terça-feira, 20 de julho de 2010

Don Juan (A presa vem às cercanias de seu predador)

O momento passou sem que ela lesse os sinais do caminho. A premonição é um dom mais ordinário do que se imagina, mas as pessoas esquecem. Todos os avisos possíveis foram dados previamente, muito embora se reconheça que meus quadris os tenham dissimulado. Agora é uma viagem sem volta. Trarei meu coração vazio e a horda de cães famintos que me habitam em toda parte. Se fossemos espíritos tão grandiosos não estaríamos aqui, a fama ou a vitória é uma quimera cega. Por um momento ela hesitou de mim, mas a sensação de perigo é qualquer coisa como fugir ou estar de férias. Transgredir tem seu preço, é provável que aceitar a própria modéstia fosse uma garantia de perenidade. Pode ser. Então Don Juan não existiria e todos seriamos gado pastoreado do rebanho tedioso e uniforme. Não que eu a vá transformar em coisa mais digna.

Desde cedo compreendi que a brancura do couro virgem não combina com o negro de minhas sombras. Isso te excita mais que o aparente, vejamos de uma vez como você suporta o frenesi do carinho de mãos que n’alma soam como navalha afiada. Abrirei uma chaga no horto de teus sonhos, caso eles sobrevivam ao que esta por vir. A consciência de ter sido vomitado pelo universo não é exatamente algo reconfortante, mas sobretudo pedagógico. Quando não se espera nada de alguém ele é livre para ser o que quiser, mesmo não entendendo o que isso significa. Estar alheio ao comum confere uma espécie de onipotência, isso deve ser vivido em silêncio, a trilha de corpos já é alarde suficiente. Por que você não manteve distância antes que eu descobrisse que era só uma mulher? O seu direito à fuga acaba de ser cerceado, se houvesse uma próxima vez eu recomendaria mais cautela. Ninguém nunca conseguiu durar tanto tempo. Acredite em mim, você não é nem um pouco melhor.

Quando isso terminar... Não saberia o que dizer. Mergulharei em tuas entranhas como um javali selvagem rasga a pradaria. Terei ardor ao comer de tua carne, ao beber de teu sangue, mesmo não sendo algo pessoal. Sou refém da história que me deram, o que faço não é por vaidade, tudo é um fim em si mesmo. Essa, aquela, loura, parda, ruiva, completamente incidental. Não sinto amor, nem ódio, nem tristeza ou alegria. Essa situação pode parecer perversidade de minha parte, não é. Isso nada tem haver com discursos morais ou outras mentiras quaisquer, a questão aqui envolve apenas uma compreensão mais refinada da cadeia alimentar. Pedir ou berrar, a partir desse ponto ja é irrelevante. Ninguém me ensinou outros modos, a única coisa que sei é queimar plantações e derrubar casas, por mais vistosas que sejam.

Existe uma beleza intransponível na tragédia, se quer um sobrevôo pela vida, meu corpo é o único planador possível. O leito que te afaga e a dor que te há de consumir. Quando for levantar pela manhã, não estranhe a falta de paladar no café, é natural a quem já está morto. O prazer é um cavalo selvagem, sempre derruba quem nele monta sem demonstrar cautela. Eu só venho cobrar a tua dívida, nada mais. Olhe-me nos olhos enquanto escarro em teu rosto, esse é um gesto da minha ternura mais profunda. Quero que você se concentre no que havia antes de mim, porque agora tudo foi perdido.
*Leandro M. de Oliveira

Um comentário:

Monica disse...

Olá Leandro!

Refletindo, sobre o predador,
me lembrei de um conto de fadas,
O Barba-azul e de um estudo da
autora Clarissa Pinkola Estés-
"Mulheres Que Correm Com Os Lobos"
"...Existe dentro da psique um aspecto contra naturam inato,uma força voltada " contra a natureza.
Esse potentado predatório irrompe no meio dos planos da alma mais significativos e profundos.
Na história do Barba-azul,vemos uma mulher que cede ao encanto do predador,que acorda para a realidade e foge dele,mais sábia...
O conto de fadas trata da transformação de quatro introjeções sombrias; não veja,não tenha insight,não fale,não aja.
Precisamos fazer o contrário.Devemos abrir as coisas com chaves ou a força para ver o que está dentro delas.Devemos usar o nosso insight e nossa capacidade de suportar o que vemos...
Quando a expressão da alma está sendo ameaçada,não é só aceitavel fixar um limite e ser fiel a ele;é imprescindível...ela reconhece logo o que está errado e tem condições de empurrar o predador de volta ao seu devido lugar.Ela já não é mais ingênua.Ela já não é mais uma meta ou um alvo.E é esse o antídoto mágico que afinal faz com que a chave para de sangrar...
No final da história do Barba -azul
seus ossos e cartilagens são deixados para os abutres.Esse fato nos dá um forte insght sobre a transformação do predador.Essa é a última tarefa para a mulher nessa viagem com o Barba-azul;a de permitir que a sua natureza de vida-morte-vida desmanche o predador e o leve embora para ser incubado,transformado e devolvido à vida."