segunda-feira, 6 de junho de 2011

Além

Muito além de lugar algum é como se beijasse o chão com a força de olhos. Faz o sinal da cruz e escarra sobre ele com a torpeza dos que envelheceram antes da infância. Meu lugar é o que virá e enfim começo a me sentir ressarcido. Ao talhe do artista mais raro, um corpo a simular verdades decaídas.

O que quererá a vida de nós, o que pretenderei eu que já não ouso coisa alguma... A chegada sempre tardia, as muitas intragabilidades da deficiência alheia. O cume de uma montanha só parece algo grandioso visto de baixo, no alto tudo é planície e ordinariedade como em qualquer viela marginal. O espelho mudado na invenção mais incerta, porque sustentar a beleza à luz do dia exige mais que um reflexo sofismático.

Setenta e sete metros abaixo do chão parece ser um bom lugar para se ocultar um cadáver. Todavia, isso não indica o que fazer o aquilo que resta dele. Gerir a transposição da existência numa coisa inominada, apreender a dimensão da verdade depois de haver existido em erro. Algures num planeta parecido com esse, inventado ou percebido pela intuição, pessoas fazem seu trabalho maquinal, riem, comem, lembram, esquecem. Num sítio diverso do que estou agora, tenho a impressão de que o existir existe apenas, com todo o resto sendo algo como uma doença nos olhos.

A tortura mais arcaica, um homem que sangra sozinho. Você só leu sobre o inferno na bíblia, meu amor. Eu, estive lá! Descendo ao Hades com a verdade dos nunca sentiram remorso, determinadamente a querer que a beleza se reinventasse do enxofre de estar vivo. Falhei como um amador barato, não consegui transpor o estige. Agora essa sombra é como todas as outras sombria, e ela ainda está lá. Desfolho os dedos por sobre uma lápide imaterial, taciturnamente um comboio imaginário de homens sem rosto leva o que restou daqui.

Qualquer encruzilhada que dê numa sala sem janelas sou eu, ermo, solene, desabitado. De todos os vícios a vaidade pode e deve ser o mais sórdido. Mergulhar num corpo alhures, arrancar de um organismo exterior a obstinação necessária. Ninguém jamais penetrará esse mistério, a geração que não virá, o entendimento selado onde as mãos não alcançam, como fora sonho ou maldição que não se sente. Imortalidade tem haver com ser incapaz de aceitar a grandeza das coisas. Que é o homem além de um ser amputado?

A consciência assim como vontade nunca se compartilham, amar frequentemente é um nome sofisticado que se criou para rituais antropofágicos.

*Leandro M. de Oliveira