entendemos o juízo da mesma maneira na exclamação ‘Ela é uma beleza!’, proferida por um jovem impetuoso ao olhar para uma moça. O jovem vai atrás dessa moça, deseja-a, não apenas no sentido de querer olhar para ela, mas porque quer abraçá-la e beijá-la. O ato sexual é descrito como a ‘consumação’ deste tipo de desejo – embora não devamos pensar que seja necessariamente aquilo que à partida se quer, ou que o ato sexual faça desaparecer o desejo, tal como beber um copo de água faz desaparecer o desejo de beber água.
No caso do belo ancião, não há este gênero de ‘ir atrás’: nenhuma segunda intenção, nenhum desejo de possuir o (ou, de alguma maneira, de retirar algum benefício do) belo objeto. O rosto do homem de idade tem, para nós, significado, e se procuramos alguma satisfação, encontramo-la nesse rosto, na coisa que contemplamos e no ato de contemplação. É seguramente absurdo pensar que este estado de espírito é igual ao do jovem empolgado que procura a conquista. Quando, no meio do desejo sexual, contemplamos a beleza de quem é a nossa companhia, afastamo-nos do nosso desejo, como que o absorvendo numa intenção mais alargada e menos imediatamente sensual. Este é, decerto, o significado metafísico do olhar erótico: ele é uma procura de conhecimento – um pedido para que outra pessoa brilhe diante de nós, na sua forma sensória, dando-se assim a conhecer.

Por outro lado, não há dúvida de que a beleza estimula o desejo no momento de excitação. Significa isto que o nosso desejo é dirigido à beleza de outro? Tem esse desejo a ver com essa beleza? O que se pode fazer com a beleza de outra pessoa? O amante saciado é tão incapaz de possuir a beleza do seu amado, quanto aquele que sem esperança a observa à distância. Esta é uma das ideias que inspirou a teoria de Platão. O que nos instiga, na atração sexual, é algo que pode ser contemplado, mas nunca possuído. O nosso desejo pode ser consumado e temporariamente extinto, mas ele não é consumado pela posse da coisa que o inspira. Esta permanece sempre para além do nosso alcance - o ser do outro que não pode jamais ser partilhado.



Corpos belos

Ninguém mais do que Platão estava consciente da tentação que jaz emaranhada no coração do desejo – a tentação de separar o nosso interesse da pessoa e ligá-lo apenas ao corpo, pondo de lado a experiência moralmente exigente de possuir o outro como indivíduo livre, tratando-o, em vez disso, como um mero instrumento do nosso prazer localizado. Platão não se referiu a esta ideia exatamente desta maneira, mas ela está subjacente a todos os seus escritos sobre os temas da beleza e do desejo. Platão acreditava que há uma forma básica de desejo, que tem em mira o corpo; e uma forma mais elevada, que tem em mira a alma e – através desta – a esfera eterna da qual os seres racionais descendem em última análise.

Não temos de aceitar esta concepção metafísica para reconhecer o elemento de verdade presente no argumento de Platão. Há uma distinção, familiar a todos, entre um interesse na carne de uma pessoa e um interesse na pessoa enquanto incorporada. Um corpo é um conjunto de realidades corpóreas; uma pessoa incorporada é um ser livre revelado pela carne. Quando falamos de um belo corpo referimo-nos à bela incorporação de uma pessoa e não ao corpo considerado meramente como tal.

Isto torna-se evidente se centrarmos a nossa atenção numa pequena parte do corpo, digamos, no olho ou na boca. Podemos ver a boca apenas como uma abertura, um buraco na carne, pelo qual se engolem coisas e do qual coisas emergem. Um cirurgião pode ver a boca desse modo, durante o tratamento de uma doença. Não é essa a maneira pela qual nós vemos a boca quando estamos face a face com outra pessoa. A boca não é, para nós, uma abertura através da qual emergem sons, mas uma coisa que fala, uma continuidade do ‘eu’, do qual é porta-voz. Beijar essa boca não é colocar uma parte do corpo contra outra, mas tocar a outra pessoa no seu próprio ser. Por isso, o beijo compromete – é um movimento de um eu para outro eu e o chamar do outro à superfície do seu ser.

As maneiras à mesa ajudam a manter a percepção da boca como uma das janelas da alma, a despeito do ato de comer. É por isto que as pessoas procuram não falar com a boca cheia ou deitar comida da boca para o prato. É por isto que os garfos e os pauzinhos foram inventados e que os africanos, quando comem com as mãos, dão uma forma graciosa às suas mãos para que a comida passe pela boca sem ser notada. Assim, ao ingerir-se a comida, a boca retém a sua dimensão sociável.

Estes são fenômenos familiares, embora descrevê-los não seja fácil. Recorde-se a náusea que se sente quando – por qualquer razão – vemos de repente um pedaço de carne onde até esse momento viramos uma pessoa encarnada. É como se nesse instante o corpo se tornasse opaco. O ser livre desapareceu por detrás da sua própria carne, carne essa que já não é a pessoa, mas um simples objeto, um instrumento. Quando este eclipse da pessoa pelo seu corpo é propositadamente produzido, falamos de obscenidade. O gesto obsceno é o gesto que exibe o corpo como puro corpo, destruindo assim a experiência da incorporação. Repugna-nos a obscenidade pela mesma razão que repugnava a Platão a lascívia física que envolve, por assim dizer, o eclipse da alma pelo corpo.

Estes pensamentos sugerem algo de importante acerca da beleza física. A beleza distintiva do corpo humano deriva da sua natureza enquanto incorporação. A sua beleza não é a beleza de uma boneca e é mais do que questão de forma ou proporção. Quando encontramos beleza humana numa estátua, como o Apollo Belvedere ou a Daphne de Bernini, o que está representado é a beleza humana – carne animada pela alma individual, expressando individualidade em todas as suas partes. Quando o herói do conto de Hoffmann se apaixona pela boneca, Olímpia, o efeito tragicómico deve-se inteiramente ao fato de a beleza de Olímpia ser meramente imaginada, desaparecendo à medida que o mecanismo perde a corda.

Tudo isto tem enorme significado, como mostrarei mais à frente, na discussão sobre a arte erótica. Mas chamo desde já a atenção para uma observação importante. Quer suscite contemplação, quer induza o desejo, a beleza humana é vista em termos pessoais. Ela reside especialmente naqueles traços – a face, os olhos, os lábios, as mãos – que atraem o nosso olhar no curso das relações pessoais, através das quais nos relacionamos entre nós, eu para eu. Apesar das modas no que toca à beleza humana, e apesar de o corpo ser embelezado de diferentes maneiras em diferentes culturas, os olhos, a boca e as mãos têm um poder de atração universal, pois é por estes traços que a alma do outro brilha para nós e se deixa conhecer.

*Roger Scruton, Beauty (Oxford, 2009, pp. 42-3 e 47-48). Tradução de Carlos Marques (Adaptado).

Intransigência-tolerância. Intolerância-transigência

Intransigência é não permitir que sejam adotados – para alcançar um objetivo – meios não adequados ao objetivo e de natureza diversa do objetivo.

A intransigência é um atributo necessário do caráter. É a única prova de que uma determinada coletividade existe como organismo social vivo, isto é, tem um objetivo, uma vontade única, uma maturidade de pensamento. Pois a intransigência exige que cada parte em separado seja coerente com o todo, que cada momento da vida social seja harmonicamente preestabelecido, que tudo tenha sido pensado. Isto é, exige princípios gerais, claros e distintos e que tudo que seja feito dependa necessariamente deles.

Por isso, para que um organismo social possa ser disciplinado intransigentemente é necessário que ele tenha uma vontade (um objetivo) e que o objetivo seja racional, seja um objetivo verdadeiro e não um objetivo ilusório. Não basta: é preciso que cada componente do organismo esteja convencido da racionalidade do objetivo, para que ninguém possa refutar a observância da disciplina, para que aqueles que querem que a disciplina seja observada possam exigi-lo como cumprimento de uma obrigação livremente contratada e, mais ainda, uma obrigação que o próprio recalcitrante ajudou a estabelecer.

Estas primeiras observações evidenciam como a intransigência na ação tem por pressuposto natural e necessário a tolerância na discussão anterior à deliberação.

As deliberações estabelecidas coletivamente devem ser racionais. A razão pode ser interpretada por uma coletividade? Certamente, o único delibera mais rápido (encontra mais rápido a razão, a verdade) que uma coletividade. Porque o único pode ser escolhido entre os mais capazes entre os mais preparados para interpretar a razão, enquanto a coletividade é composta de elementos diversos, com variados graus de preparação para compreender a verdade, para desenvolver a lógica de um objetivo, para fixar os diversos momentos que é preciso atravessar para a realização do próprio objetivo. Tudo isso é verdade, mas é também verdade que o único pode tornar-se ou ser visto como tirano e a disciplina imposta por ele pode se desagregar porque a coletividade se recusa ou não consegue compreender a utilidade da ação, enquanto a disciplina fixada pela própria coletividade para os seus componentes, mesmo se tarda a ser aplicada, dificilmente falha em sua execução.

Os componentes da coletividade devem, portanto, colocar-se de acordo entre si, discutir entre si. Por meio da discussão, deve acontecer uma fusão das almas e das vontades. Cada elemento de verdade que cada um pode trazer deve sintetizar-se na verdade complexa e deve ser a expressão integral da razão. Para que isso aconteça, para que a discussão seja plena e sincera, é necessária a máxima tolerância. Todos devem estar convencidos de que aquela é a verdade e que, portanto, é preciso realizá-la. No momento da ação todos devem ser concordes e solidários, porque no fluir da discussão foi se formando um acordo tácito e todos se tornaram responsáveis pelo insucesso. Só se pode ser intransigente na ação se na discussão se foi tolerante e os mais preparados ajudaram os menos preparados a acolher a verdade, e as experiências individuais foram colocadas em comum, e todos o aspectos do problema foram examinados, e nenhuma ilusão foi criada [dezoito linhas censuradas].

Naturalmente esta tolerância – método das discussões entre homens que fundamentalmente estão de acordo e devem encontrar coerência entre princípios comuns e a ação que devem desenvolver em comum – não tem nada que ver com a tolerância compreendida vulgarmente. Nenhuma tolerância com o erro, com o despropósito. Quando se está convencido de que alguém está errado – e este alguém foge da discussão, se recusa a discutir, argumentando que todos têm o direito de pensar como quiserem -, não se pode ser tolerante. Liberdade de pensamento não significa liberdade para errar ou cometer despropósitos. Somos contra a intolerância que é um fruto do autoritarismo e da idolatria somente, porque impede os acordos duráveis, porque impede a fixação de regras de ação obrigatórias moralmente porque todos participaram livremente do processo em que elas foram fixadas. Porque esta forma de intolerância leva necessariamente à transigência, à incerteza, à dissolução dos organismos sociais [seis linhas censuradas].

Por isso fizemos estas ligações: intransigência – tolerância, intolerância – transigência.

*Antônio Gramsci in Poder, Política e Partido. Organização: Emir Sader. Editora Brasiliense, 1990.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

AO TEMPO

Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,

Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?
*Dante Milano

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Fritjof Capra, a revolução necessária rumo à ecologia profunda

(...)Mudanças de paradigmas, para Kuhn, ocorrem sob a forma de rupturas descontínuas e revolucionárias. Hoje, 25 anos depois da análise de Kuhn, reconhecemos a mudança de paradigma em física como parte integral de uma transformação cultural muito mais ampla.

A crise intelectual dos físicos quânticos nos anos 20 espelha-se hoje numa crise cultural semelhante, porém muito mais ampla. Conseqüentemente, o que estamos vendo é uma mudança de paradigmas que está ocorrendo não apenas no âmbito da ciência, mas também na arena social, em proporções ainda mais amplas. O paradigma que está agora retrocedendo dominou nossa cultura por várias centenas de anos, durante as quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e influenciou significativamente o restante do mundo.

Esse paradigma consiste em várias idéias e valores entrincheirados, entre os quais a visão do universo como um sistema mecânico composto de blocos de construção elementares, a visão do corpo humano como uma máquina, a visão da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência, a crença no progresso material ilimitado, a ser obtido por intermédio de crescimento econômico e tecnológico, e - por fim, não menos importante - a crença em que uma sociedade na qual a mulher é, por toda a parte, classificada em posição inferior à do homem é uma sociedade que segue uma lei básica da natureza.

Todas essas suposições têm sido decisivamente desafiadas por eventos recentes. E, na verdade, está ocorrendo, na atualidade, uma revisão radical dessas suposições.


Ecologia Profunda

O novo paradigma pode ser chamado de uma visão de mundo holística, que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. Pode também ser denominado visão ecológica, se o termo "ecologia" for empregado num sentido muito mais amplo e profundo que o usual.

A percepção ecológica profunda reconhece a independência fundamental de todos os fenômenos e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza (e, em última análise, somos dependentes desses processos). Os dois termos, "holístico" e "ecológico", diferem ligeiramente em seus significados, e parece que "holístico" é um pouco menos apropriado para descrever o novo paradigma.

Uma visão holística, digamos, de uma bicicleta significa ver a bicicleta como um todo funcional e compreender, em conformidade com isso, as interdependências das suas partes. Uma visão ecológica da bicicleta inclui isso, mas acrescenta-lhe a percepção de como a bicicleta está encaixada no seu ambiente natural e social - de onde vêm as matérias-primas que entram nela, como foi fabricada, como seu uso afeta o meio ambiente natural e a comunidade pela qual ele é usada, e assim por diante.

Essa distinção entre "holístico" e "ecológico" é ainda mais importante quanto falamos sobre sistemas vivos, para os quais as conexões com o meio ambiente são muito mais vitais. O sentido em que eu uso o termo "ecológico" está associado a uma escola filosófica específica e, além disso, a um movimento popular global conhecido como "ecologia profunda", que está rapidamente adquirindo proeminência.

A escola filosófica foi fundada pelo filósofo norueguês Arne Naess, no início dos anos 70, com sua distinção entre "ecologia rasa" e "ecologia profunda". A ecologia rasa é antropocêntrica, ou centralizada no ser humano. Ela vê os seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como a fonte de todos os valores, e atribui apenas um valor instrumental, ou de "uso", à natureza.

A ecologia profunda não separa seres humanos - ou qualquer outra coisa do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida.

Em última análise, a percepção da ecologia profunda é percepção espiritual ou religiosa. Quando a concepção de espírito humano é entendida como o modo de consciência no qual o indivíduo tem uma sensação de pertinência, de conexidade, com o cosmos como um todo, torna-se claro que a percepção ecológica é espiritual na sua essência mais profunda. Não é, pois, de se surpreender o fato de que a nova visão emergente da realidade baseada na percepção ecológica profunda é consistente com a chamada filosofia perene das tradições espirituais.

Há outro modo pelo qual Naess caracterizou a ecologia profunda. "A essência da ecologia profunda", diz ele, "consiste em formular questões mais profundas". É também essa a essência de uma mudança de paradigma. Precisamos estar preparados para questionar cada aspecto isolado do velho paradigma.

(...)

Novos Valores

Neste esboço do paradigma ecológico emergente, enfatizei até agora as mudanças nas percepções e nas maneiras de pensar. Se isso fosse tudo o que é necessário, a transição para um novo paradigma seria muito mais fácil.

Há, no movimento da ecologia profunda, um número suficiente de pensadores articulados e eloqüentes que poderiam convencer nossos líderes políticos e corporativos acerca dos méritos do novo pensamento. Mas isto é só parte da história. A mudança de paradigmas requer uma expansão não apenas de nossas percepções e maneiras de pensar, mas também de nossos valores.

É interessante notar aqui a notável conexão nas mudanças entre pensamentos e valores. Ambas podem ser vistas como mudanças da auto-afirmação para a integração. Essas tendências - a auto-afirmativa - são aspectos essenciais de todos os sistemas vivos. Nenhuma delas é, intrinsecamente, boa ou má. O que é bom, ou saudável, é um equilíbrio dinâmico; o que é mau, ou insalubre, é o desequilíbrio - a ênfase excessiva em uma das tendências em detrimento da outra.

Agora, se olharmos para a nossa cultura industrial ocidental, veremos que enfatizamos em excesso as tendências auto-afirmativas e negligenciamos as integrativas. Isso é evidente tanto no nosso pensamento como nos nossos valores.

Uma coisa que notamos ao examinar essas tendências opostas lado a lado é que os valores auto-afirmativos - competição, expansão, dominação - estão geralmente associados a homens. De fato, na sociedade patriarcal, eles não apenas são favorecidos como também recebem recompensas econômicas e poder político.

Essa é uma das razões pelas quais a mudança para um sistema de valores mais equilibrados é tão difícil para a maioria das pessoas, em especial para os homens.

O poder, no sentido de dominação sobre outros, é a auto-afirmação excessiva. A estrutura social na qual é exercida de modo mais efetivo é a hierarquia. De fato, nossas estruturas políticas, militares e corporativas são hierarquicamente ordenadas, com os homens geralmente ocupando os níveis superiores, e as mulheres, os inferiores.

A maioria desses homens, e algumas mulheres, chegaram a considerar sua posição na hierarquia como parte de sua identidade e, desse modo, a mudança para um diferente sistema de valores gera neles medo existencial.

No entanto, há outro tipo de poder, um poder mais apropriado para o novo paradigma - poder como influência de outros. A estrutura ideal para exercer esse tipo de poder não é a hierarquia, mas a rede, que é também a metáfora central da ecologia. A mudança de paradigma inclui, dessa maneira, uma mudança na organização social, uma mudança de hierarquias para redes.


Ética

Toda a questão dos valores é fundamental para a ecologia profunda; é, de fato, sua característica definidora central. Enquanto o velho paradigma está baseado em valores antropocêntricos (centralizados no ser humano), a ecologia profunda está alicerçada em valores ecocêntricos (centralizados na Terra).

É uma visão de mundo que reconhece o valor inerente da vida não-humana. Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de interdependências. Quando essa percepção ecológica profunda torna-se parte de nossa consciência cotidiana, emerge um sistema de ética radicalmente novo.

Essa ética ecológica profunda é urgentemente necessária nos dias de hoje, especialmente na ciência, uma vez que a maior parte daquilo que os cientistas fazem não atua no sentido de promover a vida nem de preservá-la, mas sim no sentido de destruir a vida. Com os físicos projetando sistemas de armamentos que ameaçam eliminar a vida do planeta, com os químicos contaminando o meio ambiente global, com os biólogos pondo à solta tipos novos e desconhecidos de microorganismos sem saber as conseqüências, com psicólogos e outros cientistas torturando animais em nome do progresso científico - com todas essas atividades em andamento, parece da máxima urgência introduzir padrões "ecoéticos" na ciência.

Geralmente, não se reconhece que os valores não são periféricos à ciência e `tecnologia, mas constituem sua própria base e força motriz. Durante a revolução científica no século 17, os valores eram separados dos fatos, e desde essa época tendemos a acreditar que os fatos científicos são independentes daquilo que fazemos, e são, portanto, independentes dos nossos valores. Na realidade, os fatos científicos emergem de toda uma constelação de percepções, valores e ações humanos - em uma palavra, emergem de um paradigma - dos quais não podem ser separados. Embora grande parte das pesquisas detalhadas possa não depender explicitamente do sistema de valores do cientista, o paradigma mais amplo, em cujo âmbito essa pesquisa é desenvolvida, os cientistas são responsáveis pelas suas pesquisas não apenas intelectual mas também moralmente.

Dentro do contexto da ecologia profunda, a visão segundo a qual esses valores são inerentes a toda a natureza viva está alicerçada na experiência profunda, ecológica ou espiritual, de que a natureza e o eu são um só. Essa expansão do eu até a identificação com a natureza é a instrução básica da ecologia profunda.

*Fritjof Capra in "Teia da Vida"

domingo, 3 de maio de 2009

Un mensaje a los que debieron ser mis padres

Papitos: no sé si deba llamarlos así
porque en realidad nunca lo fueron;
cuando descubriste, mamita, que estaba en ti
sentiste náuseas, pretextos mil
que papito y tú me destruyeron.

Aún recuerdo con vasta pena
hace seis meses que tú, mamita,
en una noche te diste cuenta
que estaba envuelto en tu placenta
y te dio rabia, mucha, infinita.

Sentí algo amargo, ¡más qué importaba!
uno en el vientre vive tranquilo;
el sexto hijo era yo, ¡cuánto te amaba!
sumaba días, multiplicaba,
el mismo mes me parecía un siglo.

Soñaba tanto con ver las flores,
la luz del día, mis hermanitos...;
sería bueno con mis mayores,
todos mis actos serían mejores
por ver alegres a mis papitos.

Soñaba tanto en aquel momento,
en el instante en que me tendrías;
me veía envuelto, cubierto a besos,
tú siempre, siempre me arrullarías
y mi papá me diría: “¡Travieso!”.

Mas esa noche, ¡ay!, que bien recuerdo,
llegó papá, te miró nerviosa,
corriste, y en aquel encuentro,
hablaste de mi, que me llevabas dentro,
que estabas triste, te sentías mal, temerosa.

Sentí que él se quedó inquieto,
quiso llorar, quedó en silencio,
te vio con ansia, te vio con miedo;
¡él me quería!, casi estoy cierto,
¡iba en su vida, en su pensamiento!.

Mas el demonio pudrió su mente,
le dio egoísmo, le dio veneno;
sentí temor, me quedé pendiente,
escuché llantos y gritos fuertes,
tantos reproches que se dijeron.

Mi fetal alma ya comprendía
todos los gritos, ¡falsas palabras!
pensé en vivir, que me salvarían,
que antes que nada sí me querían,
que estaban limpias aún sus almas.

Iba a ser bueno con mis papitos,
no lloraría en toda la noche,
me aguantaría, sería un hombrecito,
no lanzaría siquiera un grito
para evitarme cualquier reproche.

Cuando acostaron a mis hermanos
sentí bonito, quise ir con ellos,
eran tan buenos, ¿no había lugar?
y que importaba, así chiquito
me conformaba con estar cerca,
yo dormiría en el suelo.

Escuché entonces, papá, tu voz quebrada
por el cansancio o por el desvelo,
que era imposible que yo llegara;
más importante era que te compraras
un coche azul último modelo.

Sentí morirme, lloré en silencio
¿Eso es ser padres?, ¡yo les pregunto!
¿no me querían?, ¡¡¡por qué me hicieron!!!
¡yo no pedí venir a este mundo !

Al día siguiente, muy de mañana,
al hospital se fueron dispuestos;
miré por última vez aquella casa,
¡¡¡la que iba a ser mi casa!!!
a mis hermanos, tranquilos, quietos,
no imaginaban lo que pasaba
los niños sólo somos traviesos.

Miré aquel cuarto impecable, blanco,

y una mirada implacable, fría,
y sentí miedo, te di un abrazo,
busqué a papito, busqué una huída,
grité, lloré, me hice pedazos
porque atentaban contra mi vida.

Vi a mi papito, ¡lo vi temblando!
cuando pasábamos en la camilla;
le vi una lágrima en la mejilla
¡sí me quería!, ¡estaba llorando!

¡Sálvame!, ¡sálvame! te gritaba
te vi indeciso por un instante
pero a medida que nos llevaban
tú, mi papaíto, me abandonaste.

Cerraron puertas y te durmieron
y quedé solo, aislado, preso;
iba a morir, lo sabía, ya no imploraba;
¿para qué? ninguna súplica serviría de nada.



Sentí un dolor agudo aquí, en mi pecho,
solo un ratito y después, nada... ¡nada!.



Mi cuerpecito aún caliente
quedó en un frasco, ya estaba muerto,
el doctor dijo que próximamente
sería usado en experimentos.

Perdí mi cuerpo mas no mi alma,
que ahora descansa junto al creador,
y hoy, a casi un año de aquella infamia,
yo los recuerdo con mucho amor.

Y aunque soy ángel, a veces sufro
al ver que a solas lloran y gimen,
al acordarse a cada segundo
de aquel aborto que fue su crimen.

Se acordarán de mi por todo un siglo
en cualquier parte, en cualquier lugar,
cuando descubran a cualquier niño
que va en los brazos de sus papás.

Yo ya los he perdonado
papá, mamá, aunque en realidad nunca lo fueron
prometo velar por ustedes y por mis hermanitos;
adiós les dice para siempre:
¡EL QUE PUDO HABER SIDO SU HIJO!

*Fidencio Escamilla Cervantes

Memórias Imaginárias de Lucrécio

Tudo está calmo esta manhã no campo romano, uma calma que faz pensar no vazio além do qual se encontram os deuses. Para mim chega o momento de apreciar o conjunto de minha obra. Escrevo aqui um exame rápido, mas sem dúvida queimarei este documento. Só o poema deve permanecer. Está aqui, sob meus olhos. Depois de oito dias, continuo a repetir as primeiras e as últimas sílabas. As últimas: Multo cum sanguine saepe rixantes potius quam corpora deserentur 1. As primeiras: Aeneadum genetrix hominum diuomque voluptas 2. Penso que está bem claro. A volúpia, a morte, o nascimento e o fim dos corpos, o prazer que aproxima, a peste que desagrega. Tracei o círculo, eu o percorri.

Eles não saberão nada da minha vida, tomei as precauções elementares. Dirão provavelmente que eu estava louco: que me destruí. Sempre o mesmo método. Quando se escapa à sua vigilância, à sua malevolência, recorrem à grande exclusão: um monstro, eis como serão obrigados a se referir a mim. Teriam preferido o silêncio completo, o desaparecimento integral, mas o poema existe, circulará, já sabem que não poderão colocar a mão sobre todas as cópias, nosso grupo é poderoso o suficiente para escondê-las e difundi-las, será preciso que me inventem, que me refutem. Imagino aqui seu trabalho de deformação nos anos próximos e no curso das épocas. Que me importa? Além disso, já não estou na mesma cadência do tempo.

Um texto não é nada se não contém uma adesão razoável fundada sobre o entusiasmo pela verdade mais difícil e simetricamente sobre a raiva originada da mentira que convém a muitos a aos que a desfrutam. O que eu disse, eles não saberão admitir. O que eles dirão será indefinidamente contestado por minha demonstração. Sempre insisti, como nosso próprio mestre, sobre a necessidade de se reservar nossa doutrina aos mais nobres, aos mais bem testados.

Azar nosso se um dia, depois de mil perseguições, qualquer tribuno da plebe se metesse a aprovar nossas idéias, quanto mais delas se servir para dominar a cidade. Seria grande, então, o risco de um terror exercido pelo desespero e nele fundado. Pois assim como a nossa visão permite o máximo de liberdade para aquele que sabe penetrá-la e se calar, da mesma maneira poderia provocar a pior escravidão se fosse utilizada pelo poder do ressentimento medíocre e perverso ou pelo fanatismo policial.

O que nós defendemos é insuportável para a maioria. No entanto, foi correto correr o risco de revelá-lo. Mas esta revelação só alcança um a um, se assim posso dizer, ela o visa pessoalmente, você, leitor, e só você. Não somos filósofos como os outros, muito menos escritores ou poetas cuja superficialidade acrescenta ornamentos preciosos à filosofia. Não: nossa verdade está além, simultaneamente, da filosofia e da poesia. Ela é a ciência falando melodicamente ao ouvido humano. Jamais a ciência poderá dizer que estávamos errados, tal é a minha certeza. Talvez provisoriamente cometamos erros, mas eles acabarão se dissolvendo, nossa doutrina nem mesmo será afetada.

É preciso sempre voltar aos princípios: o mundo não é eterno, terá um fim, os astros não nos são superiores em nada, muito pelo contrário; os deuses são insensíveis tanto ao favorecimento quanto à cólera; o pensamento deve se expandir para além do vazio, o infinito, os átomos e o arco que os une. O maior criminoso é portanto aquele que faz apologia da religião, do modus, do nó. Assim, o que ele quer é mergulhar com você no prazer sombrio da morte imortal.

Conosco, um vampiro fácil de desmascarar, mas não sem um esforço sobre si próprio. Porque cada um de nós, formado como é da mesma mescla apaixonada, adere a esta paixão. Os nós sucederão aos nós, as ilusões às ilusões, as crenças às crenças. E invencívelmente a clara consciência da inanidade universal, livre, carregando seus turbilhões de corpos elementares, retornará sobre alguns poucos, e os arrebatará.

Quem sabe? Talvez virá uma época onde, pelo desenvolvimento sem fim da técnica, os homens poderão observar estas partículas das quais tudo é tecido. Nos acusaram de ter invocado fantasmas! Invenções de nossa imaginação sobrecarregada! E se ainda só falássemos das substâncias dos mundos! Sóis ou minerais! Mas sua raiva, é evidente, deriva sobretudo de nossa lucidez sobre o amor. Que tenhamos claramente descrito o papel e a pressão das sementes, os simulacros que se seguem, os sonhos decorrentes, as vanidades e apetites que se desdobram e devastam os destinos a partir do nada, este é o escândalo.

Mas, ainda uma vez, quem sabe? Quem poderá saber se não virá o tempo onde se poderá ver claramente o mecanismo do engendramento? A conjunção do macho e da fêmea? O princípio da fecundação? Vamos mais longe; não se pode pensar que será possível induzir aproximações, enxertos? Fabricar a vida de todas as peças a partir dos líquidos necessários? Loucura! dizem. Ou ainda: Horror! Como estão interessados em manter esse mistério onde sua vanidade se sustenta! Como amam seus charlatães, escritores, sacerdotes, filósofos! Arruinamos, até a raiz, sua pretensão delirante.

Percebemos, as provas virão, que a existência não tinha nenhuma razão fundamental, nenhuma justificação em si. Destruímos todos os nós apresentados como ligações respeitáveis. E em primeiro lugar, talvez, o incrível, o lamentável poder do espelho sobre o cérebro de nossa condição passageira. Como são grandes o orgulho e a cegueira terrestres!

Nosso orgulho é plenamente justificado. A maior humildade o garante. Olho o meu manuscrito. A disposição das palavras e letras é rigorosa. Ele fala da disposição de tudo que se pode ver, entender, tocar, sentir, falar. Uma mesma combinação regula os fenômenos físicos e o entrelaçamento das frases. Muito mais, sei que, graças ao infinito, esta constatação já teve lugar. Já me produzi, vivi, pensei tudo isso, tracei os sinais, não guardo nenhuma lembrança. A morte introduziu entre eu e eu um corte completo. Em que língua já escrevi este hino perdido? Não sei.

Em que língua, em que paisagem futura, será novamente escrito por mim que não terei a menor lembrança do que sou nesse instante? Impossível prever. Utilizará apenas os mesmos caracteres? Roma será Roma? E ainda haverá alguém para conhecer o segredo de Vênus? Nossa escola pode ser dispersa, vencida. Está inserido em uma ordem. Fiz o que devia fazer: ritmar seus conhecimentos para que eles sejam transmitidos e aprendidos de coração.

Agora o sol se põe. A sombra começa a se desvanecer sob o grande pinheiro para-sol da vila onde estou refugiado. Sei que me procuram. Sei exatamente quem, porque, como. Velha história! Vão me encontrar só. Vão folhear tudo sem encontrar o documento de que são obrigados a se apoderar a qualquer preço, antes de me matarem.

Vão me torturar talvez, os infames? Isso não é tão grave, o desfalecimento nos salva da sobre-humana dor. Acho mesmo que posso me incitar a terminar, a partir do interior, por uma espécie de interrupção da respiração que nos ensinou um dos nossos adeptos, um médico. Não, eles não conseguirão me tornar louco. Não, não vou me suicidar. É simplesmente a velha prisão humana que se fecha em si mesma para perpetuar sua impostura. Nós não somos desse mundo. Já o dissemos. Voltaremos a dizê-lo um dia.

Notas

De rerum natura, Livro VI, 1285-1286: [Alguns, com grande clamor, colocavam seus parentes sobre piras que tinham sido acumuladas para outros e depois chegavam-lhes as tochas], e preferiam bater-se, com grande derramamento de sangue, a abandonar aqueles corpos.

> Trata-se aqui da descrição da peste em Atenas, que encerra o poema de Lucrécio

De rerum natura, Livro I, 1-2: Ó mãe dos Enéadas, prazer dos homens e dos deuses, [Alma Vênus | ó Vênus criadora].

> 'Enéadas': designação dos filhos de Enéias, a quem tradições obscuras atribuíam a fundação de Roma, ou a paternidade de seus fundadores, Rômulo e Remo.

> Virgílio (71-19 a.C.), inspirando-se em Homero, fez do herói troiano o personagem de seu poema Eneida. As lendas sobre Enéias tinham o mérito de dar a Roma títulos de nobreza, fazendo remontar a estirpe de seus fundadores às origens dos tempos, atribuindo-lhe também antepassados divinos, como Zeus e Afrodite (Vênus entre os romanos). Com isso, garantia-se a grandeza romana, supostamente predita pelo próprio Homero, e acreditava-se que Roma realizaria a reconciliação de troianos e gregos.

Titus Lucretius Carus (Roma, ~98-55 a.C.), autor do poema DE RERUM NATURA

(Da natureza das coisas), sua única obra conhecida. Lucrécio pretende ser o tradutor do pensamento do filósofo grego Epicuro de Samos (~341-270 a.C.) - discípulo de Demócrito de Abdera (séc. V a.C.) - e o intérprete de seu pensamento para uma cultura latina que pouco conhece o materialismo grego. A obra exerceu imensa influência no pensamento filosófico, sobretudo como referência para o materialismo (Spinoza, Marx e muitos outros).

*Philipe Sollers
**Publicado na Folha de São Paulo no domingo, 4 de setembro de 1983.
Originalmente publicado no Le Monde | Transcrição Bernardo de Oliveira

Tópicos filosóficos: Niilismo, o que é?

Niilismo:

Expressão exacerbada do materialismo e do positivismo, o niilismo negou toda autoridade ao estado, à igreja e à família.

Niilismo (do latim nihil, "nada") é uma doutrina filosófica e política baseada na negação seja da ordem social estabelecida, seja de todas as formas de esteticismo, assim como na defesa do utilitarismo e do racionalismo científico. Influenciado pelas idéias de Feuerbach, Darwin, Nietzsche, Henry Buckle e Herbert Spencer, o niilismo surgiu na Rússia czarista do século XIX. Segundo Martin Heidegger, o termo foi empregado pela primeira vez em 1799, pelo filósofo alemão Friedrich Heinrich Jacobi. Mais tarde, o romancista russo Ivan Turgueniev o empregou para designar a concepção que, afirmando a existência apenas do que é perceptível pelos sentidos, negava tudo o que se fundamenta na tradição e na autoridade.

O niilismo russo, pregado por Dmitri I. Pisarev, Nikolai A. Dobroliubov, Nikolai G. Tchernitchevski e outros, negava Deus, o espírito, a alma, as idéias, as normas e valores supremos e, quanto a suas origens, deve ser visto como fenômeno religioso. É a negação dogmática do mundo mergulhado no mal e de tudo o que é luxo, arte, metafísica e religião. Tudo deveria concentrar-se na libertação da classe trabalhadora, na luta contra as superstições e preconceitos, idéias e convenções que oprimem o homem e o impedem de ser feliz. O niilismo também foi por muito tempo, no Ocidente, a designação de vários movimentos revolucionários na Rússia, mas estes não foram realmente niilistas -- nem mesmo o anarquismo de Bakunin -- porque sempre acreditaram em soluções futuras para os problemas da humanidade.

Niilismo nietzscheano:

Tal como Nietzsche o entendeu, o niilismo tem significação muito mais ampla e profunda. O filósofo não se refere ao niilismo russo ou alemão, mas ao niilismo europeu, ou seja, ocidental. É um movimento ou processo histórico que, de raízes mergulhadas nos séculos anteriores, deverá determinar os séculos futuros. Sua essência consiste na morte de Deus e nas conseqüências dessa morte. O Deus morto é o Deus cristão que, para Nietzsche, representa não só a figura histórica do Cristo, mas o mundo supra-sensível em geral, e os ideais, as normas, os princípios, os fins, os valores que, colocados acima do mundo terreno, lhe davam orientação e sentido.

A negação do mundo supra-sensível e dos valores que o constituem acarreta o esvaziamento do mundo sensível, que se vê privado de consistência e de razão de ser. O niilismo não é, para Nietzsche, a interpretação deste ou daquele espírito, nem um acontecimento histórico semelhante ou comparável a qualquer outro, mas o advento da consciência de que todos os fins e todos os valores que até então davam sentido à vida humana se tornaram caducos.

A libertação, no que diz respeito aos valores até então vigentes, não somente torna possível mas exige o que Nietzsche chama de "transmutação de todos os valores", que não consiste apenas em sua modificação, mas no desaparecimento do "lugar" em que se situavam, quer dizer, do mundo supra-sensível. Concebendo o ser como valor, a metafísica, em Nietzsche, passa a ser uma axiologia, isto é, uma teoria dos valores. Não só os valores tradicionais decaem, como sua necessidade se desloca do mundo supra-sensível para o sensível, princípio a partir do qual se deve definir a nova tábua ou hierarquia de valores.

O niilismo, portanto, tal como Nietzsche o concebe, não consiste apenas na desvalorização dos valores supremos aceitos, pois a ruína desses valores torna urgente a criação de novos valores que os substituam. O niilismo seria a característica desse estádio intermediário, entre o crepúsculo dos deuses antigos e o anúncio do mundo novo, feito à imagem e semelhança do homem.

*Leandro M. de Oliveira
**Enciclopédia de Filosofia

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Crepúsculo vespertino ou da vida livre I

Um dia o velho sentou-se do lado de fora da casa, como não costumara mais fazer, a essa altura perdera seu nome original, era chamado apenas velho. Começou a lembrar-se de seus dias em outrora, da época de seu triunfo. Nesse tempo, dizia ele, houverão muitas vitórias. Ele lembrara da mulher e da promessa, da sensação que houve por um segundo de que tudo poderia ser melhor. E assim começou a se questionar:
"Será mesmo que um encontro como aquele, realmente existiu? Não! Claro que não. Nós o idolatramos, em nossas cabeças fizemo-lo melhor que ja foi um dia. Eu confiei nos homens e em suas palavras, mas o que resultou disso não foi mais que o cheiro fétido de corpos decompostos. No teatro das boas intenções o aleijo esconde o que falta, o deformado maqueia sua deformidade. O que são os outros além de imagens projetadas? As pessoas passam seus dias em busca da criação de significados maiores que a própria vida, para justificarem a existência a si próprios, isso não passa de sofisma e loucura deliberada. Viver não é mais que ser abortado pela natureza.
O mundo é representação! Ninguém é belo ou poderoso demais sem que um dia lhe aconteça uma desgraça, Édipo furou os próprios olhos ao descobrir que matara seu pai e desposara sua mãe, Héracles um dia após a campanha de Tebas foi punido pela loucura, mantando seus três filhos. Realizar-se é aceitar o fluxo da barbárie, se perder nele. O contrário fatalmente será empresa malsucedida. A história é feita de eventos abomináveis. Não ha beleza além daquela que imaginamos. O homem foi erigido por sob a cal da dor e da frustação, supor que pode ser diferente significa aceitar o fado de eterno prometeu. Não ha futuro, porque o passado foi algo que eternamente não se pode realizar. Esses são tempos de demência. Esperar acreditando num futuro que ha de nascer do útero estéril de um passado sem alma é a maior das insídias. É preciso invocar as mil mão necessárias à tiranização do presente. A esperança é deveras um conceito de escravos! "

As palavras do velho me fizeram estremeçer. Depois daquilo ele levantou-se serenamente, e retornou esquecido à sua cela.

*Leandro M. de Oliveira
**Espero que tenha bastado por momento, envie notícias