terça-feira, 27 de outubro de 2009

Livre !

E se Deus for só um fetiche? Uma coisa que os homens inventaram para se sentirem menos impotentes frente o pasmo da vida e mais tarde o mercado (única divindade realmente sensível) apropriou-se dele como um produto que se auto-promove, um negócio de poucos investimentos e lucros exorbitantes. As pessoas morrem de fome, ignorância, aids... e os bispos alegres e remotos ainda a viver em seus palacetes, e os pastores abstraídos e dissimulados em suas lanchas ou iates. Tudo é uma farsa. A utopia cristã do altruísmo serve só a quem se beneficia da indulgência dos humildes. O que resta disso é um continuo engodo, uma coisa construída e reinventada ao longo dos séculos, pra que a sua anestesia dure mais. As religiões foram sem exceção, erguidas através de dogmas forjados. Seria talvez um ato de lucidez inconveniente pensar que no decorrer desse culto à mentira o homem esteja ajoelhando-se perante Satanás chamando-o de Senhor. É possível. Todavia não creio nisso como algo sujo em relação à pessoal, toda servidão é em essência blasfema à vida em si. Os homens deveriam viver como leões, isso seria respeitoso para com a natureza mas, alguém disse sobre ser como ovelhas. Um tedioso e monocromático rebanho ao bel prazer de um leão travestido de carneiro chefe. Todos acharam isso fantástico. Pelo menos é o que minha avó tentava me dizer na infância, claro, com outras palavras. Bem aventurados os simplórios, pois deles será o reino das noites bem dormidas. Enquanto andava pelas ruas vazias da cidade dava incessantemente graças à força invisível (que nem sei se existe) pelo nascimento de todos os transgressores da história. A mim, morrer com idéias frustradas parece ainda mais atrativo que viver como uma prostituta, talvez seja coisa da idade. O que há de divino no homem ainda não foi vislumbrado, as pessoas admiram demais as ornamentações nos jardins do templo mas, esquecem-se de examinar o que há sobre o altar. De qualquer forma, entre outdoores e reflexões os primeiros sempre foram considerados menos cansativos. O que foi feito da raça humana? A revolução científica, o renascentismo, o iluminismo, todos os ismos produzidos na minúscula história humana a qual alguns reivindicam uma grandeza infinda. Todos eles e toda ela são testemunhas cabais da miséria coletiva. A ânsia pelo inatingível, pela felicidade que não perece.
E a cada dia um novo messias propõe as fantasias mais obscenas ao povo, venha ele em forma de pessoa, ideologia ou sistema político. A observação empírica mostra, durante o amanhecer até mesmo um anão projeta grandes sombras. Vivemos em uma era ainda muito primitiva, a fantasia domina, o avaro é seguido como tendência de moda. Por quê se preocupar? Mais algum dinheiro no cesto e alguns minutos de joelho são suficientes, amanhã estaremos todos no paraíso. A redenção tornou-se tão prática quanto macarrão instantâneo. Enquanto a maioria faz apoteose aos mistérios desvelados, sinto náuseas toda a vez que se me os oferecem. Pode ser que o preço da liberdade seja o vômito involuntário.
Enquanto isso nas escolas, nos quartéis, nas igrejas e nas casas as pessoas vão mentindo a si mesmas. Tudo pela prosperidade do pacto social, aquele mítico documento do qual ninguém nunca me apresentou um linha do conteúdo. Agostinho de Hipona foi um homem foi uma pessoa difícil, ao se acovardar do próprio intelecto disse a célebre frase: “Credo quia absurdum” isso ecoa com gravidade em nossos tempos. De qualquer forma há um mistério insondável, o fato do ente humano preferir acreditar no absurdo e no improvável em prejuízo à análise do óbvio. Será a transição do macaco para o homo sapiens uma feita inconclusa? Talvez eu seja um pássaro que perdeu as asas, talvez uma estrela decaída. Tente não pensar nisso, tente não comer tanta coisa industrializada. A vida é mais que isso e menos que qualquer outra coisa. Ouso por ser efêmero, sou imortal por acreditar no agora. Ninguém vai te salvar por piedade, procure oferecer algo em troca. Não quero a onipotência de um velho sentado em um trono, não preciso do estático do sempre. Quero a vida, quero o rastro do que se esvai à medida em que os instantes vão passando. Pra mais tarde, quem sabe se reinventar ou ainda, se perder no oco do tempo de uma vez por todas. E disso sou feito, de delírio e sonho. De delírio crença na diferença, de sonho espera no agora. Enquanto os outros riem pelas planícies eu grito no alto dos montes. A esquizofrenia é meu veneno tanto quanto meu antídoto. Sou normal? Não, não quero ser. Prefiro estar apenas liberto. Prefiro acordar de noite e dormir de dia.
*Leandro M. de Oliveira

O fetiche da modernidade

Imaginem dois africanos no século 19. Um vende o outro como escravo (negros vendiam negros). O escravo é levado para os Estados Unidos e lá sofre todo tipo de horror da escravidão. O outro fica livre e feliz na África. Adiantem o filme. O bisneto do escravo mora nos EUA, casa na praia, filhos na faculdade, e a esposa, bisneta de outro escravo, médica de sucesso. Voltem pra África. Muitos bisnetos do que ficou lá continuam a viver em seus buracos, matando-se do mesmo jeito (como acabou a escravidão, perderam a chance de vender seus “irmãos”). Famílias afundam na miséria. Qual é a moral desta história? Que a escravidão foi uma bênção para os afro-americanos porque os levou para os EUA? E a liberdade do outro, a maldição de seus bisnetos? Os afro-americanos, que hoje celebram a vitória do Obama, depois de muito sofrimento, diriam “ainda bem que nossos bisavós foram escravos”? Não! A escravidão é um horror.

A questão é outra: qual o sentido da história humana? Nenhum. A história não é a luta entre a luz e as trevas. Não porque elas não existam, mas porque não sabemos identificar, com o microscópio das idéias claras e distintas de que dispomos, a trama infinita de suas relações. Um homem faz o que pode em meio a opacidade do mundo. Meu pecado é não fazer o marketing da democracia de massa. Falsos sentimentos são comuns nos homens, logo, quanto mais homens, maior a chance de mentira, por isso desconfio de bons sentimentos em grandes quantidades.

Mais? Os índios não vivem em comunhão com a natureza, apenas ficaram na idade da pedra em técnicas de domínio da natureza, como muitos africanos que ficaram na África. A ciência e a política tampouco fazem os homens melhores. O mundo não é dividido entre elite má e pobre bom. Se a elite é cruel, o povo é violento e interesseiro. Os homens não são iguais, alguns são melhores. A igualdade ama o medíocre. É mentira que todo mundo possa julgar as coisas por si só. A propaganda desta mentira gera uma horda de invejosos que sonham em destruir quem eles julgam livres. Supérfluo? Mentira. Num mundo parasitado pelo marketing como forma de vida, ser pessimista é um método. Não se trata de dizer morbidamente “o mundo é mau”, mas reconhecer que no humano a verdade é uma ferida incurável. A esperança que conta é a do animal ferido.

Nada disso implica concordar com crianças mortas. O debate ao redor da esperança não é um problema do quão otimista somos, mas o que em nós nos faria colaborar com nazistas na França ocupada, além do medo. Manter o emprego? A chance de destruir alguém melhor do que eu? Tomar a mulher de alguém? Promoção pessoal? Nada mais banal, nada mais humano(...)
*Luiz Felipe Pondé

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Não quero ir onde não há a luz

Não quero ir onde não há a luz,
Do outro lado abóbada do solo,
Ínfera imensa cripta, não mais ver
As flores, nem o curso ao sol de rios,
Nem onde as estações que se sucedem
Mudam no campo o campo. Ali, no escuro,
Só sombras múrmuras, êxuis de tudo,
Salvo da saudade, eternas moram;
Região aos mesmos íncolas incógnita,
Dos naturais, se os tem, desconhecida.
Ali talvez só lírios cor de cinza
Surgirão pálidos da noite imota.
Ali talvez só gelo com as águas,
Como a cegos, serão, e o surdo curso,
No côncavo sossego lamentoso,
Se acaso à vista habituada aclare,
Será como um cinzento tédio externo.

Não quero o pátrio sol de toda a terra
Deixar atrás, descendo, passo a passo,
A escadaria cujos degraus são
Sucessivos aumentos de negrume,
Até ao extremo solo e noite inteira.

Para que vim a esta clara vida?
Para que vim, se um dia hei-de cair
Da haste dela? Para que no solo
Se abre o poço da ida? Porque não
Será sem fim [?...]

*Fernando Pessoa

A força da ação

Não são as idéias nem as decisões que importam-interessam, mas não importam. É a convicção. É o convencimento. Qualquer decisão é mais eficaz do que a inteligência. O pensamento é um luxo e um atraso.
Há uma experiência que estão sempre a repetir. Quando se remove o córtex a um bicho qualquer, ele deixa de pensar e de duvidar; de se sentir seguro ou não; de medir as oportunidades. E qual a conseqüência? Torna-se imediatamente o chefe dos outros bichos. Os pensadores, no reino animal, são seguidores. Foi o que aconteceu com as pessoas com as piores idéias do século XX: Hitler, Stálin, Mao. Foram as que tiveram mais poder e mais mal fizeram. Porque não hesitavam e o nobre ser humano, hesitante, não resiste a quem não hesita.
Cada vez mais se ouve dizer que qualquer decisão, por muito estúpida ("vou deixar crescer um bigode"), é mais benéfica do que a dúvida mais inteligente. Na verdade, a pessoa inteligente só decide por instantes. A decisão é emitida como os talões de estacionamento. Pode (e deve) mudar a qualquer momento porque, felizmente, nunca se sabe. Aprende-se a não saber. Aprende-se a viver com isso. Aprende-se a ser enganado, de vez em quando, quando se acerta nalguma coisa.Recuperamos de ter tido razão, naquela vez sem exemplo. Passa-nos. Esquece-nos. A convicção é convincente, mas é perigosa, por ser o contrário da inteligência e da condição humana, que é não ter bem a certeza de quase nada.
Custa mas, assim é que é bonito.
*Miguel Esteves Cardoso

Marx e a ruptura

As acusações contra o comunismo que são levantadas sobretudo a partir de pontos de vista religiosos, filosóficos e ideológicos, não merecem discussão pormenorizada. Será preciso uma inteligência profunda para compreender que com as relações de vida dos homens, com as suas ligações sociais, com a sua existência social, mudam também as suas representações, intuições e conceitos, numa palavra, muda também a sua consciência?
Que prova a história das idéias senão que a produção espiritual se reconfigura com a material? As idéias dominantes de um tempo foram sempre apenas as idéias da classe dominante.
Fala-se de idéias que revolucionaram uma sociedade inteira; com isto exprime-se apenas o fato de que no seio da velha sociedade se formaram os elementos de uma sociedade nova, de que a dissolução das velhas idéias acompanha a dissolução das velhas relações de vida.
(…)
Mas dirão, as idéias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., modificaram-se certamente no decurso do desenvolvimento histórico. A religião, a moral, a filosofia, a política, o direito, mantiveram-se sempre nesta mudança.
Além disso existem verdades eternas, como Liberdade, Justiça, etc... que são comuns a todos os estádios sociais. Mas o comunismo abole as verdades eternas, abole a religião e a moral em vez de as configurar de novo contradiz portanto, todos os desenvolvimentos históricos até aqui. A que se reduz esta acusação? A história de toda a sociedade até aqui moveu-se em oposições de classes, as quais nas diversas épocas foram diversamente configuradas.
Mas fosse qual fosse a forma assumida, a exploração de uma parte da sociedade pela outra é um fato comum a todos os séculos passados. Não é de admirar, por isso, que a consciência social de todos os séculos, a despeito de toda a multiplicidade e diversidade, se mova em certas formas comuns, em formas de consciência que só se dissolvem completamente com o desaparecimento total da oposição de classes.

A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações de propriedade legadas; não admira que no curso do seu desenvolvimento, se rompa da maneira mais radical com as idéias legadas.
*Karl Marx

O caminho da serpente

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]
Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"
*Fernando Pessoa

sábado, 24 de outubro de 2009

O novo

Preparar, apontar... Morte ao tirano. Homens fuzilem-no! (1, 2...) Descansar armas. Ascendam a pira funerária ou deixem o corpo aos cães. (1, 2...) E algumas horas mais tarde, histeria coletiva... Saudações ao novo tirano! Ele já esperava pelo desjejum na sala de jantar. Sirvam-lhe carne e sangue se disso é composto o triunfo. Um cai e outro ascende, e esse também enfrenta a derrocada pra que um outro mais astuto venha. (1, 2...) bola da vez, o eterno samsara do concurso mundial de vaidades. Seja rápido! Ou lento o bastante, pra que as sentinelas do caos te acertem no peito.
O problema humano não é político mas, antes de qualquer outro um problema ético. Enquanto não houver um sentido de coerência de ação entre homens nada se fará tão pragmático como a inabilidade das buscas coletivas em produzir algo de bom ou justo. A consciência do senso comum é nascente como espelho da conjuntura em que se vive. Assim, há que se supor que enquanto o aviltamento do ser humano em seu sentido mais elevado for distribuído por meio de teorias, dissimulações e forja daqueles a quem cabe ditar um caminho na tecnocracia do mundo atual, todo o mais que se constrói a sua borda resultará inútil. A escola não ensina, a política não governa, o exército não protege, a TV não informa. As assim ditas redes de manutenção e formação da ordem social constituem só uma forma sofisticada do velho desejo de manter o homem médio anestesiado. Aquele homem bate mais uma vez à sua porta, vez em quando a capa do sacerdote, do candidato, do capitão, do professor ou do jornalista, vez em sempre o desejo frenético de te manter suficientemente submisso. Nada de novo pode ser produzido sem que o mestre ordene, isso seria uma subversão perigosa. Então, a busca de um progresso inclusivo ofusca os olhos de teu amo. Morra como um cão! Ou vomite seu ressentimento na cara desses guias cegos. Eles te fizeram refém por muito tempo, é hora de acordar. O sol brilha lá fora, que ninguém nos cobre mais por esses raios. Expurgue de uma vez o seu medo e a sua escravidão, já é hora de tentar algo novo. E até que esse algo inédito apareça, nenhum comunismo, nenhum paganismo, nenhum filosofar profundo... Nada será capaz de restituir ao homem aquilo que desde sempre lhe sentiu usurpado. É preciso mergulhar mais fundo, vasculhar escombros, caminhar no subterrâneo de si próprio. Vá agora àquele quarto desabitado, acorde sua alma, chame-a pra dançar. Contemple em silêncio, comemore aos berros. És o soberano de teu próprio ser! Respire fundo, avance a passos confiantes. Siga até a fenda aberta entre o animal e o algo superior, costure-a com os dentes, reequilibre as partes. Una em si tudo o que é mundo disse impossível. Cuspa nos arremedos da vida, tenha a versão original. Um novo livro foi lançado, uma nova ideologia criada. Livros são suportes de palavras que são suportes de elevação a quem sabe usá-las. Ideologias são suportes de idéias que são suportes dos mais hábeis demagogos. Uma crença é semelhante a um instrumento de corte nas mãos de um homem, se ele é um cirurgião procurará curar com sua cirurgia, se é um açougueiro, maquinalmente decepará as partes que estiverem à sua frente. A questão fundamental esta ligada àquilo em que cada um se propõe. Posso ser um socialista que não divide, ou um capitalista que crê no altruísmo. Um homem-bomba que detona bombas de confete, um judeu que crê na humanidade como povo escolhido. E é isso que sou e é isso que podemos ser, habita em mim essa contradição vacilante. Um homem sem bandeira, credo ou partido. Que o vento seja gentil, que nossas velas inflem rumo ao desconhecido. E que nesse nos reconheçamos como criaturas livres. A noite passou como um vulto, enfim vem se aproximando a aurora. É hora de partir, é hora de ficar, é tempo de transcender.
*Leandro M. de Oliveira

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Aos ressentidos

Como escapar a esse olhar tenebroso que nos contamina com uma profunda tristeza? Esse olhar virado para dentro, o olhar do indivíduo mal configurado desde a sua origem, esse olhar que é um suspiro deixando entrever como esse homem fala a si próprio. "Gostava tanto de ser outro!", assim suspira esse olhar. "Mas não há esperança! Sou o que sou: como poderia eu ver-me livre de mim?" É neste terreno do autodesprezo, verdadeiro pântano, que cresce toda a espécie de ervas daninhas, toda a espécie de plantas venenosas, e tudo tão pequeno, tão escondido, tão vil, tão meloso. Aí fermentam os vermes dos sentimentos de vingança e de ressentimento; aí o ar fede a coisas secretas e inconfessáveis; aí é construída a teia da mais abominável conspiração, a conspiração dos sofredores contra os robustos e triunfantes; aí cultiva-se o ódio pelos triunfadores. E que falsidade, para não admitir que esse ódio é ódio! Que edifício de palavras grandiosas, que arte da calúnia "leal"! Que nobre grande eloqüência jorra dos lábios destes fracassados! Quanta submissão melíflua, viscosa, obsequiosa, flutua nos seus olhos! Que quer esta gente afinal? Querem ao menos representar a justiça, o amor, a sabedoria, a superioridade...Eis a ambição dessa gente "inferior", dessa gente doente! E que habilidade resulta dessa ambição! Admire-se nomeadamente a habilidade dos produtores de moeda falsa que imitam o cunho da virtude, com todo o pormenor, até no som, aquele tirintar aurífero da virtude.
*Friedrich Nietzsche in Genealogia da Moral

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Da infância à adolescência

O psicoterapêuta Ivan Capelatto, numa palestra dada ao programa "café filosófico" discorre num tom bem Freudiano acerca da formação do indivíduo. A partir da fase fálica ele vai investigando os comportamentos típicos das idades da criança e a implicação dos mesmos na construção da psiquê individual. Vale a pena sobretudo para pais que querem entender um pouco melhor o processo de crescimento dos filhos, a mudança de atitudes, as preferências mutantes, etc. Mais tarde pretendemos retornar à questão do amadurecimento com uma abordagem Lacaniana. Por hora, bom vídeo a todos.

domingo, 18 de outubro de 2009

Discurso de existir

Cisma-me por vazio, ó visão que a minha turba. Sabendo além do que devo, podendo muito menos do que ouso. De argila e utopia vai moldando a terra. O homem passou por ti e continua de mesmo modo, um animal a carregar um cadáver consigo. Sei que sou finito. Que tal se inventássemos uma nova religião a fim de reparar esse imbróglio? Você se sente só? Quanto pagaria pra não se sentir? A política orienta a vida na polis. Saudações aos fascistas travestidos de gente de bem. A realidade bate à porta enquanto o morador se esquiva. Pergunta a calhar número um: Sou um homem? Não, ainda não houve tempo o suficiente para saber da vassalagem enquanto profissão de fé. Como é duro carregar uma metralhadora na cabeça. O que leva alguém a ratificar um pacto estranho a si? O homem, sempre ele, optando por estar desacordado enquanto a vida acontece. Eu sonhando em ser livre, os religiosos insistindo na luta armada. Sodoma não caiu, o cataclismo tem escolhido bem os seus mensageiros. A crença em si próprio poderia moldar um mundo novo, inglória verdade. Ser fútil é menos oneroso. Ser relapso é garantia de absolvição alheia. A senso comum o pré-fabricado é uma experiência messiânica. Mas afinal que é ser fútil, oneroso ou utópico? Palavras são conceitos, ação é sentença. O corpo, destino convergente de todas as blasfêmias, os anos passam o tecido somatiza. Diminuo enquanto se me aumenta a contagem dos dias, veloz. Estar vivo é aceitar o caos. Na impossibilidade de reinventar o meio dou graças pela cretinice alheia. Deus segue como aquele velho bonachão, o pai não castrado, a virilidade em pessoa. Terrivelmente amoroso. Tudo pode, tudo pode. Essa idéia é magnífica, consolo clichê dos que não aprendem com as próprias limitações ou se rebelam ao verificar que às vezes os seus possuem membros amputados. Pensar assim é fabricar transcendência. Talvez eu me drogue um pouco, ou quem sabe, recite um salmo. A totalidade é uma experiência sem precedente. Bem aventurados aqueles sem memória, pois a tragédia não lhes questiona durante o sono. Meu único devir é ser eu mesmo, urge uma fórmula que aponte a direção, me sinto todos e ao mesmo tempo nenhum. Nossa tacanhice frente o ser viabiliza com presteza a tiranização da “persona”. Autoconhecimento tem sido a mais insidiosa utopia, somente a embriaguez nos é acessível. Consciência esta para o homem como a pá esta para o coveiro, más notícias, o acidente da matéria não se repara com hipóteses. Tentei ser mais sociável, não foi exatamente um sucesso, detesto dialogar com zumbis. A experiência animal tornou-se suportável. Tão logo ele optou pelo engodo, o tom pálido foi ganhando cores,as equações foram simplificando-se. O dilema era esse, uma vida cor de rosa ou o desejo imanente de mil vezes estourar os miolos. Bendito seja o homem que inventou a coca-cola. Anestesia cotidiana, paz de um espírito anão. Pra que lado fica a terra de Marlboro? Vamos todos, enquanto ainda dispomos de nossos pulmões e nossa inocência. A máquina do mundo continua, eternamente a fabricar totalitarismos. É claro que o mal existe, a miséria humana fez-se prova irrefutável disso. Resta saber se há algum bem gratuito. Nisso tenho posto minhas dúvidas. Afinal a idéia audaz de construção do nome como continuação perene da memória conforta muito mais que aquela inevitável transfiguração em resto decomposto de um delírio esquecido. Mísero legado, abençoada condição. Ser eterno é como imitar as rochas, no fim o alheio não suporta o tédio das ditaduras. A mídia é orientada como um dos braços de trincheira da democracia, talvez por isso hajam tantos campos de concentração sem cercanias estabelecidas. Isso da uma sensação de liberdade. É aprazível a falta de grades físicas. Todavia, passear pelo campo minado pode nos deixar sem pernas, daí por diante aleijados para sempre. Quem vai caminhar por mim? Não é uma questão que causa pânico, há inevitavelmente alguém apto a reclamar passos que nunca foram seus. Se eu morresse amanhã viria ao menos fechar meus olhos, minha tresloucada irmã? Sou feito do que suponho, vendido pelo que rejeito. A vida glacial será extinta, a primavera não produzirá mais flores. Pastoreio o destino como se acreditasse nele. Pensar dói, esperar desfigura.
*Leandro M. de Oliveira

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

No Mar

"No Mar" por Cristina

Das torres de areia e silêncio
Uma mulher se ergue no espaço,
Abraça a cal do tempo. Ama só
E murmura à espera do encanto.
Líquida como a água,
Arcaica como o sonho.
De sangue e carvão verte as veias,
Chora a desventura, ri do que vem.
“- O mar sou eu”. Remota feito tempo,
Mira o rosto ao firmamento; nada vê...

Nas agruras da chuva que não vem,
No inconstante das ondas caudalosas.
Sem reposta ou esperança
Dissolve a vista que erra a esmo,
Abre o peito, resiste à dor.
Pra um dia se encontrar e morrer,
De uma vez ir e se perder,
Na promessa de um mar sem termo.

*Leandro M. de Oliveira
**A você Cris, mais uma vez minha amizade e meu zêlo. Que o mar se abra pra que possamos fazer a travessia derradeira.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Desdobramento

Um dia ele mergulhou num sono profundo e lá permaneceu por eras incontáveis, no escuro da caverna sedimentou o seu sonho. Todavia, num desse golpes da natureza como que fosse ânsia de vida por si própria, aquele homem acordou. Sua pele não era como a de outros homens ou mulheres, começava a si mudar em forma de uma espécie de couraça, delgada porém de resistência incomum. Darwin tenha um bom lugar no céu! A lei de sobrevivência foi embrutecendo-lhe ante os perigos da sombra, ainda que inconsciente do abismo a evolução brotou-lhe como a primavera em campo aberto. Ergueu-se finalmente daquela cama de campanha, tumular, ineditamente após mil ciclos da lua metafórica viu-se fora da caverna. O sol queima-lhe tanto a tez como os olhos, a essa altura inabituados com qualquer espasmo de claridade. Muito porém, o desconforto daquela hora fora suprido por revelação mais grave, os pulmões inflavam sem que doessem as costelas, os pés caminhavam sem que houvesse ranger de correntes. “Meu Deus! Estou livre!” Sussurrou em espanto, aquele momento capital de sol a pino e agressão ocular convertera-se em verdade, no momento da descoberta última. Era como se pudesse rasgar com as mãos o quadro do tempo e repintá-lo a seu modo. Aquele homem teve a benção de escolher o próprio caminho. O arrefecido de mitos pretéritos fora reduzido a não mais que isso, alegoria da ignorância ou roupa que não mais se usa. Foi-se o tempo e o assombro, o degelo chegou, o inverno desfaleceu. Compartilhou entre as pessoas, cantou entre os homens, fornicou com as mulheres. Tudo era possível pra alguém sem passado. Caminhava só e tão preenchido de si que era ele mais uma multidão singular, que um alguém a carregar coisa por dentro. Mas a vida tem seus desvarios, ele erra em medos cotidianos, e se não há respostas pula a janela da frente e caminha descalço na chuva. O alto cosmo não é de estrelas fixas, para o algo além é necessária a vida de planeta andarilho. Não há modos de se acomodar.

Como aquele homem, meto a mão na consciência quando existir é grave e se ela nada me diz, meto o pé na lama e caminho como um animal a pasto. Mas há um empecilho aqui, esse homem é uma ficção! Ele existe como alegoria, daquilo que sei e do que eternamente suponho. Mais uma vez eu; a usar a máscara do futuro sonhado, a estar ainda em contradição por desprezar o tempo que me leva sem saber. Que posso saber de uma vida nova? Só tenho minhas hipóteses e meu convencimento. Se falar de um novo começo fosse simples como gritar ou esquecer, teria eu mais méritos nisso. “Sorry” minh’alma, muito prazer, até mais. Fui abominado por não crer na família. Acontece que mesmo não admirando o status quo, suspeito que as pessoas de bem devem estar alheias ao crime organizado.

E o quarto continua avesso a realidade, apenas um cômodo em aparência, muito mais em perspectiva. E eu continuo avesso ao que penso crer, de fora um dogma em construção, de dentro a sombra do precipício. Súbito isso me bate, e me arrepio e cismo. Sou estrangeiro na terra que me deram. Posto aqui, sobrevivo como um personagem que habita clandestinamente dentro de mim.
*Leandro M. de Oliveira

sábado, 10 de outubro de 2009

Eu Nunca Guardei Rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

*Fernando Pessoa, por AIberto Caeiro

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Blusa Fátua

Costurarei calças pretas
com o veludo da minha garganta
e uma blusa amarela com três metros de poente.
pela Niévski do mundo, como criança grande,
andarei, donjuan, com ar de dândi.

Que a terra gema em sua mole indolência:
"Não viole o verde das minhas primaveras!"
Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência:
"No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!"

Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
que eu faço versos alegres como marionetes
e afiados e precisos como palitar dentes!

Fêmeas, gamadas em minha carne, e esta
garota que me olha com amor de gêmea,
cubram-me de sorrisos, que eu, poeta,
com flores os bordarei na blusa cor de gema!

*Maiakóvski
**Tradução: Augusto de Campos

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Daquilo que sei (Eles foram formatados)

Porque a mim nunca coube a arte de entreter, antes a de deixar o outro em grave tormenta. Se me mudo em arlequim, é a indulgência de meu desprezo pelo mundo! É preciso caminhar rumo ao abismo, é necessário tomar retiro naquela planície gélida a que os homens chamam solidão. Banha-te nas águas do esquecimento, deixa-te alheio ao mundo e um dia tornarás aqui como homem livre! Nalgum lugar de porvir, haverá para teu assombro, um remoçamento do ser que carregas, quando expulsar de ti todo o sangue condenado. Sorria, ou chore se quiser. As emoções são filhas do engano. Quando habitares longe, muito longe essas palavras terão eco. No dia em que entoares teu próprio cântico serás monarca de teu corpo inteiro, soberano de todo o mundo. Veja os homens que passam, com suas cangalhas e seus ressentimentos. Cangalhas servem a animais de tração e ressentimento é algo feito apenas para escravos. Seja subversiva, dance sem roupa, urine na frente de todos, transe enquanto os outros vão à igreja. Lembra meu amor, de quando a gente ficava deitado tentando explicar a vida e eu fantasiava que as nuvens eram alguma coisa caída do saco de pipocas de Deus? Tempos depois, como cedi ao pânico! Ao descobrir que não haviam nem Deuses e nem pipocas, pelo menos da forma como nos ensinaram. Também aquilo nem foi amor, era só o nosso espasmo particular da esquizofrenia coletiva do eu buscado no outro. Seguir tendências de moda nunca resolveu a vida de ninguém. Foi bom ter recuperado a sanidade, agora já podemos nos odiar em paz. Como é aguda a pungência da vida. Já que não posso fingir, calço meus pés com o pó da terra enquanto devoro sonhos alheios. Vamos caminhar sobre brasas, vamos vomitar nosso medo antes que o inverno chegue. Em campo aberto a carícia do vento tem a sutileza de um tapa na cara. Ressuscitar o espírito é ordem do dia, ocorre que o sangue ultimamente tem perdido sua cor. Morram os déspotas, vivam os ditadores de si próprios. Perdido por entre as manadas sem governo a gravidade de existir torna-se ainda mais exterior. Vida de gado, morte de indigente. Nenhuma dor de homem pode causar afetações na economia, essa é a lei. Já que daria a alma por tal sofisma, retorne à sua fonte, vista de novo seu uniforme e sua tristeza. O mestre espera por você. Quem vai te salvar a vida outra vez? Os raios costumam ser ruins de mira.

Tenho que partir pra nunca mais, até esse momento não o suspeitava. Vou sacar minha arma e disparar como um bandido da escória. Queria uma noite de porre mas, sou abstêmio...

*Leandro M. de Oliveira

Versos D'Angola

Findos horizontes fibras e folhas

rancor primitivo desde que o trema gaste tudo

apesar de tela arrefecida a edição liquidações
queria dizer um qualquer espanto cansado apesar de
restar mundos irrealizáveis arquipélagos resguarda
logo que atrapalhado expoente entra aberta
cega aurora mundo alternativo tampouca erva
aquela rosa antes que armazenada impressão espalhe
até que desova arquivos hoje quer antecedente pesar
num translúcido extermínio despositada família
nenhum mundo volitivo quer conseqüentes
próteses adequados dias findos sempre que horizontes

A câmara elemento da rasura


transmudar o monólogo obscuro emagrece

o tempo contrária plenitude imperfeita cai azeda palavra
há sempre limites para o exílio de textura vertical
penumbra os ângulos auroras de meia superfície
molham a relva tarde os papéis brancos infernos
ainda um corpo imperativa bainha defeito lençol
nascimentos esquecimentos descobrimentos
de rima relvado
poema fumaça da água viva conjunção os escombros
mastigado avesso árvores plana geometria parada
lança rasura a transparência devolve a montanha outra lavra

A voz portas do silêncio


abrem-se específicas

portas o silêncio pavimentada voz
o presente denso couro
consome-se deitado entre telas asfálticas
sucessivas palavras ausentes
neste dia as estradas de luz é forma de comunicação
as constelações nas horas diurnas flutuações
só a matéria da passadeira
sentia nas mãos o vento feder de luz
nos pés do reinventado silêncio
era a única linguagem da matéria que possuía falando

Em sexo livre a língua


entre as trevas e a seiva da sintaxe abundam palavras

inofensivas nada dizem à pátria por imitação os impérios
renovam os aspectos os tempos os modos
outro soldado emergia
unia a habitação a fonética e a fonologia ao sol de casa
pirâmides e intervalos o corpo cego texto
regenera cidades por visitar falida interacção
as meninas árvores nocturnas com portas e janelas polares
tudo treme sobre o papel a mesma travessia despersa tudo

*Abreu Paxe, poeta angolano

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Damian

"Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas agora já não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a sensatez e a confusão, a loucura e sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mentir a si mesmos (...) Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente em mim. Por que isso me era tão difícil? (...) Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas (...)
Quando me comparava com os demais, sentia-me muitas vezes orgulhoso e satisfeito comigo mesmo, e em outras tantas deprimido e humilhado. Ora me acreditava um verdadeiro gênio, ora fraco do juízo. Não me era possível compartilhar a vida e as alegrias dos outros rapazes de minha idade, e às vezes reprovava asperamente o meu isolamento e sentia profunda tristeza, crendo-me definitivamente afastado de todos os meus semelhantes, com todas as portas da vida fechadas irrevogavelmente para mim (...) A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro. (...) O caminho da maioria é fácil, o nosso é penoso. Caminhemos.”

*Hermann Hesse

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Espírito do tempo: Ainda acerca da "Metamorfose" de Kafka

Cabe a nós aqui, um breve comentário acerca da obra máxima de Franz Kafka. Em primeira análise é mister dizer que a base da força desse escrito é a sua atualidade. Mesmo depois de quase um século, a idéia central de “A Metamorfose” segue como tema de ordem do dia. Kafka redige seu texto às vésperas da primeira grande guerra na fase conhecida como crise da “Bélle Époque”. Nesse momento histórico o homem se vê em um dilema racional e religioso quanto a si mesmo. Era a crise nascente da modernidade oferecendo ao ente humano as mais agudas reflexões existenciais. Um dos temas mais bem trabalhados nesse livro é a impossibilidade da crença, o massacre de princípios que a esse passo estava financiado pela “nova era”, com seu espetáculo de frieza e relações impessoais. Nesse sentido, quando Samsa está metamorfoseado nesse inseto gigante, tem-se uma alegoria da falência social de nosso tempo. Convertemo-nos em seres essencialmente estranhos ao outro. Gregor é em verdade o arquétipo do homem moderno, esse desesperado, sem respostas, conforto ou esperança. O símbolo do inseto torna isso ainda mais exterior, esse animal esdrúxulo é o desprezo do homem por si mesmo.
O contemplo da pequenez humana, do estado de abandono ante a grandeza do mundo, levam aquele modesto caixeiro viajante a somatizar as penas de seu cotidiano, sendo essas de modo geral as mesmas de todos os cotidianos de qualquer homem comum. Ainda que esteja em casa na companhia dos seus, esse personagem verifica que suas experiências de vida são indissociáveis e inexpurgaveis dele, fazendo-o assim remoto por ser dono de um legado singular. Há também o fetiche da libertação, quando aquele homem se vê alheio ao mundo, sente-se de alguma sorte realizado em não estar mais participando de relações a seus olhos abomináveis.
Então por força sua atual forma, a de uma barata enorme, ele tem uma espécie de vingança inconsciente. Já não é mais o escravizado arrimo de família, já não é mais o vendedor obrigado a sorrir. Todavia, ao passo que se deleita, Gregor sente-se oprimido ao verificar que sua forma física não esta suficiente à expressão de tudo quanto sente. Sua repulsa acumulada pela família de exploradores, pelo insensível patrão, pela hipócrita social. Sentindo mais uma vez a impossibilidade de ação que é própria do homem médio em todos os lugares.
Gregor Samsa é em última análise um ser desprovido do “animus” da mudança, amordaçado em sua condição de filho dominado, de empregado explorado, de aspirante decadente a burguês. Como se aos poucos os pequenos fracassos fossem se sedimentando dentro dele de tal forma a reduzir-se em um animal treinado, abraçando assim a condição subumana. Para compreender o estruturalismo da psique desse personagem, possivelmente o momento mais simbólico é aquele em que seu pai atira-lhe uma maçã com intenção de matá-lo, isso sugere um algo bem edipiano e mau resolvido, dando assim as linhas gerais para o entendimento de sua inanição frente às desventuras do mundo. Há uma sugestão por parte de Kafka de que o pai de Gregor, aquela besta insensível, o tenha reduzido à condição de uma barata gigante mas, em verdade quem o tempo todo não arcou com o ônus da transformação foi o próprio Gregor.
Por fim vem a morte do protagonista em forma de libertação, tanto para ele quanto para os outros. Sua vida apática era um impecilio, um mal que acabara de ser curado. A irmã sai da completa solidão do lar para o convívio externo, o pai se vê remoçado. A morte de Samsa representa um marco na recuperação do tempo perdido, assim, por mais solitário que o homem esteja, sua existencia produz transformações nos outros.
A mensagem contida nessa idéia de transcendente do eu tem eco filosófico, psicológico e religioso muito acentuado. É o eterno discurso da imolação da carne própria em favor alheio, ainda que isso se dê de maneira involuntária. Dessa forma “A Metamorfose” nos convida a uma reflexão profunda acerca do papel do indivíduo no corpo social, seja em âmbito externo ou privado. O texto de Kafka é antes de mais nada um questionamento severo, sobre para onde caminha o ser guiado tão somente pela razão instrumental, pelas relações de consumo de nosso tempo, pelo desconhecimento do outro. É deveras ao leitor atento um texto imprescindível.

*Leandro M. de Oliveira

Metamorfose, um breve delírio

"Numa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num monstruoso inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou a figura convexa de seu ventre escuro sulcado por pronunciadas ondulações, em cuja proeminência a colcha dificilmente mantinha a posição, estava visivelmente a ponto de escorregar até o solo. Comparadas ao resto do corpo e às suas antigas pernas, agora possuía inúmeras as inúmeras patas, todas lamentavelmente esquálidas, oferecendo a seus olhos um espetáculo inconsistente de uma agitação sem governo.

- Que me aconteceu ?

Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhado e em completa desordem, um vasto mostruário de tecidos: Samsa era caixeiro-viajante, pendia uma fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, muito aprumada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado (ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela) isso infundiu-lhe uma melancolia aguda. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou."
(Franz Kafka)

Sobre o Autor e sua obra:
Franz Kafka nasceu em Praga, hoje capital da República Tcheca, em 3 de julho de 1883, e faleceu com 40 anos, em Klosterneuburg, cidade austríaca, em 3 de junho de 1924. Foi um dos maiores escritores de ficção da língua alemã do século XX. Sua família era da classe média judia, e estabelecida em Praga, Áustria-Hungria (agora República Tcheca).

O corpo de sua obra escrita destaca-se entre as mais influentes da literatura ocidental. No entanto, solitário e com a vida afetiva marcada por irresoluções e frustrações, Kafka nunca atingiu fama ou fortuna com seus livros, a maioria editados postumamente.

Seu estilo literário, presente em obras como a novela "A Metamorfose " de onde é extraído o trecho acima, retratam indivíduos inseridos no pesadelo de um mundo impessoal e burocrático. Seu estilo é despegado, imparcial, atencioso ao menor detalhe, verdadeiro e realista. Seus personagens são o retrato do homem do século XX, com todas as cismas e conflitos existenciais.

*Leandro M. de Oliveira
** Tradução de minha lavra comparando versões em português e espanhol

domingo, 4 de outubro de 2009

Al-Ma'mun

“Um dia em sonho um homem veio me visitar, ele estava sentado com a postura dos sábios. Me aproximei e perguntei:
- Quem é você?
- Sou Aristóteles o sábio.
- Aristóteles, por favor defina uma palavra justa.
- Aquela que é conforme a razão.
- O quê mais?
- Aquela que é agradável ao ouvinte.
- O quê mais?
- Aquela a qual não se deve temer as conseqüências.
- O quê mais?
- Não há mais nada. Todo o resto serve apenas para divertir os tolos.”
(Califa al-Ma'mun)

Al-Ma’mun foi o grande patrono das artes, da literatura e do conhecimento geral na história do Islam. No início do séc. IX ele reuniu em Bagdá a nata dos intelectuais de todo o mundo, persas, gregos, indianos e todos os grandes eruditos daquele tempo independente de raça ou nacionalidade. O Islam se mudou em uma civilização aberta, ansiosa pela descoberta, pela troca. Nessa época o grande califa cria “Baitul Hiqma” a casa da sabedoria, provavelmente a maior iniciativa para a reunião de conhecimento do mundo desde a grande biblioteca de Alexandria. Em Baitul Hiqma, os homens de letras tinham acesso a todos os maiores autores já existidos até aquele tempo, nesse período os trabalhos helênicos e indus, através de uma série de traduções, penetraram a cultura islâmica. Essa incorporou em seus modos o método filosófico da indagação, característico do mundo helênico - e é por esta razão que filósofos como Platão e Aristóteles passaram para as gerações seguintes, influenciando grandes pensadores muçulmanos. Tal incorporação levou a uma nova prática intelectual baseada nos princípios da pesquisa racional e, até certo ponto, ao empirismo. Assim durante o Califado de Al-Ma’mun floresceram medicina, arquitetura, poesia, mecânica... Enquanto na Europa os livros eram raros e proibidos, em Bagdá as livrarias se multiplicavam e pessoas dos pontos mais remotos para lá convergiam sua jornada à busca de conhecimento. Hoje Al-Ma’mun foi esquecido, Bagdá em outrora dita o “umbigo da terra” foi saqueada, por séculos a ex-grande mãe do conhecimento foi violentada e subvertida. Mas que todos saibam que certa vez houve um homem e uma cidade, que seu Deus amava o conhecimento e que sua religião era antes a evolução humana.

*Leandro M. de Oliveira

Nem a rosa, nem o cravo...

As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?

Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u'a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.

Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.

Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada - sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.

Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

*Jorge Amado
**Naty esse é seu.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Usos da Filosofia

Filosofia, como entenderei a palavra, é algo intermédio entre a teologia e a ciência. Como a teologia consiste em especulações sobre matérias inacessíveis até agora ao conhecimento definido, mas como a ciência apela para a razão de preferência à autoridade, quer da tradição, quer da revelação. Todo o conhecimento definido (...) pertence à ciência; todo o dogma como o que exEstacede o conhecimento definido pertence à teologia. Mas entre teologia e ciência há uma terra sem dono exposta aos ataques de ambos os lados: é a filosofia. As questões de maior interesse para os espíritos especulativos raro têm resposta científica e as respostas confiantes dos teólogos já não parecem tão confiantes como nos séculos anteriores. Estará o mundo dividido entre espírito e matéria? E, sendo assim, que é espírito e que é matéria? Está a alma sujeita à matéria ou tem energias independentes? Tem o universo unidade ou fim? Evolui para algum objetivo? Há realmente leis da natureza ou cremos nelas devido ao nosso inato amor da ordem? É o homem o que aparece ao astrônomo, um pequeno conjunto de carvão impuro e água, a arrastar-se impotente sobre um pequeno planeta sem importância? Ou é o que pensava Hamlet? Será as duas coisas? Há um tipo nobre e um tipo baixo de vida ou são todos meramente fúteis? Se um deles é nobre, em que consiste e como realizá-lo? Deve o bem ser eterno para poder ser apreciado ou merece procurar-se ainda quando o universo caminha inexoravelmente para a morte? existe de fato a sabedoria ou não passa de derradeiro requinte de loucura? Não há resposta em laboratório para tais questões. Pretenderam as teologias dar respostas, todas demasiado definidas, o que as torna suspeitas a espíritos modernos. Estudar essas questões, senão responder-lhes, é a tarefa da filosofia.
*Bertrand Russell

Carnaval imaginário

Sou uma vergonha. Minha inércia, meu excesso de teoria,
Minha preguiça em fazer a barba. Estou longe, muito longe.
Quantas rosas se abrem e não consigo sentir o perfume,
Nas noites mais longas Belchior me dava razão. Assim era.
Diga-me o que não posso. Hei de ser um cismador eter(no).
Se há acaso lugar seguro para ambições hipotéticas,
Não sei dizer com muita convicção, nisso tenho vacilado.

Já é outro dia, fiz a barba, dancei como um bêbado desesperado.
Superar a auto-abominação necessita um pouco mais daquilo...
Será ópio? Será coragem? Sei que posso rir enquanto escrevo.
Tão alheio ao nada, muito estranho ao tudo, fui ao largo campo
Em trote marcial, não reconheci meus inimigos. Donde foram?
A guerra tem seus próprios desígnios. É antes empresa íntima.
Nesse caso, estou em petição de miséria, por algum sacerdote
Ou um punhado de alcalóide. Nada sei das longas campanhas.

Desaprendi das mulheres, reaprendi da selvageria; é o mundo.
Se isso não fosse ato de terrorismo, teria te convidado a dançar.
Bá carneiro ovelha, se eu sentisse menos pena de mim mesmo
Poderíamos estar todos embriagados. Já é o terceiro dia...
Ele não ressuscitou. Confetes desbotados, apnéia do sono.
Lama nas ruas, lama nos pés. Gatos e homens desvalidos.
Mas eu estava lá, sempre existirei nalgum lugar, distante.

*Leandro M. de Oliveira
**Ps: A formatação ficou uma droga mas, acho que deu pra entender a moral da História.

Adônis, uma interpretação

A história de Adônis inicia-se com uma rede de histórias interpessoais, regadas aparentemente a paixão sexual; mais precisamente, é um desdobramento de ritos envolvendo o processo de individuação de homens e de mulheres.

Esmirna (posteriormente, Mirra) era filha de Téias, rei da Síria; desavisada dos perigos envolvendo a inveja de uma mulher pela beleza de outra, Esmirna deseja competir beleza com Afrodite.

Os mitos, geralmente, têm variações e numa versão diferente, Esmirna é filha de Cíniras, rei de Chipre, e de Cencréia: porque nasce muito bela, a mãe de Esmirna espalha a notícia ou a infâmia de que sua filha é mais bela que a própria Afrodite.

Ofendida com a petulância de Cencréia, Afrodite pune a mãe de Esmirna através da criança supostamente mais bela que a própria deusa.

O senso comum e até inúmeros especialistas costumam reduzir as qualidades de Afrodite a um caráter pejorativamente sensual, vingativa, explosiva, movida por descontroladas paixões e multiamores: é preciso aprofundar a compreensão da psique de Afrodite, despatologizando o seu caráter.

A deusa grega Afrodite é a deusa romana Vênus: o cognome de deusa do amor procede de uma interpretação redutiva do seu nascimento.

A deusa Géia e o deus Úrano tiveram vários filhos, os Titãs e as Titânidas, os Ciclopes e os Hecatonquiros.: após o nascimento, Úrano devolvia os próprios filhos ao ventre de Géia, temendo ser por eles destronado.

Cansada da atitude do marido, Géia liberta todos os seus filhos de seu ventre e a eles pede ajuda para destronar Úrano; todos, porém, se recusam a ajudar a mãe e destronar o pai, exceto um deles – o Titã Crono.

Com uma foice dada por Geia, o seu filho Crono corta os testículos do pai tão logo o mesmo se deita sobre a mãe para mais uma relação sexual: no clímax do orgasmo, os testículos de Crono são arrancados e lançados ao mar.

O sangue dos testículos de Úrano derrama-se sobre Geia e dele nascem as Erínias, os Gigantes e as Ninfas dos freixos (Melíades ou Mélias); quando os testículos de Crono caem no mar formam uma grande espuma da qual nasce Afrodite.

Afrodite, portanto, não é filha do amor mas filha da castração do pai, castração executada pelo próprio filho sob o pedido da mãe.

Filha de um pai castrado, tão prontamente nasce é levada pelas ondas do mar ou pelo vento Zéfiro para Citera e, depois, para Chipre aonde é acolhida, vestida e ornamentada pelas deusas Horas, guardiãs das portas de acesso à mansão dos deuses: por isso, após o acolhimento, a vestimenta e a ornamentação, Afrodite é levada pelas Horas ao Olimpo.

Horas ou Estações são mais três das outras quatro filhas de Zeus e de Têmis, a deusa da justiça divina e uma das Titânidas: Eunômia ou Talo (personificando a Disciplina, aquela que faz brotar), Dique ou Auxo (personificando a Justiça, aquela que faz crescer) e Irene ou Carpo (personificando a Paz, aquela que faz frutificar).

As deusas Horas estão sempre acompanhando Afrodite e Dioniso (Zagreu, Brômio e Iaco) – o masculiníssimo filho de Zeus desenvolvido em suas próprias coxas para suceder-lhe o reinado divino. Zagreu, o primeiro Dioniso, é filho de Zeus e Perséfone: Zagreu é raptado, despedaçado, cozinhado e devorado pelos Titãs, fulminados por Zeus e de cujas cinzas nasceram os humanos. Entretanto, Atená ou Deméter salvaram o coração de Zagreu que foi engolido pela princesa Sêmele, amante de Zeus, e tornando-se grávida do segundo Dioniso: mau orientada pela esposa oficial de Zeus, Hera, a amante Sêmele é fulminada pela visão absoluta de Zeus ao pedir-lhe para que se apresente a ela em toda a sua grandeza divina. Num gesto supremo, Zeus retira o feto do segundo Dioniso no ventre de Sêmele e o coloca em sua coxa de deus para continuar a gestação. Nasce o terceiro Dioniso gestado na coxa de Zeus.

Citeréia e Cípris são os outros nomes gregos de Afrodite, aludindo ao seu destino após o nascimento: não se trata de duas origens, mas de dois caminhos percorridos por Afrodite após o seu nascimento.

O epíteto de Afrodite Urânia lembra sua paternidade divina; o epíteto de Afrodite Pandêmia lembra sua paternidade humana.

Afrodite pertence à primeira geração divina (Úrano e Géia): nasceu de Úrano, ou mais exatamente da espuma formada pelo sangue dos testítulos de Úrano caído no mar.

Afrodite não foi concebida por mulher: sua geração pode ser tida como filha de Úrano e das espumas formadas no mar pelo sangue dos testículos do pai castrado.

Não há ligações seminais de Afrodite nem com a mulher nem com o chão da terra; sua ligação é com as águas do mar, receptoras do sangue dos testículos de Úrano: a interação águas do mar e sangue dos testículos produziram a espumarada da qual nasceu a deusa.

Mar ou Oceano e Úrano são homens, não se esquecendo de que Oceano é um dos Titãs filho de Úrano e Géia: pai de todos os rios, das espumas do deus Oceano formadas pelo sangue dos testículos de Urano.

Para mais amplas considerações, Úrano foi gerado por Geia sem o concurso de nenhum deus: ou seja, autogeradora, Géia fez nascer de si Úrano (personificação do Céu), Montes e Pontos (personificação do Mar).

Filho e esposo de Géia, do próprio Úrano sem Géia nasceu Afrodite – neta de Géia.
Nem Celestial nem Mundana, nem totalmente Urânia nem totalmente Pandêmia, Afrodite nasce de homens sem mulher; tais homens, por sua vez, nasceram de mulher sem homens.

Úrano, representado pelo touro, é símbolo masculino-feminino de força e de potência fálicas: eis porque Afrodite, sua filha, é símbolo feminino-masculino de força e de potência fálicas.

Deusa do amor e deusa da beleza são reduções humanas da força e da potência fálicas de Afrodite: o castigo por ela imposto a Mirra se deve à petulância da impotência fálica desta e não a uma mera disputa por quem é a mais bela.

O castigo de Afrodite a Esmirna dirige-se não à consecução de prazer com o objeto sexual – o pai; Esmirna deverá reverenciar o deus Falo que encarna exclusivamente no homem.

Falo é o pênis ereto e exclusivamente o pênis ereto como símbolo da encarnação do deus no homem: é extremamente fácil – e comum – desviar a força e a potência fálicas para a força e a potência genitais. Nesse desvio está o castigo.

Força e potência fálicas são atributos do deus Falo – independente da tipificação física e da orientação sexual de uma pessoa: a tal força e potência nomeio de energia fálica.

Por energia fálica entendo a energia psíquica do homem e da mulher a serviço da construção da personalidade total – nem feminina nem masculina: não se apóia, pois, nos estereótipos de masculino e de feminino criados e impostos pelo patriarcado e pela anatomia, igualmente mantidos na caracterização dos arquétipos anima e animus por Carl Gustav Jung.

Em verdade, a energia fálica é expressão do arquétipo animi também expresso em Adônis e Afrodite (...)

*Carlos Fernandes