terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tópicos Políticos: Stuart Mill, a utilidade da liberdade e da inclusão

Ha que se considerar afim de melhor entender o foco de Stuart Mill, o cenário político onde esse homem cresceu e se formou. Ele começa seus estudos ao longo da primeira metade dos anos 1800, tempo em que se consolidava a hegemonia do império colonial britânico, através do domínio cada vez mais largo e assentado de territórios ao redor do globo, sobretudo com suas ferrovias e sistemas de exploração comercial. No cenário interno, urge citar a emergência da classe operária e da nova burguesia urbana, ambas fruto da revolução industrial, assim como também a formação de uma economia de base monetária substituindo os velhos usos de trocas de mercadorias e afins. É nesse cenário onde novos atores emergem de forma cada vez mais presente, surge o autor em comento.

Desde sempre, a questão central apresentada a Mill possa ser identificada talvez como, de que maneira seria possível chamar ao processo político as massas falidas de trabalhadores vitimados pelo novo sistema industrial. A chave para a resposta a essa questão, passaria obrigatoriamente pelo crivo da invenção de um sistema legítimo de contestação pública, por meio de instituições que se mostrassem suficientes a canalizar os anseios da população como um todo. Além disso, era necessário se pensar as formas de condução do alargamento das bases sociais do sistema político. Nesse sentido, Mill propõem a universalização do voto e um grau jamais visto de emancipação da mulher como ferramentas para se promover a pluralidade de tendências nos partidos políticos, atendendo sobretudo as demandas do movimento operário de seu país.

Esses elementos somados vão dar vazão a uma concepção nova de liberalismo. Tal foco, atribui um valor extremado ao sujeito enquanto produtor de individualidade, pondo-o como predecessor da sociedade, valorizando nesse ponto mais que nunca a livre iniciativa. A sociedade aqui é um composto de artificialidades onde o sujeito navega e interage de acordo com seus interesses num cálculo de utilidade. Isso indica a acepção de que para Stuart Mill o individual produz o social e não o contrário, sendo a ação humana um algo que possui valor em si mesmo. É mister frisar que nesse jogo de inversões, o autor acaba transladando a teoria liberal da perspectiva descendente para a ascendente ao libertar-se de antigos paradigmas próprios do conservadorismo inglês como as idéias de cidadania restrita e voto censitário.

Dessa forma, o autor vai dialogar inclusive com as demandas formuladas pelos ideais democráticos do séc. XIX, ao perceber a participação da esfera política na dimensão de algo a ser repartido entre a sociedade, pensando a gestão da “res publica” como exercício que de alguma forma vai dizer respeito a todos os membros da comunidade política. Nesse ponto, surgem as implicações relativas à concepção de um modelo estatal que possua também ferramentas suficientes a garantir de forma institucional a participação cada vez mais abrangente no seu trato. Poder-se-ia dizer, que Mill em alguma medida flerta com um tipo agudo de democracia, entretanto isso seria errôneo da parte de quem o fizesse. Em verdade, ele abomina a tirania da maioria tanto quanto a da minoria representada pelos regimes passados.

O tema do perigo sempre presente num modelo democrático, de se formar um exercício tirânico por parte da maioria representada no poder, vai preocupar muito o autor.
Qualquer que seja a natureza de uma ditadura ou tirania, suas ações assim como a elaboração de leis, sempre terá um fundo ideológico relacionado a esse segmento que ocupa o poder, afastando dos juízos a equidade, degenerando as manifestações em ditames sectários. Por isso é imprescindível, que um sistema representativo ao qual se julge adequado, deve possibilitar a contestação e a coexistência dos interesses de setores diversos do campo social, a fim de que um contrabalanceie o outro para que em termos prático, nenhum se sobreponha a ponto de suprimir o que lhe é diverso.

A um outro ponto que se faz fundamental para entender as inclinações de Stuart Mill a conceber modelos de participação ampla. Esse ponto tem haver com a emergência na então Inglaterra de uma classe média excessivamente bairrista que prosperava cada vez mais, tornando-se em igual medida potência política e ameaça à liberdade de outros setores. Nesses termos colocado, era necessário a criação de medidas que contivessem o avanço da voraz classe média. Mill enxergava na participação popular através do voto uma sólida barreira protetora, à medida que diversificava tendências no momento da eleição. Enveredado nessa visão, ele parte rumo a duas proposições que se somam como mecanismos de contenção da barreira criada pelos novos atores que agora são chamados ao processo eleitoral.

Essas idéias vão dizer respeito a criar um sistema que valorizasse as proporcionalidades, garantindo espaço às minorias, por mais esparsas que essas se encontrassem pelo território. Além disso, uma espécie de filtro qualitativo, chamada voto plural. Nesse sistema, os votos tem peso diferenciado de acordo com o eleitor que o produz, no caso de Mill, a escolha dos segmentos intelectuais da sociedade possuía um peso maior que as escolhas de trabalhadores e proprietários. Assim, aos primeiros foi delegada a missão de ser o fiel da balança no sistema proposto. Mais uma vez é grato lembrar que, essas medidas foram propostas para tolher o avanço da classe média não como um ataque diretamente endereçado a ela, mas antes como medidas para prevenir a formação de uma tirania.

Lutar contra a tirania significa também salvaguardar a liberdade, pelo menos no sentido de liberdade de expressão. E essa que esta conecta à possibilidade de embate de opiniões na dimensão do público, encontra em Mill, um papel de extrema importância. De acordo com as linhas do autor, a liberdade é precisamente o valor que promove justiça e verdade entre homens, pois é o que faz emergir as diferenças levando ao confronto das idéias tão importante para apreender a significação das coisas numa dimensão ampliada. Uma última coisa a considerar é que quando esse texto pretendeu apresentar a liberdade como um valor, a intenção foi de mostrar algo diferente de um direito natural. Jonh Stuart Mill, como um defensor eminente do utilitarismo, colocava a liberdade enquanto conquista. Alcançada e perseguida por força de seu caráter útil na evolução humana. Assim, distanciando-a de um bem inato do indivíduo, o sistema colonialista britânico era lícito, pois as sociedades dominadas ainda não haviam atingido um gral de discernimento merecedor de liberdade.
*Leandro M. de Oliveira

Tópicos Políticos: Alexis de Tocqueville, sobre a vida intelectual da América

De antemão, é grato considerar as observações do autor referentes à diferença de postura em relação às expectativas acerca do homem numa sociedade aristocrática em contraposição com as perspectivas dentro de uma sociedade democrática. A aristocracia crê numa sociedade assentada essencialmente no que se poderia dizer de uma ordem natural imutável. Ela considera a possibilidade de evolução humana, porém, tão somente como uma melhora e nunca como um ganho qualitativo que possa acenar uma mudança substancial. Essa abordagem a respeito das faculdades de aperfeiçoamento do engenho humano, tem haver com a idéia de imutabilidade da ordem instituída. Significa dizer que ao aristocrata é necessária a concepção de um homem castrado, isto é, limitado em suas conquistas, para que a ordem “natural” das coisas seja mantida.

Em contraposição ao desejo aristocrático de uma manutenção perene das classes e posições sociais tornando a vida de uma comunidade política um exercício estático, a sociedade democrática aspira fundamentalmente a movimentação dos corpos em seu interior. A idéia a de que o homem está dotado indefinidamente da faculdade do aperfeiçoamento, incita a permissão aberta da livre iniciativa como talvez o laboratório máximo de erros e acertos humanos que irão mais tarde propiciar, nas palavras de Tocqueville, o encontro da grandeza imensa. Essa, pode ser traduzida em alguma medida como a promoção de uma igualdade entre homens, promovendo por força de sua presença, o fomento prosperidade geral onde os cidadãos possam se equivaler abundantemente em bens tanto materiais, como também imateriais.

Todavia, o autor coloca alguns dados que aparentemente contrariam a percepção, ou pelo menos, atacam um conceito tradicional do que seria uma sociedade evoluída nos moldes de então. Essas antíteses, apresentam-se todas na América, portanto, resta a proposta de estudar a democracia americana como algo aparte das demais experiências existentes. O fato é que pelo menos em tese, a quantificação dos avanços de uma sociedade esta identificada com o volume de descobertas científicas, de produção literária e artística de forma geral que esse corpo político é capaz de gerir. No caso dos Estados Unidos, o que se via então era uma atuação pífia nos campos da cultura em geral. Entretanto, o autor observa que as condições ímpares daquele país, geravam fenômenos não equivalentes em outras partes do mundo, assim, a América deve ser estudada em suas peculiaridades e não numa comparação equivalente com algumas sociedades européias por exemplo.

As condições da experiência democrática americana são excepcionais, não havendo paralelo com nenhuma outra até então vista. A proximidade do velho continente como forma de uma biblioteca com o acervo pronto para o estudo científico e artístico, a cultura fundada em hábitos comerciais, a origem assentada em puritanismo religioso e tantas outras facetas ímpares daquele país, levaram o povo a inclinar o espírito à lidas das coisas puramente materiais. Nesse sentido, os Estados Unidos, são uma experiência única, devendo-se assim estudá-los sem conclusões a priori. Talvez possa-se identificar, ainda que tacitamente, uma tendência de fundo nos escritos de Tocqueville que se manifesta no sentido de considerar que o avanço das ditas ciências do espírito no povo americano acontecerá impreterivelmente no momento em que esse alcançar um ápice econômico.

É um modelo mais ou menos criado em comparação às observações acerca da aristocracia tradicional européia. Essa casta, é constituída de homens que nunca necessitaram de uma afirmação social demonstrada em ganhos como os de prestígio político e financeiro. Considerado superior desde o berço, o aristocrata tem à mão todas as ferramentas às quais necessitar para a satisfação do corpo, podendo concentrar muito de seu tempo ao exame do espírito. O autor, também desse modo, deixa perceber sua crença que no momento em que alguns cidadãos forem se distanciando de outros na sociedade, esses então emergentes, estarão aptos a iniciar uma nova vanguarda de produção artística e científica. Os homens dentro de uma sociedade democrática cultivam a ciência, as letras e as artes, a única peculiaridade é que o fazem à sua maneira.

É importante salientar ainda que, num próximo momento, onde as necessidades do corpo são satisfeitas em toda a sociedade, o tempo ocioso é naturalmente voltado à alguma atividade, a tendência maior é que essa sempre esteja ligada à cultura. Então, de certa forma em Tocqueville, o caminho natural era que uma vez próspera, a sociedade americana alargasse o campo da pesquisa e da produção cultural em seu seio, o que provou-se acertado pelos anos que se seguiram.

Por fim, cita-se, a consideração feita pelo autor de que a igualdade gerada em um sistema político faz com que o homem nela imerso, busque julgar por si próprio, uma vez que as correntes da tradição, como aquela referente à idéia da existência de classes formadas por indivíduos superiores por exemplo, é inteiramente abolida e combatida. Essa tendência, de certa forma atrai o homem a uma vulgarização da ciência, livrando-a da abstração e preocupação teórica para inseri-la num campo de resultados práticos. Uma vez livre de intérpretes superiores, o homem está a vontade para codificar em si o conhecimento como bem entender.

Em se tratando do cenário americano, Tocqueville já identificava uma sedução especial pela parte teórica do conhecimento que permitisse sua imediata aplicação. Mais adiante, um álibi utilizado para o desinteresse na abstração pura, é que essa necessita meditação e tranqüilidade, ambos estados seriam virtualmente irrealizáveis numa everfescência democrática. As instituições dos sistemas democráticos levam os homens nela inseridos a agirem constantemente, isso subtrai o tempo necessário à contemplação. Nesse sentido, científica e culturalmente falando, poder-se-á dizer talvez que em Tocqueville que a sociedade americana é uma sociedade essencialmente pertencente ao porvir.
*Leandro M. de Oliveira

Tópicos Políticos: Jean-Jacques Rousseau, o contrato

De antemão consideramos para entender o impacto da obra de Jean-Jacques Rousseau que esse representa essencialmente uma ruptura, com alguns dos maiores nomes da escola contratualista como Thomas Hobbes e Jonh Locke, sendo para tanto sua visão de comunidade política algo ligado a uma idéia de associação voluntária e não mais de um pacto necessário nascido da dominação ou visando a auto-preservação por exemplo. Essa associação vai nascer, sobretudo da verificação de uma impossibilidade de se retomar a liberdade natural do homem, criando de alguma sorte como paliativo um modelo de liberdade artificial, que é aquilo que se chama de liberdade civil. O referido estado de liberdade existe dentro da comunidade política organizada, onde é enfatizado a imperatividade do direito em detrimento da ditadura da força.

Para Rousseau o direito construído numa determinada sociedade é um conceito de raízes morais arraigado em pressupostos da razão, portanto é uma manifestação da vontade geral. A força por sua vez, é mero fato da dimensão física, assim sendo, pode ser entendida como uma manifestação animal, o que não é compatível com o homem dotado de razão. Desse modo, não pode haver contrato, ou em outras palavras, é inexistente o direito num sistema tirânico de imposição da força. Essa afirmação parte do entendimento de que a liberdade é uma característica imanente da condição humana, tão logo, ninguém irá alienar sua liberdade gratuitamente. O contrato social é então apresentado como o pacto que garantiria a contraprestação de ganhos para aqueles que optaram por submeter suas liberdades a um governante.

Dito isso, vale frisar que para a obediência de um povo a um governante é imprescindível que antes haja um contrato de associação, já que a força não pode suplantar a vontade. Essa soma de intenções individuais é o que cria a chamada vontade geral que por ser um todo de aspirações comuns é indissolvível e imperiosa sobre qualquer vontade dissidente de um indivíduo em sociedade. Todavia, em Rousseau o homem é portador da essência do bem, isto é, ele é bom por natureza. Assim, qualquer princípio formulado fora do homem é degenerado e mau, é dito que a vontade geral pode errar porque em algum momento ela pode se perder em interesses privados construídos e defendidos por grupos organizados.

Para que a vontade geral se manifeste de maneira plena é mister que seja assegurado que cada cidadão manifeste seu pensamento de maneira livre e democrática. Por força de formulações como essa pode-se definir o Contrato Social como uma obra de viés republicano que funda a proposição de um modelo de Estado pautado em grande medida por valores da antiguidade clássica. Todavia, cabe por fim a observação de que o contrato social para Rousseau é a saída possível, mas não a ideal. Pois o contrato é o aprisionamento do homem à medida em que ele legitima um poder que estará constantemente contra o indivíduo e contra a sua natureza.
*Leandro M. de Oliveira

Tópicos Políticos: Hobbes, o homem e o medo

Em primeiro lugar ao situarmos esse autor no tempo, encontramo-lo dentro da tradição de pensamento conhecida como contratualista, isso significa dizer que em Hobbes o Estado surge como um ente necessário e desejável. Pois, em se tratando de uma ótica contratual, a idéia basilar é de que para se viver em harmonia, os homens devem abdicar da sua liberdade pessoal em favor do bem estar da comunidade. Nesse sentido, os homens necessitam então firmar um pacto, isto é, um contrato social, e para tanto o Estado é eleito como depositário e guardião dessa aliança. Assim, sua atuação é legítima e irrestrita frente a um cidadão, por força de ser o poder estatal o veículo de exercício da consciência coletiva.

É mister dizer a respeito da criação do pacto, que Hobbes teme antes de mais nada o retorno do homem a seu estado de natureza, que é em linhas gerais um estado de barbárie, o que pode impedir essa entrega aos sentidos é o acordo de convivência entre pessoas que se diz contrato social. Todavia, em oposição ao que o senso comum tende a aceitar, a barbárie natural do homem sem governo não é essencialmente causada por um “mau” imanente ao gênero humano, mas por um extinto de auto-preservação que torna as pessoas inimigas de seu próximo na disputa de bens que favoreçam a continuação da vida. Dito isso, observa-se uma cisão clara de pensamento com alguns autores importantes da mesma escola dos contratos, como Jean Jacques Rousseau por exemplo, que conceitua a existência da virtude e da bondade como naturais ao homem por si só.

Para Rousseau, o estado de natureza é o momento mais excelso do sentido de humanidade presente em cada um. Em contrapartida, o Estado positivo, que hobbesianamente é a ferramenta de salvação do gênero humano, para o autor francês é mais um mau necessário, um recurso de segunda ordem que vem pra conter os ânimos após a degenerescência enfrentada sobretudo na criação da propriedade privada. Hobbes é desse modo, a antítese direta à Rousseau e a todo o secto de pensadores desenvolvidos à margem de suas idéias. Bem como apresenta toda uma ruptura com a tradição grega em geral e o legado aristotélico, já que aqui a comunidade política não é exatamente uma aspiração de felicidade que condiz com a natureza do gênero, mas antes um acontecimento impreterível para a conservação da espécie.

Isso, por entender como já dito, que só pode haver um sentido de equilíbrio social quando existe um poder geral e imperativo para regular e suprimir a tendência natural das gentes que seria a agressão mútua. Outro ponto que a filosofia hobbesiana trabalha com esmero é a idéia de unidade contra a anarquia, frisando que a possibilidade de uma discussão aberta acerca do justo e do injusto, do certo e do errado, é exatamente o que pode provocar a desagregação do poder, colapsando o seio social e tornando o homem a seu estado originário. Dessa forma, o aumento da liberdade individual rima com diminuição do poder do Estado, o que num desenrolar natural dos eventos traz anarquia e instabilidade às nações.

Essa cadeia de eventos tende a desaguar naquilo que é a expressão máxima do anarquismo, a guerra civil. Esse tipo de conflito é a morte do Estado, a perda total de uma referência do convívio harmônico entre homens. Assim, pode-se dizer que para Hobbes as possibilidades benéficas de refundação da comunidade política não são exatamente aceitas. Pois, tudo o que tem haver com ofensa à ordem estabelecida é elencado como reflexo da condição humana degenerada, não há uma alternativa à realização plena do homem senão em um corpo político organizado. Sua obsessão é construir um Estado de bases indissolutíveis que contrarie o “direito de natureza” em favor do “direito positivo” que seria estabelecido pela própria sociedade, tendo no Estado a figura de seu fiel sentinela.

Esse Estado de viés radicalmente absolutista tem sua descrição máxima na metáfora do Leviatã e sua urgência para o bem estar da comunidade política vem de dois pressupostos básicos. Os quais sejam, a vida humana. O homem enquanto um átomo de egoísmo deve amenizar sua tendência à agressão mútua trabalhando em sociedade. Também o conceito de convencionalismo, esse vai dizer que os homens estabelecem entre si regras para que se possa sobreviver em paz até alcançar o direito a uma morte natural e não violenta. Percebe-se aqui o leviatã como a encarnação de uma consciência que pretende-se onisciente e onipresente.

Assim colocado, há no ente humano a urgência de regulação por um Estado total, positivo e concentrado em todos os aspectos da vida em grupo. Dele vai derivar o que se pode dizer da idéia de uma ferramenta capaz de racionalizar o egoísmo dos homens que termina por ser também auto-destrutivo. Hobbes vai argüir a atribuição de uma legitimidade ao governante por meio de um consenso em que todos tenham conhecimento. Isso se deve pelo fato de que esse indivíduo representa o Estado para normatizar a vida em grupo de uma maneira irretratável, uma vez que da firmeza do julgo estatal depende a vida estável da comunidade política. Como especula no trecho a seguir:

“(...) até o momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba; o que será impossível até o momento em que sejam feitas as leis, e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter determinado qual a pessoa que deverá fazê-la. (...) Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa guerra civil”. (Hobbes, Thomas. 1983, p. 110)

Nessa passagem fica clara tanto a necessidade de um ente específico para regular a vida social, bem como uma necessidade latente da violência regulamentada do Estado para com seus cidadãos. É dessa feita, pelo grau de habilidade em subtração das consciências individuais e alienação das vontades singulares que se pode medir o sucesso de um governo.

Em último é importante salientar que o governante, o cérebro do Leviatã, não governa em nome próprio. Ele é um representante no sentido mais largo do termo e como tal, vai tratar apenas de zelar pelo bem estar dos representados. Assim o governante é absoluto e tem poderes plenos, todavia, quando não cumpre sua função social que é a de fomentar uma justiça distributiva no sentido de garantir direitos e deveres comuns a todos, ele pode a qualquer momento enfrentar a deposição.


Em Hobbes a sociabilidade do homem é uma criação artificial inventada face ao medo da guerra e ao desejo de paz, isso faz com que ele conceba leis comuns, estabelecendo o pacto social que fundamenta o Estado. Nsse sentido, é possível imaginar que o autor tenha sido uma grande fonte de inspiração aos modelos de Estado totalitário e das ditaduras de direita que ocorreram no último século.
*Leandro M. de Oliveira

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Abre Todas as Portas

Abre todas as portas: a que conduz ao ouro,
a que leva ao poder, a que esconde o mistério
do amor, a que oculta o segredo insondável
da felicidade; a que te dá a vida
para sempre no gozo de uma visão sublime.

Abre todas as portas sem te mostrares curioso
nem ligar nada às manchas de sangue
que salpicam as paredes das habitações
proibidas, nem às jóias que revestem os tetos
e aos lábios que na sombra procuram os teus,
nem à palavra santa que espreita nas ombreiras.

Desesperadamente, civilizadamente,
contendo o riso, secando tuas lágrimas,
no extremo do mundo, no final do caminho,
a ouvir como assobiam as balas inimigas
em volta e como estão cantando os rouxinóis,
não duvides, irmão: abre todas as portas.
Embora não haja nada dentro.

*Luis Alberto de Cuenca

Manobras de Outono

Não digo: isso foi ontem. Com insignificantes
trocos de Verão nos bolsos, estamos de novo deitados
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
E a nós não nos é dada, como aos pássaros,
a retirada para o sul. À noite passam por nós
traineiras e gôndolas, e por vezes
atinge-me um estilhaço de mármore impregnado de sonho,
onde a beleza me torna vulnerável, nos olhos.

Leio nos jornais muitas notícias - do frio
e suas consequências, de imprudentes e mortos,
de exilados, assassinos e miríades
de blocos de gelo, mas pouca coisa que me dê prazer.
E porque havia de dar? Ao pedinte que vem ao meio-dia
fecho-lhe a porta na cara, porque há paz
e podemos evitar essas cenas, mas não
o triste cair das folhas à chuva.

Vamos viajar! debaixo de ciprestes
ou de palmeiras ou nos laranjais, vamos
contemplar a preços reduzidos
inigualáveis pores-de-sol! Vamos esquecer
as cartas ao dia de ontem, não respondidas!
O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém,
com o bater da culpa - não estamos em casa.
Na cave do coração, desperto, encontro-me de novo
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.

*Ingeborg Bachmann

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Um mapa da crença: Teorias antropológicas da religião

É útil dividir as teorias antropológicas da religião em três grupos: teorias da solidariedade social (ou da coesão social), teorias do sonhar alto e teorias intelectualistas (ou cognitivistas). As teorias da solidariedade social tomam as necessidades da sociedade como primárias e explicam a religião em termos do modo como esta as satisfaz, especialmente pela sua suposta promoção da harmonia e coesão. As teorias do sonhar alto tomam como primárias as emoções dos indivíduos e explicam a religião em termos do mitigar de sentimentos negativos, como o medo e a solidão, e da promoção da confiança ou da serenidade. Por fim, as teorias intelectualistas tomam como primária a necessidade humana de compreender o mundo. Desta perspectiva, a interpretação religiosa do mundo é, antes de tudo e principalmente, uma tentativa de compreensão. Cada uma destas teorias pode ser combinada com qualquer das outras duas, ou com ambas.

A teoria da segurança social tem sido a abordagem principal na antropologia desde a fundação desta última nos finais do séc. XIX. É uma forma de funcionalismo, dado explicar a religião pelo incutir nominal de fidelidade a uma sociedade. A religião consegue-o por meios simbólicos, usando roupas especiais, arquitetura, canto, dança e fórmulas verbais para aumentar sentimentos comunais. Na verdade, chama-se por vezes simbolismo à teoria da solidariedade social, querendo dizer que sustenta que a religião é uma atividade inteiramente simbólica que não se envolve com o mundo como um todo (como os seus executantes ou observadores poderiam pensar), mas apenas com as relações sociais humanas. Os seus símbolos podem estar ocultos e ser apreendidos apenas inconscientemente.

Que o simbolismo religioso unifica a sociedade não é uma idéia nova. Na Ásia oriental, por exemplo, o uso da religião pelo estado remonta pelo menos a 1027 a.C., quando a nova dinastia Chou citou a sua conquista dos povos subjugados como um sinal de que tinha recebido o mandato do Céu. As dinastias posteriores continuaram a fazer a mesma afirmação. Além disso, integraram Confúcio como uma figura quase religiosa que apoiava o estado, como fizeram os governos do Japão e da Coréia. No Japão tanto o culto de Shinto como o dos antepassados servia a unidade nacional. No ocidente ocorreu o mesmo: a perspectiva (e uso) da religião como forma de solidariedade social surgiu cedo e tem persistido. Começando pelo menos com Políbio, no séc. I a.C., e seguido por Bodin, Vico, Comte e Freud, entre outros, e mais recentemente Wilson e Roes e Raymond, muitos estudiosos sustentaram que a religião mantém a ordem social.

A teoria da coesão social, contudo, deve muito a Durkheim, que procurava saber como as sociedades mantêm a coesão. Afirmou que o conseguem em grande medida por meio da religião, que inclui crenças e práticas que são "relativas às coisas sagradas" e que organizam os seguidores em grupos de solidariedade. As coisas sagradas não têm de incluir deuses (o budismo, escreve Durkheim, é uma religião sem deuses): são seja o que for que represente os elementos essenciais da sociedade. As coisas profanas, pelo contrário, constituem uma categoria residual de tudo o que não é sagrado. A distinção feita pela religião entre o sagrado e o profano é o seu sinal característico.

Baseando-se em etnógrafos da religião aborígene australiana, Durkheim concluiu que o objeto principal de culto dos membros dos clãs australianos, o "totem," representa na verdade o próprio clã, e que é o clã que é sagrado. O mesmo princípio se aplica nas sociedades modernas complexas. O objeto explícito de culto, seja um totem, uma bandeira ou Deus, representa tudo o que é vital e portanto sagrado na sociedade. Ao formular e exprimir o sentimento de dependência mútua dos membros de uma sociedade, sentimento que de outro modo é apenas esporádico, a religião consolida-o e aumenta-o. Isto ajuda a fazer os membros comportar-se eticamente relativamente aos seus semelhantes e arregimenta-os em defesa da sociedade.

A teoria da solidariedade social tem vários pontos fortes, sobretudo o fato de as religiões parecerem muitas vezes ter produzido solidariedade e de os líderes de várias sociedades terem usado esta capacidade. Contudo, a teoria tem também pontos fracos. A tese de Durkheim de que a característica central da religião é a sua dicotomia entre sagrado e profano, por exemplo, foi imediatamente alvo de objeções de etnógrafos que relataram que nas culturas que estudaram não encontraram tal distinção.


Outro problema é que se a tese de que as religiões unem as sociedades é mais do que a tautologia de que as religiões unem os seus membros, então é preciso mostrar que as religiões emergem de grupos que têm outra base qualquer, que depois a religião fortalece. Mas na verdade há muitos tipos de grupos — famílias, aldeias, comunidades étnicas, estados — que a religião divide em vez de unir. Um corolário é que ao passo que os grupos sociais são alegadamente preservados pela religião, muitos têm ao invés sido destruídos por ela. Exemplos disso são os T'ai-p'ing Tao da China do séc. II a.C. e o Templo do Povo de Jonestown.

Por fim, é preciso responder a um problema de todo o funcionalismo: por que se adota a característica em causa (a religião) no sistema em causa (uma sociedade) que dela beneficia? Os funcionalistas ignoram muitas vezes esta questão ou parecem tacitamente sancionar algo como uma explicação darwinista: as sociedades com um dado traço têm mais sucesso e portanto sobrevivem mais ou espalham-se mais. O traço sobrevive com elas.


A questão mais básica de como surgem os traços também é habitualmente ignorada. Pode-se conjecturar que surgem apesar de adequada para descrever mutações, é uma explicação empobrecida da origem de uma cultura aleatoriamente, seguindo o modelo da mutação genética. A aleatoriedade, contudo, sabe-se demasiado sobre os processos mentais humanos para os entregar ao acaso cego.

Além disso, os traços culturais, ao contrário dos genéticos, não são transmitidos biologicamente, tendo de ser aprendidos e muitas vezes também ativamente ensinados. Logo, levanta-se a pergunta: o que motiva as pessoas a ensinar ou a aprender doutrinas ou comportamentos particulares? Esta pergunta torna-se mais aguda pelo fato de as pessoas que o fazem parecerem muitas vezes não estar cientes dos benefícios sociais atribuídos pelo observador. No caso da religião, por exemplo, poucas pessoas afirmam que rezam porque isso torna a sociedade mais coesa.

O fato de o funcionalismo vis-à-vis a religião (e a outras características das sociedades e dos organismos) persistir deve-se, talvez, não à sua plausibilidade sob análise mas por exercer uma certa atração intuitiva mas enganadora. A atração é que o funcionalismo zomba da propensão humana, do que nos apercebemos pelo menos desde Hume e que foi pormenorizada experimentalmente por Kelemen, para encontrar desígnio e propósito no mundo em geral. Esta propensão, mostra Kelemen, emerge espontaneamente nas crianças desde muito novas ("as nuvens existem para haver chuva") e permanece poderosa durante toda a vida. Kelemen mostra que esta tendência assume prontamente uma forma religiosa. Alguns religiosos atuais particularmente fervorosos, por exemplo, crêem ver um "desígnio inteligente" que rivaliza o evolucionismo como explicação científica da biologia. Contudo, esta crença parece revelar mais sobre as suscetibilidades perceptivas humanas do que sobre a biologia.

Assim, a teoria da coesão social de Durkheim e de outros não parece resistir às objeções a um conceito nuclear (a distinção sagrado-profano), aos contra-exemplos nos quais a religião não é um fator de coesão mas de dispersão, e por fim não consegue fornecer uma dinâmica credível da gênese e transmissão da religião. Apesar de a religião muitas vezes unir os grupos e poder ser deliberadamente usada para esse propósito, não é por essa razão que as pessoas a adotam. Além disso, a religião também separa muitas vezes os grupos.

Há uma segunda coleção de teorias pode-se chamar a abordagem do sonhar alto. Segundo estas teorias, a religião serve de paliativo para a ansiedade e descontentamento humanos, imaginando uma condição mais satisfatória, seja no presente, seja no futuro. Ao postular um mundo no qual podemos melhorar-nos apelando a deuses, ou no qual o sofrimento da vida será compensado por uma vida melhor no porvir, a religião torna a vida suportável.

Estas teorias têm também uma linhagem antiga. Vários autores têm observado que a religiosidade está correlacionada com a ansiedade, pelo menos desde a observação de Eurípides de que a tensão nos conduz, devido à "nossa ignorância e incerteza," a prestar culto aos deuses. Analogamente, Diodoro Sículo escreveu que o desastre nos disciplina, fazendo-nos ter "reverência pelos deuses". Espinosa, Feuerbach, Marx, e os antropólogos do séc. XX Malinowski e Kluckhohn fizeram observações comparáveis.


O defensor da teoria do sonhar alto mais amplamente lido, contudo, é sem dúvida Freud. Antropólogos que seguem Freud incluem Kardiner e Linton, Spiro, Wallace e La Barre.
(...)
Para Freud, as religiões são delusões, "nascidas da necessidade de o homem tornar o seu desamparo tolerável" e são "ilusões, realizações dos desejos mais antigos, fortes e urgentes da humanidade". As suas características particulares são "projeções" de emoções e experiências.

A noção de projeção, contudo, é uma metáfora enganadora, provavelmente baseada numa teoria popular da visão como toque. Entre outros problemas, implica que há dois tipos de percepção: projeção, que é subjetiva e falaciosa, e percepção improjetiva, que é objetiva e precisa. Esta implicação é contradita pelo fato de toda a percepção refletir os interesses do agente perceptivo, não havendo um ponto de vista neutro.


Muitas religiões, além disso, não se adequam bem a qualquer teoria da realização dos desejos por terem características que é improvável que alguém deseje. As divindades de algumas são cruéis ou coléricas, e têm muitas vezes como complemento demônios ou fantasmas assustadores. Noutras, a vida depois da morte ou não existe ou é efêmera, ou é um Hades ou outro lugar desagradável. Tais religiões podem ser tão ameaçadoras quanto promissoras. Como um antropólogo comentou, poder-se-ia igualmente sustentar que as religiões provocam "medos e ansiedades que de outro modo não existiriam."

Mesmo que no cômputo geral as idéias religiosas pendam para o conforto e não para a aflição, seria necessário explicar o que as torna credíveis. Não parece que acreditamos simplesmente no que nos poderia confortar. Como Pinker faz notar, opondo-se à teoria do conforto, as pessoas que estão a morrer de frio não parecem confortar-se a si mesmas com o pensamento de que na verdade estão quentes.

Ao terceiro grupo de teorias chama-se intelectualismo, cognitivismo ou (por vezes) neo-tylorianismo. Estas defendem que a religião é primariamente uma tentativa de entender o mundo e de agir de acordo com esse entendimento. Uma dessas teorias, a de Tylor, era a mais importante das primeiras teorias antropológicas da religião. Tylor, que é um humanista clássico, evolucionista e comparativo, descreve a religião como uma tentativa universal de explicar certas experiências humanas enigmáticas.

A teoria de Tylor, como acontece com as teorias anteriores da solidariedade social e do sonhar alto, tem predecessores. O seu comparativismo e aparentemente o seu humanismo recuam a Xenófanes (séc. VI a.C.), cujos fragmentos relatam que os seres humanos formam os seus vários deuses às suas diferentes imagens. Os etíopes, por exemplo, fazem os seus deuses negros, ao passo que os trácios lhes dão cabelo vermelho. Muito depois, Espinosa e Hume, a que Tylor atribui a formação da opinião moderna sobre a religião, anteciparam melhor Tylor ao escrever que a religião popular, pelo menos, consiste em atribuir características humanas ao mundo inumano, para interpretar o que nos rodeia e que de outro modo seria enigmático.

Tylor acrescentou a estas idéias mais antigas uma ênfase na evolução cultural que, combinada com um comparativismo mais abrangente, reforçou a perspectiva naturalista da religião como mais um produto da atividade mental humana. Como comparativista, baseou-se sistematicamente nos relatos de viajantes, administradores, missionários e primeiros etnógrafos para ter descrições de crenças e práticas por todo o mundo, para encontrar um denominador comum das religiões. Via as diferenças culturais, incluindo religiosas, como um reflexo não da genética mas de formas de sociedade, dado que uma "unidade psíquica" de processos mentais comuns existe em todos os seres humanos. Estas ênfases tornaram-se parte do cânone antropológico.


Tylor concluiu que a religião se pode definir como animismo, uma crença em seres espirituais, e que esta crença emerge universalmente de duas experiências: sonhos e a morte de outras pessoas. Os sonhos são interpretados em todo o lado, afirmou, como visitas do que é objeto do sonho (Tylor chamou "fantasma" ao visitante). A morte, em contraste, é em quase todo o lado concebida como a partida de algo (a "vida"). O fantasma e a vida são então concebidos como uma só coisa, o "espírito". Isto é uma imagem humana diáfana e insubstancial, sendo por natureza um gênero de vapor, película ou sombra; a causa da vida e do pensamento no indivíduo que anima; possuindo independentemente a consciência pessoal e a volição do seu dono corpóreo, do passado ou do presente; capaz de deixar o corpo para trás, de fulgurar subitamente de lugar para lugar; sendo na sua maior parte impalpável e invisível, manifesta contudo também poder físico, aparecendo especialmente aos homens, acordados ou a dormir, como um fantasma.
(continua...)
*Stewart E. Guthrie

sábado, 13 de novembro de 2010

Espinoza - Pensamento e Liberdade

Fragmentos de uma conferência do saudoso professor Cláudio Ulpiano, filósofo carioca que viveu entre 1932 e 1999. Embora especialista em Deleuze, autor sobre o qual escreveu sua tese de doutorado. Aqui ele nos apresenta uma abordagem segura acerca do sistema de pensamento construído por Baruch de Espinoza.

Nos vídeos que se seguem o tema é Pensamento e liberdade que são questões chaves no projeto filosófico do referido pensador. Uma aula dada com propriedade e fôlego por alguém que sabia o que dizia, espero que apreciem.

Parábola do Inferno

(Em quase todas as culturas o arquétipo do demônio
e seus afins, está identificado com o movimento.
É ele, segundo o vulgo, quem faz o mundo acontecer primariamente.
Uma parábola do inferno pode ser o relato possível daquilo
que é apreendido numa viagem a reinos obscuros da
mente com a intenção de saber como tudo inicia...)

Ele começou a convencer-se da condição de alter-ego, sempre que algo não agradava a consciência oficial, aquele ser era compulsivamente evocada. Tais chamamentos por parte do consciente externo não foram raros, o vigilante puro embora entregue, havia desenvolvido uma sem conta de fantasias para deixar-se ao mundo. Ele precisava de quantos escudos pudesse reunir. Nosso personagem original não se queixava dessa concorrência que o fazia se manifestar um tanto quanto sazonalmente, uma vez que, deixado a mercê de sua vontade, tinha mais tempo para si mesmo. Embora não haja meditação suficiente a sanar a impressão de um corpo amputado, ele pensava. Quando aqui chegou, os efeitos de seu parto nesse mundo, ecoaram parecidos com um madeireiro a serrar galhos de planta condenada. Viver na mente de outrem seria um exílio?

A bendita sensação de distância, a maldita certeza de estar incompleto. No momento em que os portais dessa realidade se abriram, uma das condições exigidas foi a de que algo ficasse para trás. A totalidade do ser não obteve espaço suficiente na limitação débil do veículo a ele entregue. Era possível que o não-viver como incriado em alguma medida fosse mais grato que o viver como produto dum delírio. Pretendia-se lá e tão somente, algures de qualquer mataborrão de possibilidades. Agora que lhe deram o desejo do caminho, cortaram-lhe as pernas com uma lâmina cega. Ele poderia ter sido um ser humano digno, caso não fosse produto de pensamentos esparsos. O acaso é tudo! Um alter-ego é uma derivação ordinária do eu, não há um princípio divino em nada. Ele agora tem a impressão de ser feito da mesma substância que os sonhos. Sendo assim, com efeito, seu criador é também sonho?

Um homem projeta um mundo onde grassam animais por toda a parte, um animal projeta uma natureza repleta de espécies vegetais, um desses arbustos por sua vez, projeta um céu de chuva a nutrir a terra e essa água é a seus olhos a maior divindade que se pode conceber. Esses mundos embora hipotéticos, existem em alguma medida. Assim, tudo é ficção, o homem é um engenho vazio do da ânsia por si mesma. Criar dimensões é um álibi daqueles que se negam a testemunhar o nada inalterado. Ele saiu à rua com grandes expectativas, mas lá chegando, enfim deu por si... Da mesma forma que com as ruas onde nunca se caminhou e o homem do qual nunca se teve notícias, todo bem é hipotético. Você precisa morrer para viver de uma forma mais plena, sem desejo ou meta pode ser que as coisas se realizem, porque tudo é vazio em si.

Ele é deveras um alter-ego. Todavia, que mais se pode ser quando a impressão de não se guiar pela própria vontade é ininterrupta? O demônio nos daria abrigo do sol e uma bela roupa pra dançar, poderia ser, se acaso existisse de fato. Buscar a culpa na treva exterior é uma tentativa inútil de expurgar a própria escuridão. Deus só fez sentido algum dia por que a fé precisou ser testada, e de todas as invenções ele terminou por ser uma das mais impuras. Maldito seja quem nos transformou em fração do divino. Crer numa origem é uma das seduções mais infames. E você se sente elevado, e se sente pleno. O homem é o único animal da natureza que num projeto de busca do bem, usurpa e agride tudo quanto há de valoroso em seu semelhante. A raça humana é antes de mais qualquer coisa, filha da ganância e da dissimulação. Isso de fato poderia ter sentido, não fosse só um pensamento a me ocorrer enquanto escrevo.

E o homem que é não-homem, permanece latente, à espreita de um vacilo da consciência oficial. Será que nos tornamos algo quando aquilo que nos concebeu se pôs a dormir? Os religiosos provavelmente adorariam isso, mas o que é a vida senão um acidente da matéria. Onde estão os desígnios além de na cabeça de fanáticos que passam o tempo a imitar cruzados do medievo e de candidatos a homens bomba... A consciência é um cadáver, muitas vezes putrefato, que foi cuidadosamente acondicionado em cada uma de nossas costas. Ela pesa, porém abriga. Mas a que preço? Você vai morrer e sua contribuição mais alta será a de matéria orgânica decomposta para a manutenção de alguma colônia de vermes. Não é possível viver grandiosamente a não ser quando se convence que a vida é uma piada de quinta.
*Leandro M. de Oliveira

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Liberdade é um Discurso Político?

Nós começamos a tomar consciência da liberdade ou do seu oposto na nossa relação com os outros, não na relação com nós próprios. Antes de se ter tornado um atributo do pensamento ou uma característica da vontade, a liberdade era entendida como a situação do homem livre, que lhe permitia mover-se, sair de casa, dirigir-se para o mundo e reunir-se com outras pessoas, falar com elas. Esta situação da liberdade era claramente precedida por uma libertação: para ser livre, o homem tinha primeiro de se libertar das necessidades da vida. Mas a situação de liberdade não decorria automaticamente desse ato de libertação. A liberdade requeria, para além da mera libertação, a companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado, e requeria também um espaço público comum onde estes pudessem ser encontrados - ou seja, um mundo politicamente organizado, no qual os homens livres se pudessem integrar através da ação e da palavra.

É claro que a liberdade não caracteriza todas as formas de relacionamento humano nem todos os tipos de comunidade. Onde os homens vivem em conjunto sem formarem um corpo político - como acontece, por exemplo, nas sociedades tribais ou na privacidade do lar - os fatores que regem a sua ação e a sua conduta são, não a liberdade, mas as necessidades da vida e as dificuldades relacionadas com a sua preservação. Além disso, onde o mundo feito-pelo-homem não se converte em cenário para o discurso e para a ação - como nas comunidades governadas de um modo despótico, que expulsam os seus súditos para a estreiteza do lar e assim impedem a formação de uma esfera pública - a liberdade carece de realidade mundana. Sem uma esfera pública politicamente garantida, a liberdade fica sem espaço onde emergir. Claro que pode sempre habitar no coração dos homens como desejo ou vontade ou esperança ou anseio; mas o coração humano, como todos sabemos, é um local bastante escuro, e o que quer que aconteça na sua obscuridade dificilmente pode ser considerado um fato demonstrável. A liberdade como fato demonstrável coincide com a política, e as duas estão intimamente relacionadas.
*Hannah Arendt

Muito Além do Cidadão Kane - 17 anos depois

Com 17 anos de atraso o Soturna Primavera apresenta o documentário britânico “Muito Além do Cidadão Kane". Esse filme apresenta Roberto Marinho o então dono da mídia brasileira, como um exemplo perfeito da concentração de poder da imprensa no Brasil. O título é uma referência à personagem criada por Orson Welles no filme Cidadão Kane.

O tema central é o domínio crescente da TV Globo na imprensa brasileira no início dos anos 90, esse envolveria contratos ilegais com empresas estrangeiras, um apoio incondicional aos governos ditatoriais no Brasil e tudo o que estiver ao alcance para garantir seus interesses, incluindo-se mesmo a manipulação de debates políticos para eleger o governo, como ocorreu no caso Collor de Mello. Esse filme tem como proposta explicar de que maneira funciona a política brasileira de comunicações e os critérios arbitrários pelos quais se concedem e renovam as concessões de canais de televisão e rádio.

A manipulação da grande imprensa no Brasil tem uma longa história. Grandes jornalistas já atacavam a corrupção da imprensa na Primeira República. Rui Barbosa denunciou o primeiro presidente brasileiro, Marechal Deodoro da Fonseca, por utilizar o Banco do Brasil para calar uma redação que faria denúncias de fatos sórdidos, com a quantia, na época exorbitante, de 200 contos de réis. Essa prática continuou ao longo dos anos: em diversas ocasiões o Banco do Brasil foi pressionado pelos governantes para fazer grandes empréstimos que jamais foram pagos. Nos anos 50, jornalistas influentes como Assis de Chateaubriand recebiam tais "empréstimos" com freqüência.

Nos dias de hoje essas práticas continuam presentes, mostrando que a corrupção da imprensa além de fato é instituição nos meios de comunicação brasileiros. Porém agora, somam-se outros elementos ao jogo político da imprensa como instituições religiosas e profetas bilionários, se é que me entendem... Assim, mudam-se os atores, mas o libreto da opereta segue inalterado. Nesse sentido, esse documentário feito em 1993 é ainda muito atual. Ajudando a entender por exemplo, por que o jornal nacional e outros derivados sempre tem “explicações” pras notícias apresentadas ao invés de veiculá-las deixando livres os espectadores para se perguntarem a respeito. Sim, eles pensam por você.


Espero que apreciem.

*Leandro M. de Oliveira

terça-feira, 2 de novembro de 2010

O Cais

Não me leve aonde eu não quero ir.
Doravante não há como demover
Um tumor que sequer existiu.
Ele é o mundo inteiro do ontem,
Um grito de mãe velha no cais
À espera eterna do filho morto.
O mar dessas paragens é bravio,

A água com seu condão uterino.


Existir é sensação de ser em si,
Ser é representar-se simbolicamente,

Não há uma aventura mais onírica.
Impressão de tempo é fábula intransigente.

Nunca me perdi em coisa alguma,
Tempo não houve para a formulação,
Nasceu incriado em mim
O não lugar que eterno sou.

Pra sempre a esmo das certezas.
Marinheiro que jamais teve porto,
Beduíno perene das dunas de sal.

Escavei a consciência com os dentes,
Me descobri soterrado pelo que não é.
Que se pode oferecer aos vermes do jardim,
Senão o bolor escondido no próprio peito.

Seja um bom menino,
Dance sobre o fio de uma navalha.

*Leandro M. de Oliveira