terça-feira, 28 de outubro de 2008

Proletários e comunistas


Qual é a posição dos comunistas em relação ao conjunto dos proletários?
Os comunistas não formam um partido distinto, oposto aos outros partidos operários.
Não têm interesses alguns que não sejam os interesses do conjunto do proletariado.
Não proclamam princípios especiais sobre os quais queiram modelar o movimento operário.
Os comunistas só se distinguem dos outros partidos operários em dois pontos: 1. Nas diferentes lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem valer os interesses independentes da nacionalidade e comuns a todo o proletariado; 2. Nas diferentes fases por que passa a luta entre proletários e burgueses, representam sempre os interesses do movimento no seu conjunto.
Praticamente, os comunistas são, pois, o setor mais resoluto dos partidos operários de todos os países, têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma clara compreensão das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário.
O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os outros partidos proletários: constituição dos proletários em classe, derrubamento da dominação burguesa, conquista do poder político pelo proletariado.
As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam de modo algum em idéias e princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo.
Elas não são mais do que a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve diante dos nossos olhos. A abolição das relações de propriedade até aqui existentes não é uma característica peculiar e exclusiva do comunismo.
Todas as relações de propriedade sofreram constantes mudanças históricas, contínuas transformações históricas.
A Revolução Francesa, por exemplo, aboliu a propriedade feudal em proveito da propriedade burguesa.
O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa.
Ora, a propriedade privada de hoje, a propriedade burguesa, é a última e mais acabada expressão do modo de produção e de apropriação baseado nos antagonismos de classes, na exploração de uns pelos outros.
Neste sentido, os comunistas podem resumir a sua teoria a esta fórmula única: abolição da propriedade privada.
Censuram-nos, a nós, comunistas, por querer abolir a propriedade pessoalmente adquirida, fruto do trabalho do indivíduo, essa propriedade que declaram ser a base de toda a liberdade, de toda a atividade, de toda a independência individual.
A propriedade bem adquirida, fruto do trabalho, do esforço pessoal! Referis-vos, por acaso, à propriedade do pequeno burguês, do pequeno camponês, a essa forma de propriedade que precede a propriedade burguesa? Não precisamos de aboli-la: o progresso da indústria aboliu-a e continua a aboli-la diariamente.
Ou referi-vos talvez à propriedade privada moderna, à propriedade burguesa?
Mas, será que o trabalho assalariado, o trabalho do proletário, cria propriedade para o proletário? De maneira alguma. Ele cria o capital, quer dizer, a propriedade que explora o trabalho assalariado e que só pode acrescentar-se na condição de produzir mais e mais trabalho assalariado, a fim de o explorar de novo. Na sua forma atual, a propriedade move-se no antagonismo entre o capital e o trabalho assalariado. Examinemos os dois termos deste antagonismo.
Ser capitalista significa ocupar não só uma posição meramente pessoal na produção, mas também uma posição social. O capital é um produto coletivo: só pode ser posto em movimento pela atividade conjunta de todos os membros da sociedade.
O capital não é, pois, uma força pessoal; é uma força social.
Em conseqüência, se o capital se transforma em propriedade coletiva, pertencente a todos os membros da sociedade, não é a propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. Só terá mudado o caráter social da propriedade. Esta perderá o seu caráter de classe.
Examinemos o trabalho assalariado.
O preço médio do trabalho assalariado é o mínimo do salário, quer dizer, a soma dos meios de subsistência indispensáveis ao operário para manter a sua vida, como operário. Por conseguinte, aquilo de que o operário se apropria pela sua atividade é o estritamente necessário para reproduzir a sua vida, reduzida à sua simples expressão. Não queremos de maneira nenhuma abolir esta apropriação pessoal dos produtos do trabalho, indispensável à mera reprodução da vida humana, essa apropriação que não deixa nenhum lucro líquido que confira um poder sobre o trabalho de outrém. O que queremos suprimir é o caráter miserável desta apropriação, que faz com que o operário não viva senão para acrescentar o capital e tão só na medida em que o interesse da classe dominante exige que viva.
Na sociedade burguesa, o trabalho vivo não é mais do que um meio para aumentar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista, o trabalho acumulado não é mais do que um meio de ampliar, enriquecer e tornar mais fácil a existência dos trabalhadores.
Deste modo, na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na sociedade comunista é o presente que domina o passado. Na sociedade burguesa, o capital é independente e tem personalidade, enquanto que o indivíduo que trabalha não tem independência, nem personalidade.
E é a abolição de semelhante estado de coisas o que a burguesia considera como a abolição da personalidade e da liberdade! E com razão. Pois trata-se efetivamente de abolir a personalidade burguesa, a independência burguesa e a liberdade burguesa, entende-se a liberdade de comércio, a liberdade de comprar e vender.
Mas se o tráfico desaparece, a liberdade de traficar desaparece também. De resto, todas as grandes palavras sobre a liberdade de comércio, do mesmo modo que as fanfarronadas liberais da nossa burguesia, só têm sentido quando aplicadas ao tráfico entravado e ao burguês subjugado da Idade Média; mas não têm nenhum sentido quando se trata da abolição, pelo comunismo, do tráfico, das relações de produção burguesas e da própria burguesia.
Ficais horrorizados por querermos abolir a propriedade privada. Mas na vossa sociedade atual a propriedade privada está abolida para nove décimos dos seus membros. É precisamente porque não existe para esses nove décimos que ele existe para vós. Reprovai-nos, pois, o querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir na condição da imensa maioria da sociedade ser privada de qualquer propriedade.
Numa palavra, acusais-nos de querer abolir a vossa propriedade. Na verdade, é isso que queremos.
Segundo vós, a partir do momento em que o trabalho não pode ser convertido em capital, em dinheiro, em renda da terra, numa palavra, em poder social susceptível de ser monopolizado; quer dizer, a partir do momento em que a propriedade pessoal não pode transformar-se em propriedade burguesa, a partir desse momento a personalidade fica suprimida.
Confessais, pois, que por personalidade só entendeis o burguês, o proprietário burguês. E essa personalidade deve, certamente, ser suprimida.
O comunismo não tira a ninguém a faculdade de se apropriar dos produtos sociais; ele não tira mais do que o poder de subjugar o trabalho alheio por meio desta apropriação.
Objetou-se ainda que, com a abolição da propriedade privada cessaria toda a atividade e uma preguiça geral se apoderaria do mundo.
Se assim fosse, já há muito tempo que a sociedade burguesa teria sucumbido à ociosidade, visto que, nesta sociedade, os que trabalham não ganham e os que ganham não trabalham.
Toda a objeção se reduz a esta tautologia: onde não há capital, não há trabalho assalariado.
Todas as objeções dirigidas contra o modo comunista de apropriação e de produção dos elementos materiais foram igualmente feitas em relação à apropriação e à produção dos produtos do trabalho intelectual. Do mesmo modo que, para o burguês, o desaparecimento da propriedade de classe equivale ao desaparecimento de toda a produção, o desaparecimento da cultura de classe significa para ele o desaparecimento de toda a cultura.
A cultura, cuja perda deplora, não é mais, para a imensa maioria dos homens, do que o adestramento que os transforma em máquinas.
Mas é inútil procurar discutir conosco enquanto aplicardes à abolição da propriedade burguesa o critério das vossas noções burguesas de liberdade, cultura, direito, etc. As vossas idéias são, em si mesmas, produto das relações de produção e de propriedade burguesas, assim como o vosso direito não é mais do que a vontade da vossa classe erigida em lei; vontade cujo conteúdo está determinado pelas condições materiais de existência da vossa classe.
A concepção interessada que vos fez erigir em leis eternas da Natureza e da Razão as relações sociais emanadas do vosso transitório modo de produção e de propriedade - relações históricas que surgem e desaparecem no curso da produção - partilha-la como todas as classes dominantes hoje desaparecidas. O que concebeis para a propriedade antiga, o que concebeis para a propriedade feudal, não vos atreveis a admiti-lo para a propriedade burguesa.
Querer abolir a família! até os mais radicais se indignam perante este infame desígnio dos comunistas.
Em que base assenta a família atual, a família burguesa? No capital, no lucro privado. A família, plenamente desenvolvida, não existe, a não ser para a burguesia; mas ela tem por corolário a supressão forçada de toda a família para o proletariado e a prostituição pública.
A família burguesa desaparece naturalmente ao deixar de existir o seu corolário, e um e outro desaparecem com o desaparecimento do capital.
Reprovais-nos o querer abolir a exploração dos filhos pelos pais? Confessamos esse crime.
Mas dizeis que destruímos os vínculos mais íntimos, substituindo a educação em família pela educação social.
E a vossa educação, não está também determinada pela sociedade, pelas condições sociais em que educais os vossos filhos, pela intervenção direta ou indireta da sociedade através da escola, etc.? Os comunistas não inventaram esta ingerência da sociedade na educação, eles não fazem mais do que mudar o seu caracter e arrancar a educação à influência da classe dominante.
As declamações burguesas sobre a família e a educação, sobre os doces laços que unem os filhos aos pais, tornam-se cada vez mais repugnantes à medida que a grande indústria destrói todos os vínculos de família para o proletário e transforma as crianças em simples artigos de comércio, em simples instrumentos de trabalho.
Mas vós, os comunistas, quereis estabelecer a comunidade das mulheres! - gritam-nos, em coro, toda a burguesia.
Para o burguês, a sua mulher não é mais do que um instrumento de produção. Ouve dizer que os instrumentos de produção devem ser utilizados em comum, e, naturalmente, não pode deixar de pensar que as mulheres partilharão a sorte comum da socialização.
Não suspeita que se trata precisamente de arrancar a mulher ao seu papel atual de simples instrumento de produção.
Nada mais grotesco, aliás, do que o horror ultramoral que inspira aos nossos burgueses a pretensa comunidade oficial das mulheres que atribuem aos comunistas. Os comunistas não têm necessidade de introduzir a comunidade das mulheres: ela existiu quase sempre.
Os nossos burgueses, não satisfeitos de ter à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários, sem falar da prostituição oficial, encontram um prazer singular em cornear-se mutuamente.
O matrimônio burguês é, na realidade, a comunidade das esposas. Quando muito, poder-se-ia acusar os comunistas de querer substituir uma comunidade de mulheres hipocritamente dissimulada, por uma comunidade franca e oficial. É evidente, de resto, que, com a abolição das relações de produção atuais desaparecerá a comunidade das mulheres que delas deriva, quer dizer, a prostituição oficial e não-oficial.
Acusam-se também os comunistas de quer abolir a pátria, a nacionalidade.
Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem. Mas, como o proletariado tem, em primeiro lugar, de conquistar o poder político, elevar-se à condição de classe nacional, constituir-se em nação, é ainda nacional, posto que, de maneira nenhuma, no sentido burguês.
O isolamento nacional e os antagonismos entre os povos desaparecem de dia para dia com o desenvolvimento da burguesia, a liberdade de comércio e o mercado mundial, com a uniformidade da produção industrial e as condições de existência que lhe correspondem.
O proletariado no poder os fará desaparecer ainda mais depressa. A ação comum do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições da sua emancipação.
Aboli a exploração do homem pelo homem, e abolireis a exploração de uma nação por outra nação.
Ao mesmo tempo que o antagonismo das classes no interior das nações, desaparecerá a hostilidade das nações entre si.
Quanto às acusações lançadas, dum modo geral, contra o comunismo, partindo de pontos de vista religiosos, filosóficos e ideológicos, não merecem um exame aprofundado.
Será necessária uma grande perspicácia para compreender que as idéias, as concepções e as noções dos homens, numa palavra, a sua consciência, mudam com toda a mudança sobrevinda nas suas condições de vida, nas suas relações sociais, na sua existência social?
Que demonstra a história das idéias senão que a produção intelectual se transforma com a produção material? As idéias dominantes em qualquer época nunca passaram das idéias da classe dominante.
Quando se fala de idéias que revolucionam toda uma sociedade, exprime-se apenas o fato de que no seio da velha sociedade se formaram os elementos de uma sociedade nova, e de que a dissolução das velhas idéias marcha a par da dissolução das antigas condições de existência.
Quando o mundo antigo estava no seu declínio, as velhas religiões foram vencidas pela religião cristã. Quando no século XVIII, as idéias cristãs foram vencidas pelas idéias do iluminismo, a sociedade feudal travava uma luta de morte contra a burguesia, então revolucionária. As idéias de liberdade religiosa e de liberdade de consciência não fizeram mais do que refletir o reinado da livre concorrência no domínio da consciência.
"Sem dúvida - dir-se-á - as idéias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., modificaram-se no decurso do processo histórico. Mas a religião, a moral, a filosofia, a política, o direito mantiveram-se sempre através dessas transformações.
Existem, além disso, verdades eternas, tais como a liberdade, a justiça, etc., que são comuns, a todos os regimes sociais. Mas o comunismo quer abolir estas verdades eternas, quer abolir a religião e a moral, em vez de dar-lhe uma forma nova, e isso contradiz todo o processo histórico anterior".
A que se reduz esta acusação? A história de todas as sociedades que existiram até hoje era feita de antagonismos de classes, de antagonismos que revestem formas diversas nas diferentes épocas.
Mas qualquer que tenha sido a forma destes antagonismos, a exploração de uma parte da sociedade pela outra é um fato comum a todos os séculos anteriores. Por conseguinte, não é de espantar que a consciência social de todos os séculos, a despeito de toda a variedade e de toda a diversidade, se tenha movido sempre dentro de certas formas comuns, dentro de umas formas - formas de consciência - que só desaparecerão completamente com o desaparecimento definitivo dos antagonismos de classes.
A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações de propriedade tradicionais, portanto, não há nada de estranho em que no decurso do seu desenvolvimento rompa da maneira mais radical com as idéias tradicionais.
Mas, deixemos as objeções feitas pela burguesia ao comunismo.
Como já vimos mais acima, o primeiro passo da revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia.
O proletariado servi-se-á da sua supremacia política para arrancar pouco a pouco à burguesia todo o capital, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, quer dizer, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar com a maior rapidez possível a quantidade das forças produtivas.
Isto naturalmente, não poderá fazer-se, de inicio, senão por uma violação despótica de direito de propriedade e das relações burguesas de produção, quer dizer, pela adoção de medidas que do ponto de vista econômico, parecem insuficientes e insustentáveis, mas que, no decurso do movimento ultrapassar-se-ão a si mesmas e serão indispensáveis como meio de transformar radicalmente todo o modo de produção.
Estas medidas, naturalmente, serão muito diferentes nos diversos países.
No entanto, nos países mais avançados poderão ser postas em prática quase em toda a parte as seguintes medidas:

1. Expropriação da propriedade da terra e afetação da renda da terra às despesas do Estado.
2. Imposto fortemente progressivo.
3. Abolição do direito de herança.
4. Confiscação da propriedade de todos os emigrados e sediciosos.
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um Banco nacional, com capital do Estado e monopólio exclusivo.
6. Centralização nas mãos do Estado de todos os meios de transporte.
7. Multiplicação das empresas fabris pertencentes ao Estado e dos instrumentos de produção, arroteamento dos terrenos incultos e melhoramento das terra cultivadas, segundo um plano se conjunto.
8. Trabalho obrigatório para todos; organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura.
9. Combinação da agricultura e da industria; medidas tendentes a fazer desaparecer gradualmente o antagonismo entre a cidade e o campo.
10. Educação pública e gratuita de todas as crianças; abolição do trabalho das crianças nas fábricas tal como hoje se pratica. Combinação da educação com a produção material, etc.

Uma vez que no decurso do desenvolvimento tiverem desaparecido os antagonismos de classe e se tiver concentrado toda a produção nas mãos de indivíduos associados, o poder publico perderá o seu caráter político. O poder político, para falar com propriedade, é a violência organizada de uma classe dominante, destrói pela violência as antigas relações de produção, suprime ao mesmo tempo que estas relações de produção as condições para a existência do antagonismo das classes em geral e, portanto, a sua própria dominação como classe.
Em substituição da antiga sociedade burguesa, com as suas classes e os seus antagonismos de classe, surgirá uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um será a condição do livre desenvolvimento de todos.

*Karl Marx e Friedrich Engels
fevereiro de 1848

sábado, 25 de outubro de 2008

Einstein Vida e Obra

 

O mais célebre dos cientistas do século XX, responsável por teorias que revolucionaram não apenas a física, mas o próprio pensamento humano, Einstein acreditava que só a evolução moral impediria uma catástrofe no planeta Terra.

Albert Einstein nasceu na cidade alemã de Ulm, em 14 de março de 1879. Filho de um pequeno industrial judeu, iniciou os estudos em Munique e cedo se destacou no estudo da matemática, física e filosofia. Ainda na infância, incentivado pela mãe, começou a estudar violino, instrumento que o acompanharia ao longo da vida. Com o objetivo de tornar-se professor, concluiu o curso de graduação no Instituto Politécnico de Zurique, em 1900, época em que já dedicava a maior parte de seu tempo ao estudo da física teórica. Obteve nessa época a cidadania suíça e, não tendo conseguido colocação na universidade, aceitou um lugar no departamento de patentes em Berna.
Em 1905, ano em que concluiu o doutorado, Einstein publicou quatro ensaios científicos, cada um deles com uma grande descoberta no campo da física. No primeiro, fez uma análise teórica do movimento browniano, produzido pelo choque das partículas de um líquido sobre corpos microscópicos nele introduzidos; no segundo, formulou uma nova teoria da luz, com o importante conceito de fóton, baseando-se na teoria quântica proposta em 1900 pelo físico Max Planck; no terceiro, expôs a formulação inicial da teoria da relatividade e no quarto e último trabalho, propôs uma fórmula para a equivalência entre massa e energia, a célebre equação E = mc2, pela qual a energia E de uma quantidade de matéria, com massa m, é igual ao produto da massa pelo quadrado da velocidade da luz, representada por c.

Descoberta da relatividade. No ensaio dedicado à relatividade, intitulado "Elektrodynamik Bewegter Körper" ("Movimento eletrodinâmico dos corpos"), o cientista afirma que espaço e tempo são valores relativos e não absolutos, ao contrário do que se acreditava até então. Afirma ainda ser a da luz a velocidade máxima no universo e acrescenta: para o corpo que se deslocasse a essa velocidade, o tempo sofreria uma dilatação, ao mesmo tempo em que se registraria uma contração do espaço. Assim, o corpo que permanecesse em repouso envelheceria em relação ao outro corpo, em movimento.

Cada vez mais respeitado no meio acadêmico, Einstein ensinou em Berna, Zurique e Praga, entre os anos de 1909 e 1913. Foi então convidado a ocupar uma cátedra na Universidade de Berlim, que pouco depois acumulou com a direção do respeitado Instituto Kaiser Wilhelm. Nessa época, sua grande preocupação era a generalização da teoria da relatividade, com a elaboração de uma nova teoria capaz de interpretar, por meio de considerações semelhantes, o campo eletromagnético e o campo gravitacional, que acabaria por receber a denominação de teoria do campo unificado. Em 1916, o cientista publicou Grundlage der allgemeinen Relativitätstheorie (Fundamento geral da teoria da relatividade), formulação final da teoria geral da relatividade. Nesse mesmo ano, passou a manifestar uma preocupação com os problemas sociais que o acompanharia ao longo de toda a sua carreira.

Em 1919, Einstein tornou-se conhecido em todo o mundo, depois que sua teoria foi comprovada em experiência realizada durante um eclipse solar. Por essa época começou a viajar pelo mundo, não apenas para expor suas teorias físicas, mas também para debater problemas como o racismo e a paz mundial. Uma dessas viagens o traria ao Brasil, em 1925. Em 1921, foi agraciado com o Prêmio Nobel de física e indicado para integrar a Organização de Cooperação Intelectual da Liga das Nações. No mesmo ano, publicou Über die spezielle und allgemeine Relativitätstheorie gemeinverständlich (Sobre a teoria da relatividade especial e geral), obra de divulgação.
A noção de equivalência entre massa e energia, a do continuum quadridimensional e outras descobertas de Einstein provocaram uma verdadeira renovação do pensamento humano, num período de grande fertilidade intelectual, com interpretações filosóficas das mais diversas tendências. Os resultados de suas descobertas foram utilizados como argumento tanto pelos defensores do empirismo de total rigor lógico quanto pelos adeptos do idealismo matemático, segundo o qual o universo pode ser reduzido à abstração das fórmulas e das relações numéricas.
Bomba atômica e pacifismo. Em 1933, um ano após visitar universidades e instituições de pesquisas nos Estados Unidos, Einstein renunciou a seus cargos na Alemanha, onde os nazistas já estavam no poder, e fixou residência em território americano. Passou a ensinar no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, do qual se tornaria diretor. Em 1940 adotou a cidadania americana.

Durante esse período, o desenvolvimento de armas nucleares e as manifestações cada vez mais freqüentes de racismo no mundo constituíram as principais preocupações de Einstein. Os físicos alemães Otto Hahn e Lise Meitner tinham descoberto como provocar artificialmente a fissão do urânio. Na Itália, as pesquisas de Enrico Fermi indicavam ser possível provocar uma reação em cadeia, com a liberação de um número cada vez maior de átomos de urânio e, em conseqüência, de enorme quantidade de energia. Fermi, que acabara de chegar aos Estados Unidos, e os físicos húngaros Leo Szilard e Eugene Wigner pediram então a Einstein que entrasse em contato com a Casa Branca. Ele escreveu então uma carta ao presidente Franklin Roosevelt em que alertava para o risco que significaria para a humanidade a utilização pelos nazistas da tecnologia nuclear na fabricação de armas de grande poder destrutivo. Logo após receber a mensagem, o chefe de estado americano deu início ao projeto Manhattan, que tornou os Estados Unidos pioneiros no aproveitamento da energia atômica em todo o mundo e resultou na fabricação da primeira bomba atômica.

Embora não tivesse participado do projeto e sequer soubesse que uma bomba atômica tinha sido construída até que Hiroxima fosse arrasada, em 1945, o nome de Einstein passou para a história associado ao advento da era atômica. Durante a segunda guerra mundial, ele participou da organização de grupos de apoio aos refugiados e, terminado o conflito, após o lançamento de bombas atômicas em Hiroxima e Nagasaki, uniu-se a outros cientistas que lutavam para evitar nova utilização da bomba. Intensificando a militância pacifista, defendeu particularmente o estabelecimento de uma organização mundial de controle sobre as armas atômicas. Em 1945, renunciou ao cargo de diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, mas continuou a trabalhar naquela instituição.

A intensa atividade intelectual de Einstein resultou na publicação de grande número de trabalhos, entre os quais vale destacar Warum Krieg? (1933; Por que a guerra?), em colaboração com Sigmund Freud; Mein Weltbild (1949; O mundo como eu o vejo); e Out of My Later Years (1950; Meus últimos anos). A principal característica de sua obra foi uma síntese do conhecimento sobre o mundo físico, que acabou por levar a uma compreensão mais abrangente e mais profunda do universo. Suas descobertas tornaram possível entender o comportamento das partículas animadas de grande velocidade e suas respectivas leis. Os princípios da relatividade revolucionaram a física newtoniana pois, com o emprego de aceleradores, tornou-se possível obter partículas animadas de enorme velocidade, cuja mecânica em muito se afasta das leis newtonianas.

Einstein conseguiu reduzir as leis da mecânica e harmonizá-las com aquelas que regem as propriedades dos campos eletromagnéticos. Com sua concepção de fóton, permitiu que mais tarde se fundissem, na teoria ondulatória de Louis de Broglie, a mecânica e o eletromagnetismo, o que no século anterior parecia impossível. Albert Einstein morreu em Princeton, em 18 de abril de 1955.

A Teoria da Relatividade


As hipóteses relativistas elaboradas por Albert Einstein no início do século XX para explicar a estrutura do cosmos transcenderam o âmbito científico e, com o passar dos anos, se transformaram num símbolo paradigmático da filosofia e do modo de entender o mundo durante o que se chamou de era da relativização.

Teoria da relatividade é o modelo da física que, por meio de uma concepção generalizada dos sistemas naturais, descreve o movimento de corpos submetidos a velocidades semelhantes à da luz. Enunciada fundamentalmente por Albert Einstein, no início do século XX, a teoria da relatividade suscitou ampla renovação científica ao alterar algumas idéias básicas da física clássica e oferecer uma explicação coerente e unificada para grande número de fenômenos da natureza.

Em virtude de sua complexidade e das datas de publicação dos trabalhos de Einstein, a teoria da relatividade se distingue entre o modelo especial, ou restrito, postulado em 1905 e apoiado em alguns trabalhos precursores, e a relatividade geral, publicada por Einstein entre 1912 e 1917, que inclui a noção de campo gravitacional e procura condensar num modelo único todas as manifestações físicas do universo.

Historicamente, a teoria da relatividade ampliou as idéias existentes no momento de sua aparição e englobou as teorias clássicas como um caso particular de suas propostas. Assim, a mecânica clássica, baseada nos princípios da dinâmica de Isaac Newton, e os fundamentos da eletricidade e do magnetismo, reunidos nas leis enunciadas por James Clerk Maxwell, constituem casos particulares da teoria relativista sob as condições especiais presentes em sistemas com componentes de movimento extremamente lento em comparação com a velocidade de deslocamento da luz.

Relatividade especial

Nas últimas décadas do século XIX, o acúmulo de dados extraídos de numerosas experiências da física começaram a mostrar brechas e indeterminações nos modelos científicos da época. Esses modelos eram baseados em dois pilares principais: a teoria da gravitação universal de Newton e os princípios do eletromagnetismo propostos por Michael Faraday e resumidos nas equações de Maxwell.

Ambas as concepções, a mecânica e a eletromagnética, propunham um universo com partículas e campos de força que constituíam entes rígidos, mergulhados num espaço e tempo absolutos e de dimensões invariáveis. Dentro dessa concepção, tomava-se um sistema de referência único, em relação ao qual se determinariam os movimentos de todos os corpos. Esse sistema ideal se chamou éter cósmico.

A busca sem sucesso do éter em numerosas experiências estimulou o surgimento das futuras teorias. Os americanos Albert Abraham Michelson e Edward Williams Morley, por exemplo, fizeram uma pesquisa com o objetivo de descobrir a velocidade com que a Terra se deslocava através do éter cósmico, supostamente imóvel. Michelson e Morley conseguiram medir com grande precisão a velocidade da luz, o que apoiou as concepções de Einstein e a idéia segundo a qual o deslocamento das ondas luminosas tinha velocidade constante, invariável para qualquer observador em repouso ou dotado de movimento uniforme.

A descoberta da invariabilidade da velocidade da luz foi um golpe na noção do espaço e tempo absolutos. Isso inspirou os trabalhos de George Francis Fitzgerald e Hendrik Antoon Lorentz, dos quais se deduziu um conjunto de leis matemáticas, conhecidas como transformações de Lorentz, cujos resultados incluem as noções de contração da distância e dilatação do tempo.
Noções relativistas e suas conseqüências. O trabalho de Einstein, publicado em 1905 pela revista Annalen der Physik, deu uma resposta consistente ao problema da relatividade espaço-temporal sugerido por Lorentz e Fitzgerald. Os postulados principais da teoria da relatividade restrita são os que se seguem.

(1) As leis da natureza não variam entre os sistemas distintos, chamados inerciais, que se movem com velocidade constante, uns em relação aos outros.
(2) Não existe um sistema de referência absoluto, e o estudo dos fenômenos físicos terá que ser feito mediante variáveis relativas que expressam leis idênticas em diferentes sistemas inerciais.
Essas hipóteses, apoiadas pelas experiências de Michelson-Morley sobre a velocidade da luz, negaram a existência do éter cósmico e revelaram um princípio que se tornou fundamental na ciência do século XX: a velocidade da luz é inatingível por qualquer partícula material, e além disso é insuperável.

As conseqüências diretas da teoria restrita, apoiadas em rigorosa formulação matemática, revolucionaram os postulados da ciência. De maneira geral, um objeto material com velocidade próxima à da luz sofre efeitos surpreendentes: sua massa aumenta, o espaço se contrai e o tempo se dilata. Estes dois últimos efeitos se deduzem das equações de Lorentz.
As hipóteses de Einstein, em sua teoria restrita, se completaram com a equação da equivalência entre massa e energia como uma das manifestações paralelas do mesmo fenômeno. A lei da conversão entre matéria e energia, expressa pela equação matemática E = mc2, enuncia que a massa de uma partícula submetida a altas velocidades se transforma em energia pura, segundo um fator de conversão igual ao quadrado da velocidade da luz (c) no meio em que se realiza a experiência. Obteve-se a comprovação experimental dessa equação mediante o estudo das reações nucleares, que liberam colossais quantidades de energia resultantes da perda de massa do sistema. A conversão inversa, de energia em massa, que daria lugar à materialização de campos energéticos, nunca foi detectada em lugar algum do universo, embora modernas teorias cosmológicas tenham previsto a existência de buracos brancos que atuariam como criadores de matéria.
Os sistemas de referência exclusivamente espaciais, usados nas teorias clássicas, tiveram que ser completados por uma nova variável, o tempo, para satisfazer as novas hipóteses. O alemão Hermann Minkowski definiu o espaço tetradimensional como constituído de três direções de espaço e uma de tempo. O tempo seria o quarto eixo de referência. No espaço-tempo de Minkowski puderam ser representados os fenômenos referentes às teorias relativistas.

Relatividade geral

A principal limitação da relatividade especial era sua aplicação restrita a sistemas de referência inerciais, de velocidade retilínea e constante em relação uns aos outros. A generalização das hipóteses da relatividade restrita ampliou o princípio da invariabilidade das leis da natureza a qualquer sistema, inclusive os de tipo não inercial ou dotados de uma aceleração ou velocidade variável com relação aos sistemas inerciais.

Campos gravitacionais. O objetivo de Einstein, com a globalização dos postulados relativistas, foi desenvolver um modelo de campo gravitacional no qual definiu as características dos sistemas cinemáticos e dinâmicos em condições próximas ao limite da velocidade da luz. As idéias de Einstein foram enriquecidas por trabalhos de Hermann Bondi, Sir Fred Hoyle, Thomas Gold e Ernest Pascual Jordan.

Confirmação da teoria. As hipóteses de Einstein, apesar de sua brilhante demonstração teórica, só alcançaram pleno reconhecimento internacional depois do surgimento de provas experimentais de sua validade. Entre os principais resultados que apoiaram as hipóteses relativistas se incluem: a explicação das anomalias observadas desde o século XIX nas órbitas do planeta Mercúrio, mediante a inclusão do conceito de campo gravitacional relativista, no qual a trajetória da luz se curva na presença de fortes campos gravitacionais; a interpretação dos fenômenos das partículas atômicas lançadas em alta velocidade no interior de aceleradores como ciclotrons e similares; e a construção de teorias cosmológicas da estrutura de sistemas galáticos e estelares e da forma e origem do universo.

As equações de Einstein permitiram prever a conversão de matéria em energia nos reatores e bombas nucleares. Nos últimos anos do século XX, outras previsões de Einstein na teoria da relatividade geral eram ainda objeto de pesquisa. Entre essas previsões se incluem a existência de ondas gravitacionais e dos buracos negros, objetos formados pelo colapso de estrelas de grande massa, dos quais nem a luz conseguiria escapar. Em maio de 1994, o telescópio espacial americano Hubble detectou pela primeira vez um objeto que correspondia às características de um buraco negro superdenso, situado a cinqüenta milhões de anos-luz da Terra, na galáxia gigante M87.

A Relação Espaço-tempo

Para localizar especialmente um objeto, são suficientes três medidas: de comprimento, largura e altura. Assim, com um eixo de três coordenadas, se pode descrever a posição de um ponto no espaço. Para localizar um evento, que ocorre durante um intervalo determinado, exige-se a noção adicional de tempo. Assim, combinando o primeiro sistema, tridimensional, com a medida de tempo, chega-se à noção de espaço-tempo, tetradimensional.

O conceito de espaço-tempo, que relaciona duas categorias tratadas de forma independente pela física tradicional, foi postulado por Albert Einstein na teoria especial da relatividade, de 1905, e na teoria geral da relatividade, de 1915. O senso comum nunca admitiu conexão entre espaço e tempo. Até o fim do século XIX, acreditava-se que o espaço físico era um plano contínuo de três dimensões -- isto é, o conjunto de todos os pontos possíveis -- ao qual se aplicavam os postulados da geometria euclidiana. As coordenadas cartesianas pareciam naturalmente adaptadas a esse espaço. O tempo era visto então como independente do espaço, como um contínuo separado, unidimensional, totalmente homogêneo em sua extensão infinita. Qualquer "momento atual" no tempo poderia ser tomado como uma origem: a partir dessa origem, se media o tempo transcorrido ou a transcorrer até qualquer outro momento passado ou futuro. A mecânica clássica, expressa matematicamente com rigor por Isaac Newton, repousa sobre a idéia de espaço e tempo absolutos.
As noções tradicionais sobre espaço e tempo absolutos, no entanto, são teóricas e não intuitivas, como freqüentemente se acredita. Para o senso comum, elas são as únicas possíveis, pois se é muito simples pensar em comprimento e largura, e relativamente simples pensar em comprimento, largura e altura, imaginar um espaço tetradimensional é impossível. Para localizar um objeto no espaço, sabe-se que é necessário situá-lo em relação a outros objetos, que funcionam como sistema de referência, ou referencial espacial. O referencial ideal é o sistema de três eixos de coordenadas que partem de uma origem. Observe-se que quando alguém se refere a "um ponto fixo no espaço", na verdade está falando de um ponto cujas coordenadas espaciais, em determinado referencial, são constantes, ou seja, o objeto está em repouso em relação ao referencial. Da mesma forma, quando se diz que um corpo se desloca no espaço, trata-se de um corpo cujas coordenadas num referencial dado são variáveis. A noção de espaço, como a de movimento, é sempre relativa a um referencial espacial. Não existe, portanto, um padrão único ou absoluto de inércia.

A inexistência da inércia absoluta significa que não se pode afirmar que dois eventos ocorridos no mesmo lugar, mas em instantes diferentes, ocorreram realmente no mesmo lugar do espaço. Supondo por exemplo que uma bola ao quicar no interior de um trem em movimento toque o assoalho do veículo a cada segundo, ela será vista quicando sempre no mesmo lugar para um observador situado no interior do trem, ou seja, um observador para quem o assoalho do trem esteja em repouso relativo. Para um observador sentado à beira da estrada, no entanto, a bola vai quicar cada vez vários metros adiante da vez precedente, pois o assoalho do trem está em movimento em relação a ele.

O referencial espacial parece satisfatório para situar objetos, ou pontos, mas para situar os acontecimentos, ou os movimentos, é necessário acrescentar uma coordenada de tempo ao sistema de referência. Pode-se definir um referencial de espaço-tempo associando um relógio a cada ponto fixo de um sistema de coordenadas espaciais. Assim, se estabelece uma relação entre dois sistemas em movimento: caracteriza-se um evento ocorrido num sistema de comparação com outro evento, em outro sistema. O universo em que a coordenada de tempo de um sistema depende tanto da coordenada de tempo quando das coordenadas de espaço de um outro sistema em movimento relativo denomina-se universo de Minkowski e constitui a alteração essencial postulada pela teoria especial da relatividade em relação à física tradicional.

As noções de tempo e de repouso ficam também, dessa forma, associadas ao referencial, e se torna impossível afirmar a priori que o intervalo de tempo entre dois acontecimentos seja sempre, em todos os casos, independente do referencial. O que se pode afirmar é que se dois acontecimentos tiveram coordenadas de espaço (x, i e z) e de tempo (t) coincidentes, eles definem o mesmo ponto no espaço-tempo. O espaço-tempo é a única verdadeira idéia absoluta. A separação em duas noções diferentes -- espaço e tempo -- só é possível quando se escolhe um sistema de referência espacial: um acontecimento fica então localizado em relação a esse referencial. Mas, da mesma forma, pode-se escolher um sistema de quatro coordenadas. O acontecimento, assim, se torna em relação ao espaço-tempo, contínuo tetradimensional.

O universo de Minkowski contém uma classe distinta de sistemas de referência e tende a não ser afetado pela presença da matéria (massa) em seu interior. Em tal universo, todo conjunto de coordenadas, ou de eventos específicos de espaço-tempo, é descrito como um "aqui-agora", ou um ponto universal. Os intervalos aparentes de espaço e tempo entre eventos dependem da velocidade do observador, que não pode, em nenhum caso, exceder a velocidade da luz. Em qualquer sistema de referência inercial, todas as leis físicas permanecem inalteradas.

GILGAMESH E SÍSIFO: SOBRE O HOMEM E SUA FINITUDE


E no final da vida, após percorrer variadas aventuras para encontrar a fórmula da imortalidade, Gilgamesh encontrou uma simples ‘taverneira’ que disse:

 “Por que vagabundear assim, Gilgamesh? / A vida sem fim que buscas, /Nunca encontrarás! / Quando os deuses/ criaram os homens, / Eles determinaram-lhes / A morte/ E reservaram a imortalidade / Apenas a eles próprios! / Tu, de preferência, / Enche a pança, / Vive alegre, / Dia e noite, / Festeja diariamente, / Dança e diverte-se, / Dia e noite, / Veste roupas limpas. / Lava-te / Banha-se, / Olha com ternura / Teu filho que te dá a mão, / E faça a felicidade de tua mulher, / Abraça-a a ti: / Pois essa é / A única perspectiva dos homens!” 

(Da “Epopéia de Gilgamesh”).

 

A história nos mostra que o tema do homem e seu destino no mundo foi palco das mais variadas construções mitológicas e religiosas relacionadas com o fenômeno mais singular da vida – a sua finitude. Muitas civilizações nos legaram importantes artes e ensinamentos acerca disso. 

Conhecendo a história da humanidade, podemos compreender as criações dos mitos e ritos, deuses e demônios, figuras do Bem e do Mal, pelos quais o homem deu sentido à vida e às coisas. Se, ainda hoje, a questão da finitude da existência humana no Ocidente é algo visto, majoritariamente, a partir da metafísica do cristianismo, é porque a ascensão dessa religião, desde o início da Idade Média, transformou nossas formas de sentir e representar o mundo. Hoje, no Ocidente, permeia-se o imaginário das ordens não-terrenas Céu, Purgatório e Inferno e a prescrição moral que delas provêm, bem como, ele não escapa da idéia de ‘Juízo Final’, realizado por um Deus cristão. 

Algo irremediável aos seres vivos, a morte sempre foi um enigma. A pergunta sobre o sentido e fim da vida; do projeto anterior e ulterior dela; ou, da existência e seu além, foi objeto de reflexão nas mais diferentes civilizações. As histórias de Gilgamesh, provinda da civilização Sumérica, e Sísifo, da grega, são dois grandes legados da Antigüidade, dois grandes enredos sobre a finitude humana.

Gilgamesh, rei dos sumérios, vivido a mais de 2000 anos a.C., foi o primeiro dos homens conhecidos a se revoltar contra o destino mais certo e aterrador do homem neste mundo: a morte. Sua “Epopéia”, de mais de 2000 versos, é uma das lendas mais antigas já escritas, contada através dos primeiros inventores da escrita, antes mesmo de Homero ter sido reconhecido como autor de “Ulisses”, por volta de 700 a.C.

Conta a lenda que Gilgamesh, homem de excepcional grandeza e força, tornou-se tirano e viveu sua vida com orgulho, sem nenhum arrependimento. Revoltando-se contra a morte, procurou a imortalidade, enfrentando a vontade dos deuses. Estes o condenaram, punindo com a criação de um sósia, Enkidu, como o inverso de sua personalidade. Ao saber disso, o grande tirano Gilgamesh foi ser amigo de Enriku. Logo, com a sedução de Gilgamesh, ambos ambicionaram abolir a lógica inevitável da morte. No entanto, a Epopéia transforma-se em uma terrível elegia. Quando Enriku é morto pelos deuses, Gilgamesh assiste a brutal cena. É surpreendido, então, pela morte fulminante de seu sósia, algo em que Gilgamesh tanto teme. Assiste a força destruidora dos movimentos e alegrias da vida; a força aniquiladora da beleza do corpo e expositora do oposto de tudo que é encantador ao homem. 

Gilgamesh, triste, procurou deixar sua obsessão vaidosa contra a morte, perambulou e seguiu cumprindo suas obrigações como rei, tentado conservar sua juventude. Seu fim estava em aprender a louvar um otimismo resignado, única atitude razoável diante da ordem do mundo. 

Na antiga Mesopotâmia, lugar em que viviam os suméricos, os deuses, figuras de feições humanas e imortais, eram fontes de adoração e ensinamento, tanto para serem servidos como para serem servidores. Os homens podiam, assim, desfrutar das capacidades e qualidades dos deuses. No entanto, diferentemente dos deuses, os homens eram feitos de “argilas”, perecíveis e mortais. 

A questão da morte, como se sabe, não é exclusividade dos sumérios. A antiga civilização egípcia floresceu a partir de uma religião que pretendia a união e intimidade dos homens com os deuses. Os egípcios construíram grandes templos e pirâmides para venerá-los. Ostentavam um culto que permitia aos homens, após a morte, a eternidade – lugar de morada e de riquezas. Na morte dos grandes reis, realizavam-se trabalhosos embalsamento dos seus corpos, que eram adornados com grandes obras de arte. Até hoje se tem admiração por tamanha ostentação e religiosidade aos rituais funerários dessa civilização.

Os astecas, por sua vez, possuíam outra cultura peculiar em relação à morte. Povo de religião politeísta, os astecas atribuíam divindades e ritos para cada instante do tempo e momentos da vida. As suas relações com os deuses os levavam a colocar em sacrifício seu próprio povo, presenteando-os em troca de dádivas perenes da natureza. A vida para os astecas estava em poder das divindades, eram elas que ditavam e deviam ser respeitadas. 

Na civilização grega, a revolta contra o destino mais certo da existência, também fez surgir uma personagem de adoração e ensinamento. O mito de Sísifo expõe a questão da finitude na condição humana na Grécia antiga. Sísifo, rei lendário de Corinto, tenta enganar os deuses para escapar da morte. Os deuses, descobrindo sua trapaça, levam Sísifo aos Infernos e condena-o a empurrar uma enorme rocha até o cume de uma montanha. Tal trabalho não se cessaria, pois cada vez que Sísifo atingisse o cume, a rocha fatalmente rolaria montanha abaixo e, inevitavelmente, o rei Sísifo voltaria a iniciar seu trabalho, sempre. 

O mito de Sísifo foi eternizado na filosofia e literatura ocidental como um símbolo do verdadeiro e sincero amor do homem em relação ao mundo. Sísifo age com desprezo aos deuses, ódio à morte e paixão pela vida. Mesmo consciente da tortura que o condenaram, prefere permanecer dono de seu destino e vencer o divórcio entre o ator e o cenário desta vida, isto é, entre o homem e o mundo. 

Sísifo é a expressão da vitória trágica do homem sobre o seu destino. É condecorado como um mito mortal, sábio e prudente, uma vez que sua morte depende da sua própria vontade. O francês Albert Camus, vivido no século XX, escritor de obras literárias e ensaios filosóficos, é possivelmente o maior interpretador da história do mito de Sísifo. Dedicou-se e intitulou seu ensaio mais importante ao mito – “O Mito de Sísifo”[1]. Na verdade, toda a sua vida e pensamento se traduziram em uma latente e declarada atitude de pensar a existência.

Foi com grande agnosticismo que Camus viveu e pensou sobre o sentido da vida. Sua obra é diretamente marcada pela atribuição da existência como desvinculada da idéia de interação com um mundo físico passível de ser inteligível. ‘A vida seria um absurdo?’ ‘Qual o trabalho útil da vida?’. Estas são questões fundamentais para ele. 

Camus pôde recuperar o que ele acreditou ser fundamental no mito de Sísifo: o tema da antinomia e da angústia com que o homem se relaciona com um mundo em que ele tem que ‘abandonar’. Sísifo nos mostra a impotência do homem frente ao seu destino no mundo. Como pensador e artista, Camus expressou esse questionamento. Com uma carga estética admirável, ele interpretou seu tempo e construiu um modo de vida próprio, no qual rompia com tradições. 

“O mundo só tem sentido porque o damos”, escreve Camus, no referido ensaio. Sísifo é feliz realizando sua vida, do mesmo modo com que um homem não abdica do sentimento de felicidade quando escreve um romance, mesmo não tendo, aparentemente, sentido algum para tal feito. 

Diante das circunstâncias arbitrárias da vida e da eterna indiferença do mundo, Camus formula uma intuição básica: a absurdidade da vida. A frase de Nietzsche, “O que importa não é a vida, é a eterna vivacidade”, é bastante reveladora para o sentido da vida que Camus procura para si mesmo. Para ele, os sentimentos de revolta, liberdade e paixão que encontramos em Sísifo evidenciam as reações mais íntimas e positivas que o homem expõe diante da irracionalidade da vida. 

Para Camus, a resposta para a pergunta que aterrou Shakespeare, na célebre peça “Hamlet”, vem por meio do caminho da paixão. Por meio da interpretação do mito, ele intensifica a idéia de que se torna necessário, simplesmente, ‘continuar experimentando a existência’. A paixão à vida, satisfaz sua estética da existência.

No século XIX, Flaubert, em seu romance “Madame Bovary”, construiu uma personagem libertária e libertina, que luta para encontrar uma justificação a uma vida verdadeira e sincera. Podemos observar Bovary como um grande exemplo de ‘caminho de paixão’ pela existência, de que nos fala Camus. Condenada a ter o submisso papel de mulher na moral de seu tempo, Bovary se revolta e busca sua autenticidade e vivacidade diante do mundo. Flaubert acentuou, na jovem, a difícil relação entre uma vida prenhe de energia e ‘fora de tudo’ do que a moralidade da época lhe permite. No fim de grandes conquista por sua liberdade, Bovary encontra-se diante de um dilema. Terá que escolher entre abdicar de todas as suas transgressões morais ou suportar a perda de sua autenticidade e vivacidade para continuar viva.

A resposta de Bovary é o seu suicídio que, paradoxalmente, demonstra tanto seu fiel amor à verdadeira vida com a decisão de morrer.

Em Camus e Flaubert temos, pois, uma grande expressão moderna sobre o tema do homem e sua finitude no mundo. A relação entre a busca de uma plena existência, no mundo moderno, levou a novas reflexões na filosofia e literatura. Em nossa época, as mitologias e religiões dos povos, tiveram grandes repercussões nas reflexões de grandes filósofos. O pensamento no século XX foi marcado por uma forte abertura fenomenológica para o entendimento da existência e a sua essência última. Esta abertura trouxe consigo a disposição do pensamento à questão da angústia humana perante a brevidade da vida. O pensamento ousou, assim, aproximar-se do insuperável confronto entre uma ‘irracionalidade natural’, que nos encobre, e um desejo humano por clareza, que brota da interioridade obstinada do homem. 

Seja para a redenção ou salvação, e a exemplo de Sísifo e Gilgamesh, o homem propõe-se a enfrentar o princípio hostil da morte que, mesmo com ilusões criadas, ele não consegue dissimular. Aqui, além de Albert Camus, pensadores como Kierkegaard, Schopenhaeur, Heidegger e Sartre também preconizaram, na filosofia contemporânea, esta abertura para a contemplação sobre o ser-no-mundo e sua a dimensão temporal. Mas, infelizmente, já nos cabe finalizar este ensaio. Aliás, como diria Camus, “(…) a vida é pequena para quem tanto pensa… O tempo é curto, a alma estarrece e o absurdo se evidencia”.

 
[1] CAMUS, Albert, 2004, “O Mito de Sísifo”. Rio de Janeiro: Record.

*por Ednei de Genaro

STOÁ E A IDADE DO OURO: O RETORNO AO MITO DA CRIAÇÃO DO HOMEM


INTRODUÇÃO

Alexandre, o Grande morreu, e, com ele, o sonho da democracia, símbolo maior da antiguidade clássica. A glória de Atenas foi suplantada pela Macedônia que, aos olhos do dileto aluno de Aristóteles, deveria se estender, se estender, se estender… Povos e etnias deveriam se unificar, a moeda deveria ser única. O caráter expansionista da Macedônia tinha por objetivo a neutralização da diversidade e potencialização da unidade.

A queda da liberdade política do grego exerceu forte impacto social e somente sob esse prisma o surgimento dos sistemas do helenismo devem ser entendidos. Imediatamente homens da estatura de Antístenes e Epicuro surgem para resolver novos problemas, explicar que homem é esse que surge num panorama social hostil e re-pensar novas estruturas de Estado e de Cidadania. Nesse contexto, surge a figura de Zenão de Cício, discípulo de Crates, o cínico, de quem se inspirou para pensar seu novo modelo de polis.

O Estoicismo foi um dos grandes sistemas do helenismo. Contudo, se Zenão e Crisipo competiram com o Jardim pela legitimação de suas teses, o fizeram por vias diferentes. Não professaram a fuga da vida pública, como Epicuro, nem tão pouco criticaram os padrões culturais e sociais de seu tempo. No Pórtico, o conceito de natureza adquire uma dimensão teológica, perfeita demais para um homem que se vê numa sociedade em crise política. As leis, a intuição de certo e errado, e a justiça existem. Mas eles não se encontram mais na pólis de Péricles e, igualmente, também não se encontram na suscerania macedônica. Lei, justiça, ética, psicologia: conceitos que se integram e, ontologicamente, se associam à natureza, concedendo-lhe teor divino, providencial, mítico. E distante.

Mesmo com as dificuldades de uma sociedade que inutilmente luta para não perder sua identidade política, cultural e existencial, Platão e Aristóteles continuarão a ser lidos. E, com eles, as grandes narrativas de Homero e Hesíodo, que contribuíram igualmente para a sustentação e organização da antiguidade arcaica, clássica e, agora, helena.

Os antigos morreram, mas não foram esquecidos. E Zenão, mesmo de origem semita, leu a todos e se afeiçoou, possivelmente, a Hesíodo. O reflexo de seu mito da Idade do Ouro, em Os Trabalhos e os Dias, pode ser encontrado implicitamente nas teses do Pórtico. Com efeito, a semi-imortalidade, a beleza e a completa ausência de males, signos desse homem perfeito habitante da cidade perfeita, repleta de deuses, parecem se assemelhar com o modelo de Estado pensado por Zenão.

Reais nos poemas hesiodianos e na astuta dialética de Zenão e Crisipo, esse homem luta para existir também na sociedade historicamente formada. Em confronto com o sistema criado pelos homens, o cidadão zenoniano e sua cosmópolis sedimentam uma nova discurssão sobre a dicotomia existente entre a sociedade helena que nasce e uma sociedade criada pelos deuses, além do tempo.

Este trabalho tem por objetivo demonstrar por quais meios o discurso estóico, com todas as suas aparentes ambigüidades e dificuldades doxográficas, explora e teoriza a sociedade que nasce com Alexandre Magno, utilizando o Mito da Idade do Ouro como terreno de discurssão e a eterna busca humana por suas origens.
LÓGOS E HISTÓRIA

A morte prematura de Alexandre Magno deixava um panorama político não-consolidado. Os valores tradicionais pós-democráticos, estranhos no cotidiano do homem comum, continuavam a ser respeitados, contrastando, porém, com novas realidades. Os cidadãos se tornam súditos, e todo o exercício político do homem grego é reduzido. Alheio ao cidadão, o novo poder é distante e tutelar. Personalizando o poder, os diádocos, rodeados das instituições que lhe são necessárias, eventualmente buscam nos filósofos a arte do bem falar e do bem governar: recordemos de Platão e Dionísio de Siracusa e Aristóteles e Alexandre Magno.

O homem helenístico, exposto ao desalento após a queda da democracia, é o principal tema ao redor do qual as teorias se movem. Tal com o alvorescer do ceticismo, do cinismo e do epicurismo, o estoicismo não fugirá a essa nova perspectiva teórica e apresenta uma nova resposta ao homem de sua época, resposta que, considerando a universalidade da problemática helenística e a riqueza reflexiva da escola, terá perenidade.

Dada a confusão de um novo período histórico que nasce, o Pórtico pensa uma natureza que se revela por uma reorganização de todos os valores vigentes para tornar possível a emergência de um novo ánthropos. Physis e Lógos, dois campos de reflexão herdados da tradição platônico-aristotélica, se confundem. A natureza passa a ser pensada no âmbito de sua legalidade, racionalidade e sacralidade, de modo a servir como novos parâmetros para o agir.

Sem a presença das divindades olímpicas, a physis é abstrata em sua sacralidade e alberga em si a universalidade do homem quanto ao uso do lógos. Pohlenz[1], citado por Reale (1994), recorda que o lógos carreia a noção de uma rigorosa ordem no universo através do devir e nos fornece elementos de compreensão do significado do mundo e da realidade espiritual do homem. No Pórtico, o agir, o ser e o pensar estão associados na noção de igualdade, marca da ordem universal. 

O lógos, identificando-se com a physis, possui um princípio unitário que se desdobra no novo homem que surge. A partir do lógos-physis, o mundo assume sua sacralidade e o homem deixa de ser um súdito do império macedônico e resguarda para si uma nova cidadania, um novo destino, e um novo sentimento de unidade.

Em face de sua natureza cognoscente, o homem, partícula do lógos universal, forma uma só comunidade, de iguais. Onde quer que estejam, discutem, aprendem e interagem entre si com a compreensão de que se integram num mesmo modo de ser que está em conformidade com a physis, uma vez que os limites políticos não correspondem à geografia cósmica.

Zenão aprofunda o genérico através da convicção do homem enquanto cidadão do mundo; mas também preserva sua individualidade e aquilo que existe de mais essencial. A physis determina e estabelece nómos, durável, igualitária e racional, que entra em frontal desacordo com aquela engendrada pelo oportunismo dos poderosos. A historicidade existe tão somente enquanto um reflexo destoante da razão universal.

Vejamos algumas notícias sobre esse novo modelo de politéia: 

“Zenão (…) pregava a comunidade de mulheres e proibia a construção de templos, tribunais e ginásios nas cidades; também o censuravam porque escrevia a propósito da moeda que “não se deve achar necessária a introdução da moeda, nem para troca nem para andar no exterior”, e porque determinava que homens e mulheres usassem as mesmas roupas…” [2] (DIÓGENES LAÉRCIO, 1977)

“… o mundo é uma verdadeira cidade por oposição às cidades presentes, …” [3] (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, citado por GAZZOLA, 1999)

“… (para os estóicos) a Megalópolis é o mundo que usa de uma mesma constituição (politéia) e de uma mesma lei. A razão (lógos) da natureza é coersiva do bem agir e proibitiva do mal fazer…” [4] (FILOMENO DE ALEXANDRIA, citado por GAZZOLA, 1999)

Cidade e natureza, dois conceitos que aparentemente se encontram dissociados, na Stoa engendra uma unidade. E essa unidade revela o spoudaíos como único cidadão possível, por ser capaz de, através do lógos, possuir a divindade no pensamento. Todos os cidadãos da cidade de Zenão são amigos e parentes, o que inviabiliza a existência de gregos e bárbaros. Os templos são renegados, de modo que o sagrado seja preservado em si mesmo, ao invés das exterioridades. Monumentos outros, como ginásios e tribunais, também não devem existir. Da mesma forma a moeda, signo do comércio e das diferenças entre os homens, também não encontra espaço nessa nova cidade.

Zenão inovou. E, por isso, por sua suposta posição ingênua, marcada pelo despropósito e pelo apolitismo, sofreu variadas críticas. Entretanto, por sua sutil dialética, o cipriota nos faz refletir sobre o que é, para o homem contemporâneo, ser político. Em seus próprios próprios dogmas, ética, política e razão estão unidos, o que faz desse novo modelo de politéia algo perfeito, sagrado, coerente e, acima de tudo, justo.

Na Stoa, a instituição política não encontra paralelo histórico porque ela se fundamenta na ordem cósmica. O sábio não é apenas cidadão da cidade em que nasceu. Sua cidadania é aquela estabelecida pela natureza, de tal modo que Marco Aurélio confessará que, enquanto Marco Aurélio Antonino, ele é um romano; enquanto homem, é um Cidadão do Mundo[5]. Num meio capaz de determinar fortemente o status do homem na sociedade, onde aquele que não é grego é necessariamente bárbaro, onde aquele detentor de todos os direitos civis concedidos pelo Estado se opõe ao estrangeiro, devidamente marginalizado porque não partícipe da cultura grega, o Pórtico determina outro modelo de eticidade e de política. Violentamente a Stoa se opõe a uma organização do mundo dividida em cidades e povos, cada qual com leis particulares, e vendo nos outros estrangeiros e inimigos. Brun (1986) relata sobre um lugar onde todos os homens são cidadãos da República de Zeus, e vivem unidos sob uma lei comum, como um rebanho guiado por seu pastor.

No período pós-alexandrino existe uma tendência de se estruturar o rei perfeito, aquele que, pela extrema sabedoria, possa comandar bem os outros porque é o melhor dentro eles e, por isso, possa unificar uma Grécia decadente, com grave crise econômica e social. Constrói-se o imaginário de um homem com o poder divino de governar, alguém que, sendo beneficiado pelos deuses, dispõe de atributos que o capacitam para o comando.

Para Gazolla (1999), o spoudaíos, embora devidamente divinizado, não parece ser esse homem com a missão divina de governar. A descrição do homem superior pode coincidir com a concepção zenoniana do cidadão perfeito, mas dela se afasta à medida que se reflete sobre sua homologia com a cosmópolis.

A cidade histórica não pode ser a do spoudaíos. Tanto a cosmópolis quanto o cidadão de Zenão não foram construídos para a sua própria efetivação, mas para fins pedagógicos. Continuamente, é afirmada a importância do saber para agir, e agir de acordo com a melhor escolha possível. Entrando em dissonância com o lógos, o homem se afasta da cosmópolis e se torna um anti-cidadão, um phaulôs. 

Encontramos aqui dois blocos opostos: ao mesmo tempo em que a cidade histórica e o cidadão ordinário são absolutizados em seus erros e condenados para sempre em seus vícios, o sábio e a cosmópolis indicam o paradigma do pórtico.

Considerando a própria estrutura da cosmópolis e observando o perfil psíquico e ontológico do sábio, os estóicos afirmam que não sabem se ambos – a cidade e o cidadão – já existiram ou existirão na história. Mesmo homens como Sócrates, Antístenes e Diógenes de Sínope apenas conseguiram uma aproximação do télos estóico sem, contudo, nunca alcançá-lo. E nunca alcançaram em função da utopia de seu próprio sistema. O estóico pretende, pela grandiosidade de suas teses, chamar a atenção do homem histórico, demasiadamente consumido pelas instituições criadas por ele mesmo.

Constantemente criticado por Plutarco em razão de seus supostos excessos[6], a Stoa medita na distancia da cosmópolis e da cidade historicamente constituída. Pela grandeza de sua estrutura, são evidenciadas todas as injustiças, limitações e desigualdades produzidas pela politéia ordinária, ao mesmo tempo em que conscientiza os homens de sua fragilidade e temporalidade.

Muitos estóicos experimentaram o poder. Lembremos, a título de exemplo, da amizade entre Panécio e Cipião Emiliano e da admiração de Posidônio, professor de Cícero, por Pompeu. Mas, se quisermos frisar com mais ênfase as relações existentes entre o Pórtico e o poder, não podemos deixar de mensionar o conturbado Sêneca, tutor do jovem Nero, Musônio Rufo, eqüestre que fora exilado várias vezes, e, principalmente, o imperador Marco Aurélio. Os estudiosos são unânimes ao afirmar que o governo desse césar coincindiu com os tempos mais afortunados que Roma conheceu, de modo a conferir-lhe o título de último dos Cinco Bons Imperadores. Gibbon (2003) chega mesmo a afirmar que, se fosse dado ao homem a oportunidade de nascer num tempo qualquer de nossa história, num lugar qualquer, esse homem certamente escolheria nascer no século II, na Europa, no governo dos Cinco Bons Imperadores. Quanto ao caráter do governo específico de Marco, vejamos o que diz Dalfen:

“Os historiadores – Herodiano, Dion Cássio e a História Augusta – confirmam que Marco Aurélio governou segundo as suas convicções filosóficas. Eles ressaltam sua clemência para com os inimigos, sua preocupação com a justiça e pelo bem comum, sua liberalidade aliada à modéstia pessoal: como césar ele nada fez que contrariasse o seu caráter e as exigências da filosofia. Com a morte desse césar muito amado findou a Idade de Ouro de Roma.” (DALFEN, 2003, p. 177)

E, finalmente, a opinião do próprio imperador, ao agradecer aos deuses por:

“… ter concebido a idéia de um Estado com leis iguais para todos, assegurando a igualdade aos cidadãos e seus direitos. Conceber uma realeza que respeite, acima de tudo, a liberdade dos súditos.” [7]

Tingido pelas cores da moeda e das desigualdades, frutos da incapacidade dos homens de reconhecer a natureza e, com ela, entrar em homologia, Zenão certamente tinha consciência das repercussões de sua cidade. Ambos, cosmópolis e spoudaiós, estão inviabilizados pela excessiva perfeição. Marco Aurélio, sentindo o paradigma imposto pela doutrina, e mesmo proclamando a cidadania do mundo como necessidade, se consola com os pequenos progressos alcançados em seu governo[8]. Se ele conseguiu implementar o que Zenão propunha, que o diga a posteridade.
STOA E IDADE DO OURO

Analogias, metáforas e parábolas: formas de tornar real o mágico, sensível o fabuloso, concreto o que se encontra na esfera da ficção. A vitória dos deuses proporciona segurança, alento e ordem num mundo tumultuado, onde lutas constantes são travadas com outras cidades. Se não justificadas, as narrativas tendem, ao menos, a suavizar um panorama de intenso conflito.

Oriundos de um passado distante, os mitos se projetam para o futuro com promessas como redução das desigualdades e paz mundial. Objetivando um mundo melhor, não encontrável, os mitos proporcionam respostas, projetam nossas ações para algo melhor, superior, imutável, como um sátiro que busca uma ninfa, sem nunca encontrá-la. Nesse sentido, Chauí dirá que o mito tem por função:

“… resolver, num plano imaginativo, tensões, conflitos e antagonismos sociais que não têm como serem resolvidos no plano da realidade. (…) Graças ao encantamento do mundo – cheio de deuses e heróis, de objetos mágicos e feito extraordinários – o mito conserva a realidade social dando-lhe um instrumento imaginário para conviver com suas contradições e dificuldades.” (CHAUÍ, 2002, p. 36)

Ao se assimilar aos mortos[9], Zenão, possivelmente, lança mão de recursos narrativos para pensar o mundo. Divinizado, o lógos assume “expressão poética de uma verdade física” (REALE, 2002, p. 310). E nas paixões e na moeda emerge o distanciamento desse mesmo equilíbrio. A ação passional e as relações mercantis sem controle devem ser harmoniosas, adequadas, idêntica ao lógos. 

O abuso de poder está descartada, assim como tudo quanto for capaz de produzir diferenças. O soberano se dilui na figura do spoudáios e seu reinado no mundo, o que contrasta com “a criação de reinos e impérios, onde o poder é altamente centralizado” (MARCONDES, 1997, p. 87). As instâncias civis, religiosas, mercantis e jurídicas perdem seu valor, que é deslocado para o centelha divina que reside no homem, único critério capaz de norteá-lo e afastá-lo de suas próprias palavras circunstanciais, ao á-lógos. 

Ao classificarmos a cidade zenoniana como não encontrável, devemos considerar que ela é regida sob outros princípios, também não encontráveis. A politéia estóica reside na topografia das aspirações, do imaginário. Por isso, deve ser interpretada enquanto portadora de uma natureza essencialmente mítica e miraculosa. A incessante defesa da igualdade entre os homens – não deixemos de frisar que, pela sabedoria, o escravo Epicteto se eleva ao imperador Marco Aurélio – nos faz recordar sobre uma época em que a sociedade era regida pela unidade, sem disputas, sem dor, sem males. 

Se a extinção do desejo é o alvo do filósofo estóico, que ao menos resista apenas um: o de estruturar uma sociedade única, sem limites topográficos, absoluta, igual, justa. A astuta dialética desses filósofos pode ser duramente criticada, sobretudo pelos céticos, quando não devidamente interpretada. E os mitos proporcionarão terreno através do qual o argumento se torna possível.

As Questões Homéricas, livro de Zenão, hoje perdido, segundo noticiado por Diógenes Laércio, entre outros de teor mítico, revelam o interesse pelo assunto. A compreensão da sacralidade dos deuses e a forma de vida dos homens da Idade do Ouro parece ser o que importa. 

Sentindo o peso de ser um estrangeiro e vivenciando a queda da pólis, o cipriota tenta, pelos contos narrativos, resolver e conviver com suas contradições e dificuldades (CHAUÍ, 2002, p.36). E o faz não pela promessa de um mundo melhor no futuro – afinal, o núcleo do valor para os estóicos reside apenas no presente -, como farão os cristãos alguns séculos mais tarde. A proposta é de convencer pela via da demonstração de quão injusta pode ser a sociedade historicamente constituída, a mesma sociedade que condenou Sócrates à morte, fez de Platão um escravo e, agora, faz com que Aristóteles se refugie de Pella, capital da Macedônia. 

Gazolla refletirá sobre a contribuição da experiência vivenciada para a construção da cidade estóica:

“O tópos ético-político estóico aponta para o que não existe – a Cosmópolis – e com isso registra o ideário histórico – poderia existir a Cosmópolis – e desvenda significados, aguça as fantasias adormecidas sobre o melhor, faz emergir fortemente o que descontentamento com os fatos vividos porque distantes do modelo desejado.” (GAZOLLA, 1999, p. 196)

A falta de rumo do homem grego deve ser compreendida em face de suas ambições para o futuro e de sua esperança em reencontrar o que perdeu. E seu desalento será tanto maior quanto for a distância que o separa do fruto de suas significações e fantasias. 

Hesíodo narra um mito distante demais para o homem ordinário, maculado pela finitude e mazelas de todo tipo. Ressuscitado por Zenão, esse homem da Idade do Ouro se movimenta, age e pensa como um deus, como quem vive num contínuo festim: foi este o seu privilégio real[10].

Em seu naturalismo estético e ético, o filósofo estóico exerce seu éthos num tempo além do tempo, não mensurado pela cronologia humana. A inovadora beleza dessa proposta, a de estruturar a interioridade pela via da physis, faz com que ele seja reconhecido por todos pelo seu próprio modus vivendi. Talvez a rigidez da inovação – tal é o julgamento que a história lhe reservou -, exposta na vida no campo dos indiferentes ou no alcance da tão sonhada ataraxía, ou mesmo no pensar numa sociedade isenta de males, tenha levado a tradição interpretativa a conceber esse filósofo como alguém frio, premeditado, impassível aos sofrimentos. De qualquer modo, devemos pensar que na figura de um Marco Aurélio a figura do estóico se desdobra como realidade e o mito da Idade do Ouro, ao menos uma vez, adquire consistência concreta.

Notas

[1] . Pohlenz, La Stoa, I, p. 54.

[2] . Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, VII, 33 – Stoicorum Veterum Fragmenta, I, 259 e 268.

[3] . Clemente de Alexandria, Strom., IV – SVF, III, 237

[4] . Fílon de Alexandria, De Joseph, vol. 2 – SVF, III, 323 

[5] . Marco Aurélio, Med. 6: 44

[6] . Vide as obras Que os Estóicos Dizem Coisas Mais Extravagantes que os Poetas e As Contradições dos Estóicos.

[7] . Marco Aurélio. Med., 1:14.

[8] . Marco Aurélio. Med. , 9: 29

[9] . Dio. Laércio, VII: 2 – SVF, I, 1

[10] . Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, verso 126.

*por Breno de Magalhães Bastos

Eros e Logos: Marcuse crítico de Freud


1.0. Introdução  

  O grande objetivo de Marcuse é unir no homem razão e sensibilidade, sujeito e objeto, sonho e realização. Ele pretende ativar necessidades orgânicas e biológicas que se encontram reprimidas e suspensas no indivíduo. Quer assim que o corpo humano seja um instrumento de prazer e não de trabalho árduo. Neste artigo, nos remetemos à algumas das obras de Herbert Marcuse, em particular “Eros e Civilização”, mostrando como ele, ao interpretar o pensamento de Freud, desenvolve uma teoria sociológica da sociedade livre e busca fundamentar uma nova razão naturalista. Portanto, construir um novo indivíduo para uma nova realidade.  

1.1. A crise da Razão e a dissolução do indivíduo autônomo.  

  Os teóricos da “Escola de Frankfurt” detectaram no século XX a crise da razão e a dissolução do indivíduo autônomo que esteve ligado ao iluminismo e ao idealismo alemão. Os indivíduos se adaptaram à sociedade e ao domínio social de forma espontânea. A produção, distribuição de mercadorias, o trabalho e os entretenimentos da sociedade repressiva invadiram a psique do indivíduo. A racionalidade técnica atingiu todos os setores da vida social, tornando os controles tecnológicos a própria personificação da razão. Eliminou, com isso, qualquer tentativa de ruptura. O aparato produtivo e as mercadorias se impõem ao sistema social como um todo. Os consumidores, prisioneiros do capital, prendem-se agradavelmente aos produtos e às formas de bem estar social. Dessa forma, o indivíduo autônomo desaparece. A subjetividade é destruída pelos controles tecnológicos.  

  No livro “Dialética do Esclarecimento”, o livro que popularizou os teóricos de Frankfurt, Adorno e Horkheimer chegaram à conclusão que com o progresso da razão, em vez da humanidade entrar em um estado verdadeiro humano de igualdade, liberdade e felicidade para os indivíduos, a humanidade entrou em um estado de barbárie e regressão social. Eles chegaram a está conclusão, pois tiveram a experiência da primeira e segunda guerras mundiais, além de serem testemunhas dos doze milhões de judeus que foram vítimas do totalitarismo que assolava a Europa na primeira metade do século XX. Segundo a tese deste livro, o projeto da razão iluminista foi o de livrar os homens do medo, da ignorância, dissolvendo os mitos e, substituindo a imaginação pela razão e saber, buscava-se a harmonia entre o entendimento humano e a natureza das coisas. A razão significou os conceitos e princípios que designam normas e condições universalmente válidas. O sujeito esclarecido deveria desvelar-se como sujeito das transformações sociais. O mundo não deveria ser governado por qualquer lei externa, mas sim pela ordem da razão. Contudo, o que aconteceu foi exatamente o contrário, a razão se transformou em um simples instrumento, o que permitiu sua utilização a serviço da barbárie e da regressão social. A razão desvelou-se como um instrumento que deve obrar e trabalhar a serviço do domínio da natureza e dos homens. Ela só reconhece as coisas na medida em que pode dominá-las. A razão se tornou, portanto, totalitária. 

Adorno e Horkheimer também diagnosticaram neste mesmo livro através do ensaio a “Indústria Cultural”, que no século XX os meios de comunicação de massa controlam as faculdades racionais e emocionais voltando-as a seu mercado e sua política. Com isso, uma vez invadida a dimensão interior do homem, o poder crítico da razão se submeteu às formas de domínio social prevalecentes. A razão perdeu seu caráter de negação da realidade e tornou-se submissa aos fatos. Pela própria constituição objetiva dos produtos e entretenimentos há uma paralisação das faculdades e uma atrofia da imaginação. As pessoas ouvem, lêem, sentem e até deixam se orientar por anúncios e discursos dos meios de comunicação. ”A indústria cultural perfidamente realizou o homem como ser genérico. Cada um é apenas aquilo que qualquer outro pode substituir: coisa fungível, um exemplar. Ele mesmo como indivíduo é absolutamente substituível, o puro nada (…)” (ADORNO & HORKHEIMER, 1986, p.136)  

  Marcuse em seu livro “Eros e civilização” observou que no desenvolvimento da filosofia houve também a oposição entre razão e sensibilidade. A sensibilidade tornou-se uma faculdade vulgar e sem valor, lugar de impulsos cegos e hostis. “A luta começa com a vitória interna das faculdades ‘inferiores’ do indivíduo: as suas faculdades sensuais e apetitivas. A sua subjugação é considerada, pelo menos desde Platão, um elemento constitutivo da razão humana, a qual é assim, em sua própria função, repressiva. A luta culmina na vitória sobre a natureza exterior, que deve ser perpetuamente atacada, subjugada e explorada para satisfazer às necessidades humanas”.(MARCUSE, 1955, p. 102). A razão surge, assim, como um princípio de repressão e renúncia, cuja tarefa não é o de dirigir os sentidos e a sensibilidade dos homens, mas de os reprimir.  

  Para Marcuse, o órgão da felicidade não é a razão, mas a sensibilidade. “A fruição é algo exterior ao indivíduo, é um encontro despreocupado, inocente, harmonioso do indivíduo com algo no mundo. E, é justamente nessa receptividade, de uma entrega declarada aos objetos (homens e coisas), que a sensibilidade pode tornar-se fonte de felicidade”. (MARCUSE,1997,p.171 ). Contudo, nesta forma de sociedade a fruição só pode ser obtida pela aceitação do mundo tal como ele é. As relações humanas são relações de classe, e se fundamentam no livre contrato de trabalho. Este caráter contratual estendeu-se a toda vida social. Assim, a fruição deve ser aceita somente em sua aparência, segundo os ditames dessas relações contratuais. As relações no processo de trabalho não são reguladas conforme as necessidades e capacidades dos indivíduos, mas em função da valorização do capital e da produção de mercadorias. A fruição como satisfação das possibilidades supremas do indivíduo não podem ser satisfeitas. Portanto, a realização das necessidades e satisfações dos indivíduos não podem ser incluídas no reino da razão. O desenvolvimento completo dos indivíduos, seus interesses e felicidade permanecem uma quimera. “Não existe nenhuma harmonia entre o interesse geral e o particular. O progresso da razão se afirma contra a felicidade dos indivíduos”.(MARCUSE, 1997, p. 162 )  

  Se este diagnóstico for correto, seria possível construir-se uma nova razão? Seria possível construir-se uma nova ordem racional universal fundamentada na autonomia dos indivíduos?  

  Segundo Leo Maar, “para os Frankfurtianos estaria em pauta não só a revolução, mas uma concepção de razão num nexo essencial com a liberdade, a emancipação. A revolução, por esta perspectiva, nada seria além de uma realização efetiva da razão” (MAAR, 1997, p.12). Partindo disso, Marcuse busca em uma interpretação crítica da psicanálise freudiana os fundamentos que lhe permite pensar uma nova razão naturalista, que se oponha a esta razão formal, instrumental e repressiva, que se personificou nos controles tecnológicos. Busca, portanto, fomentar um novo indivíduo para uma nova realidade.  

1.2. Marcuse crítico de Freud  

  Em sua crítica a obra de Freud, Marcuse busca desvelar o caráter repressivo dos valores e das realizações da cultura. O conceito de homem que emerge da teoria de Freud é uma acusação à nossa civilização, pois desmascara os sofrimentos e as restrições ao prazer, ao nos revelar que nossa história é a história de nossa repressão. Freud aceita a realidade dada, conformando-se com as restrições que a civilização nos impõe. Levando em consideração esses dois aspectos, Marcuse faz uma crítica à metapsicologia freudiana, mostrando que ela não é tão cética como parece, na medida em que contêm nela a aceitação de uma sociedade não repressiva.  

  A teoria freudiana é complacente com essa civilização, na medida em que não admite a possibilidade de uma civilização não repressiva. Para Freud, a sociedade não tem meios suficientes para sustentar a vida de seus membros, assim, as energias da atividade sexual devem ser canalizadas para o trabalho. A necessidade (Anankê) e a penúria ou escassez (Lebensnot) do homem não podem ser satisfeitas, pois para se produzir os bens culturais não é possível viver sob o domínio do princípio de prazer. Os bens culturais têm origem nas pulsões sublimadas. Com isso, Freud pensa que é eterna a luta pela existência, assim como é eterna a luta entre princípio de prazer e princípio de realidade. Daí ser inevitável e irreversível o processo da repressão.  

  Freud apresenta dois motivos responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos com um certo grau de coerção: os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e os argumentos não têm valia nenhuma contra suas paixões. Assim, é somente através da coerção e da influência de líderes, onde possam reconhecer-se, e em quem possam confiar, que as massas podem ser induzidas a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias que a existência exige.  

  Segundo a metapsicologia freudiana a repressão ocorre de duas formas: na espécie (filogênese) e no indivíduo (ontogênese).

  Filogeneticamente: ela ocorre na horda primitiva, quando o pai, chefe da horda, monopoliza o prazer e o poder e impõe a renúncia por parte dos filhos. Após a rebelião dos filhos, que matam e devoram o pai, tomam o poder e impõem as mesmas ordens e tabus aos membros da comunidade.  

  Ontogeneticamente: ocorre na infância, quando os pais impõem o princípio de realidade à criança, ensinando o certo e o errado, o bom e o mau, o útil e o prejudicial. Logo após, as instituições assumem esta tarefa, determinando o status quo a ser obedecido. 

A repressão é continuamente reproduzida, tanto na espécie quanto no indivíduo. Após o domínio do pai primordial, segue o domínio dos filhos, que assumem seu lugar. É a partir deles que o princípio de realidade materializa-se e torna-se um domínio social e político institucionalizado. O indivíduo, ao evoluir dentro desse sistema, se acostuma e acha naturais suas regras e normas, sua lei e sua ordem, aceita espontaneamente os requisitos básicos do princípio de realidade. Dessa forma, ele os transmite às gerações seguintes.  

  A teoria metapsicológica de Freud mostra-nos que as repressões da civilização não são devidas às influências externas, histórico-sociais, mas a determinações internas, biológico-naturais. Há uma repressão orgânica que determina o caminho para a civilização. Ela é determinada por uma herança arcaica. As experiências infantis estão ligadas às experiências da espécie. A origem do indivíduo reprimido está ligada à origem da civilização repressiva. Decorre disso que a teoria freudiana dissolve a idéia de um indivíduo autônomo. O indivíduo torna-se manifestação congelada da repressão geral da espécie.

  A construção da personalidade torna-se imagem e semelhança da repressão na espécie (filogênese) e no indivíduo (ontogênese). A crítica de Marcuse à psicologia freudiana, é que ela não analisa a personalidade “concreta” e “completa”. Para ele, a personalidade deveria ser analisada tal como existe no seu meio privado e público, pois ela é o resultado final de prolongados processos históricos que estão solidificados nas relações humanas e institucionais que compõem a sociedade, são esses processos que definem a personalidade. Para Marcuse, “a submissão efetiva das pulsões através de regras repressivas não é imposta pela natureza, mas pelo homem. O pai primitivo é o arquétipo da dominação, que começa a reação em cadeia da escravidão, rebelião e da dominação reforçada que determina a história da civilização” (MARCUSE, 1955, p.27). O princípio de realidade que o indivíduo experimenta é um mundo histórico. “O princípio de realidade protege o organismo do mundo exterior, no caso do organismo humano, trata-se de um mundo histórico. Frente ao ego em desenvolvimento, o mundo exterior é em todas as etapas uma organização sócio-histórica da realidade, que influi sobre as estruturas mentais, por intermédio de agências ou agentes sociais específicos”(MARCUSE, 1955, p.40).  

  A personalidade é, na opinião de Marcuse, um construto histórico-social e a repressão filogenética é uma dominação organizada que é, em sua essência, histórica. O conceito freudiano de princípio de realidade ignora este fato, pois converteu as contingências históricas em necessidades biológicas. A tese de Marcuse é que a “teoria freudiana é na sua substância mesma ’sociológica’ e que não é necessário nenhuma orientação cultural ou sociológica para revelar esta substância. O biologismo freudiano é em profundidade uma teoria social (…) ” (MARCUSE, 1955, p.17).  

  Em outras palavras, para Freud, a repressão que perpetua a carência ou penúria, que se origina com o pai primordial é biológica e deve se perpetuar inexoravelmente na história. Já para Marcuse, a repressão pertence a um modo de dominação social específico na história. É apenas um princípio de realidade específico que pode mudar historicamente. A carência ou penúria foram organizadas em nossa história de formas diferentes, elas não são em si o princípio da civilização, como pensou Freud. Para Marcuse, elas foram impostas ao indivíduo primeiro pela violência, depois pela racionalização do poder. Portanto, para corrigir Freud, este pensador distingue na sua retomada desta teoria entre o que é histórico-social e o que é biológico. Com isso, ele constrói os conceitos para sua teoria sociológica: o conceito de mais-repressão e princípio de rendimento. 

1.4. Mais-repressão e Princípio de Rendimento  

  A teoria de Freud é, em sua essência, uma teoria sociológica. Seu biologismo é teoria social. O postulado não histórico dos conceitos freudianos contém o seu oposto, possui uma substância histórica. Os próprios conteúdos da teoria são histórico-sociais. A crítica de Marcuse, ao extrapolar os conceitos freudianos, na busca de identificar o componente histórico-social daquilo que se apresenta como processo natural, exige uma duplicação de conceitos. Dessa forma, ele introduz dois conceitos novos. São eles:

  a) Mais-repressão: são as restrições requeridas pelo domínio social além da exigidas pelo princípio de realidade. Distinguem-se, portanto, da repressão básica, ou seja, das modificações das pulsões que são necessárias à existência do homem na civilização.

  b) Princípio de rendimento: é a forma específica do princípio de realidade na sociedade moderna. É o princípio que exige o desempenho econômico de seus membros.  

  Hoje o progresso técnico atingiu uma tal amplitude, que já não é mais necessário que a vida seja definida pela competição, trabalho árduo e exploração. Para Marcuse, as capacidades técnicas devem ultrapassar os limites da luta pela existência. A reprodução da carência e penúria já não são mais necessárias Hoje temos todas as forças materiais, técnicas e intelectuais para criar uma sociedade não repressiva.  

  O principal argumento de Marcuse contra Freud é que os controles da sociedade civilizada já não são mais necessários como no passado, quando se exigia uma arregimentação repressiva das pulsões. Hoje esses controles adicionais geram uma mais-repressão desnecessária - “(…) as instituições históricas específicas do princípio de realidade e os interesses específicos da dominação introduzem controles adicionais acima dos indispensáveis a toda associação humana civilizada. Esses controles adicionais surgem de instituições específicas da dominação, e nós o chamamos de mais-repressão” (MARCUSE, 1955, p. 44).  

  Ao introduzir o conceito de mais repressão, Marcuse focalizou seu exame nas instituições e relações que constituem o corpo social do princípio de realidade. Esse princípio de realidade se fundamenta num mundo de escassez e repressão e tem sido o princípio de realidade específico que governou as origens e a evolução dessa civilização. Em sua opinião, esse princípio de realidade que foi diagnosticado por Freud deveria se chamar princípio de rendimento. “Nós chamamos princípio de rendimento, porque insiste no fato que, sob sua lei, a sociedade é estratificada de acordo com o rendimento competitivo de seus membros” (MARCUSE, 1955, p.50).  

  Para Marcuse, o princípio de rendimento é o de uma sociedade orientada para o ganho e concorrência entre os indivíduos, num processo ininterrupto de expansão. As aptidões intelectuais e materiais em nossa atualidade são muito maiores do que antes, isso significa que o alcance da dominação é infinitamente maior.  

  Em virtude de sua organização, o trabalho funciona como um poder independente do indivíduo, ao qual ele deve se submeter, se quer viver. “Nesta sociedade o trabalho se generalizou, assim como as restrições impostas à libido: o tempo de trabalho, que ocupa a maior parte da vida do indivíduo, é um tempo penoso, porque o trabalho alienado é abstinência da satisfação e negação do princípio de prazer” (MARCUSE, 1955, p.50). Sob o domínio do princípio de rendimento o corpo e a mente são instrumentos do trabalho árduo, dilação do prazer, coação e constrangimento.  

1.5. Eros e Logos: a proposta de um novo indivíduo autônomo

  Para Marcuse, “a mudança radical que deve transformar a sociedade atual deve atingir primeiramente a dimensão biológica”.(MARCUSE, 1969, p.29). A continuidade do progresso deve romper-se, fazendo surgir novas necessidades nos homens. Uma vez satisfeita as necessidades básicas, surgirão novas necessidades pulsionais, reações do corpo e do espírito diferentes. Essas novas necessidades precederão a revolução. Surgirá, então, a predisposição vital dos homens se libertarem dos confortos narcotizantes e da produtividade destruidora. Com isso, a revolução é antes de tudo um pressuposto histórico, que tem seu fundamento na base biológica. Segundo o argumento de Marcuse, mesmo que essa hipótese seja apenas uma especulação, ela deve ter uma base objetiva no processo de produção, na medida em que temos hoje todo desenvolvimento material e intelectual para uma sociedade livre. Com isso, a liberdade depende necessariamente do progresso técnico e do avanço da ciência. Contudo, “terão de mudar sua atual direção e objetivos para se tornarem veículos de libertação”.(MARCUSE, 1969, p.32.). 

  Marcuse preludia o fim da sociedade do trabalho. Ele espera que quando o processo histórico propender a tornar obsoletas as instituições do princípio de rendimento, tenderá também a tornar obsoleta a organização repressiva das pulsões no indivíduo. Essas poderiam ser libertas das repressões e desvios requeridos pela realidade, ou seja, haveria a possibilidade real de uma eliminação gradual da mais-repressão. Somente assim, “as forças de produção permitem objetivamente uma organização não-repressiva da sociedade e do trabalho, limitando a esfera da Anankê, abrindo espaço de uma calma erotização da vida social” ( PRADO JR, 1990, p.271). 

  Hoje o progresso técnico atingiu uma tal amplitude, que já não é mais necessário que a vida seja definida pela competição, trabalho árduo e exploração. Para Marcuse, as capacidades técnicas devem ultrapassar os limites da luta pela existência e conseqüentemente da servidão humana. Com o fim da sociedade do trabalho e a automatização de todas as esferas da vida social, os indivíduos devem ganhar consciência de suas repressões, dilações e sofrimentos na sociedade repressiva. Com isso, Marcuse espera que haja uma prática política que deve propiciar uma mudança na própria natureza humana. Os indivíduos devem romper com suas maneiras habituais de ver, ouvir, sentir e compreender as coisas. O protesto ativaria a base biológica do homem e surgiria uma nova sensibilidade. Assim, se manifestaria o protesto de Eros contra a repressão. Eros libertaria as exigências, aspirações e potencialidades humanas na fundamentação de um novo indivíduo e de um novo princípio de realidade. Com isso, o progresso deveria ter como direção e objetivos as exigências das pulsões de vida.  

  Para Marcuse é na essência do homem que se encontra o potencial de libertação. Essa essência tem sua base na natureza, pois é Eros, pulsão de vida. Com isso, se contrapõe à antiga essência do homem, que é Logos. Partindo de Freud, Marcuse proclama a necessidade um novo indivíduo, que tem como seu objetivo a fruição e receptividade do prazer, sem culpa, sem constrangimento e sem trabalho árduo.  

  A função de Eros é combinar as substâncias vivas em unidades cada vez maiores de vida, é o impulso que preserva e enriquece a vida mediante o domínio da natureza. Para Marcuse, portanto, a razão deve se transformar em Eros, o Logos deve orientar o princípio de prazer. Já não deverá ser mais um Logos imperativo, dominador, repressivo; mas um Logos que seja contemplação, fruição e receptividade do prazer.

*por Michel Aires de Souza

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Literatura socialista e comunista


O Socialismo Reacionário

a) O socialismo feudal

Pela sua posição histórica, as aristocracias francesa e inglesa foram chamadas a escrever libelos contra a moderna sociedade burguesa. Na revolução francesa de Julho de 1830 e no movimento inglês pela Reforma, haviam sucumbido uma vez mais sob os golpes dessa odiada arrivista. Daí em diante, não podia falar sequer de uma luta política séria. Só lhes restava a luta literária. Ora, mesmo no terreno literário, a velha fraseologia da época da Restauração tinha-se tornado inaplicável. Para criar simpatias era necessário que a aristocracia aparentasse não ter em conta os seus próprios interesses e que formulasse ao seu auto de acusação contra a burguesia no exclusivo interesse da classe explorada. Tinha, assim, a satisfação de compor canções satíricas contra o seu novo amo e de musicar-lhe aos ouvidos profecias mais ou menos sinistras.
Assim nasceu o socialismo feudal, mistura de jeremiadas e de pasquins, de ecos do passado e de ameaças sobre o futuro. Se algumas vezes a sua crítica amarga, mordaz e engenhosa feriu a burguesia no seu coração, a sua incapacidade absoluta de compreender a marcha da história moderna acabou sempre por cobri-lo de ridículo.
À guisa de bandeira, estes senhores arvoravam a sacola do mendigo, a fim de atrair o povo. Mas cada vez que o povo acorria, apercebia-se dos velhos brasões feudais com que ornamentavam o traseiro e dispersava no meio de grandes e irreverentes gargalhadas.
Uma parte dos legitimistas franceses e a "Jovem Inglaterra" deram ao mundo este espetáculo.
Quando os campeões do feudalismo demonstraram que o seu modo de exploração era distinto do da burguesia, esquecem uma coisa: é que o feudalismo explorava em condições e circunstâncias completamente diferentes e hoje antiquadas. Quando fazem notar que sob a sua dominação não existia o proletariado moderno, esquecem que a burguesia moderna é precisamente um produto inevitável do seu regime social.
Aliás disfarçam tão pouco o caráter reacionário da sua crítica, que a principal acusação que apresentam contra a burguesia é precisamente ter criado sob o seu regime uma classe que fará ir pelos ares toda a antiga ordem social.
O que reprovam à burguesia não é tanto o ter feito surgir um proletariado em geral, mas o ter feito surgir um proletariado revolucionário.
Por isso, na luta política, tomam parte ativa em todas as medidas de violência contra a classe operária. E na sua vida quotidiana, apesar da sua fraseologia pomposa, acomodam-se muito bem a recolher as maças de ouro caídas da árvore da indústria e a trocar a honra, o amor e a fidelidade pelo comércio de lãs, de açúcar de beterraba e de aguardente.


Do mesmo modo que o padre e o senhor feudal andaram sempre se mãos dadas, também o socialismo clerical caminha lado a lado com o socialismo feudal.
Nada mais fácil do que dar um verniz socialista ao ascetismo cristão. Acaso o cristianismo não se levantou também contra a propriedade privada, o matrimônio e o Estado? Não pregou, em seu lugar, a caridade e a pobreza, o celibato e a mortificação da carne, a vida monástica e a igreja? O socialismo cristão não é mais do que a água benta com que o padre consagra o despeito da aristocracia.

b) O socialismo pequeno-burguês

A aristocracia feudal não é a única classe arruinada pela burguesia, e não é a única classe cujas condições de existência desfalecem e se vão extinguindo na sociedade burguesa moderna. Os pequenos burgueses e os pequenos camponeses da Idade Média foram os percursores da burguesia moderna. Nos países em que a indústria e o comércio são menos desenvolvidos esta classe continua a vegetar ao lado da burguesia florescente.
Nos países onde se desenvolveu a civilização moderna, formou-se uma nova classe de pequeno burgueses que oscila entre o proletariado e a burguesia; fração complementar da sociedade burguesa, ela constitui-se sem cessar; mas, devido à concorrência, os indivíduos que a compõe vêm-se continuamente precipitados nas fileiras do proletariado, e, com o desenvolvimento progressivo da grande indústria, vêem aproximar-se o momento em que desaparecerão por completo como fração independente da sociedade moderna, e serão substituídos no comércio, na manufatura e na agricultura por contramestres e empregados.
Em países como a França, onde os camponeses formam bastante mais de metade da população, é natural que os escritores que defendiam a causa do proletariado contra a burguesia, aplicassem à sua crítica do regime burguês critérios pequeno-burgueses e de pequenos camponeses, e defendessem a classe operária do ponto de vista da pequena burguesia. Assim se formou o socialismo pequeno-burguês. Sismondi é o mais alto expoente desta literatura, não só em França, mas também na Inglaterra.
Este socialismo analisou com muita sagacidade as contradições inerentes às modernas relações de produção. Pôs a nu as hipócritas apologias dos economistas. Demonstrou de forma irrefutável os efeitos destruidores da maquinaria e da divisão do trabalho, a concentração dos capitais e da propriedade da terra, a superprodução, as crises, a inevitável ruína dos pequenos burgueses e dos camponeses, a miséria do proletariado, a anarquia da produção, a escandalosa desigualdade na distribuição das riquezas, a exterminadora guerra industrial das nações entre si, a dissolução dos velhos costumes, das antigas relações familiares, das velhas nacionalidades.
Todavia, o conteúdo positivo desse socialismo consiste no seu desejo ardente de restabelecer os antigos meios de produção e de troca, e, com eles, as antigas relações de propriedade e toda a sociedade antiga, ou em querer à força encaixar os modernos meios de produção e de troca no quadro estreito das antigas relações de propriedade que já foram destruídas, por aqueles. Quer num caso, quer noutro, este socialismo é simultaneamente reacionário e utópico.
Para a manufatura, o regime corporativo; para a agricultura, o regime patriarcal: eis a sua última palavra.
No seu ulterior desenvolvimento, esta escola caiu no marasmo cobarde que segue a embriaguês.

c) O socialismo alemão ou socialismo "verdadeiro"

A literatura socialista e comunista de França, que nasceu sob o jugo de uma burguesia dominante e é a expressão literária da revolta contra esta dominação, foi introduzida na Alemanha no momento em que a burguesia começava a sua luta contra o absolutismo feudal.
Filósofos semifilósofos e diletantes alemães lançaram-se avidamente sobre esta literatura, mas esqueceram que, com a importação da literatura francesa para a Alemanha não foram importadas, ao mesmo tempo, as condições sociais da França. Nas condições alemãs, a literatura francesa perdeu toda a sua significação prática imediata e tomou um caráter puramente literário. Não devia parecer mais do que uma especulação ociosa sobre a sociedade verdadeira, sobre a realização da essência humana. Deste modo, para os filósofos alemães do século XVIII, as reivindicações da primeira Revolução Francesa não eram mais do que as reivindicações da "razão prática" em geral, e as manifestações da vontade da burguesia revolucionária de França não exprimiam aos seus olhos mais do que as leis da vontade pura, da vontade tal como deve ser, da vontade verdadeiramente humana.
Todo o trabalho dos literatos alemães reduziu-se unicamente a pôr as novas idéias francesas de acordo com a sua velha consciência filosófica ou, mais exatamente, a assimilar as idéias francesas partindo do seu ponto de vista filosófico.
E assimilaram-nas como se assimila em geral uma língua estrangeira: pela tradução.
É sabido como os monges recobriram os manuscritos das obras clássicas da antigüidade pagã com absurdas lendas dos santos católicos. Os literatos alemães procederam inversamente em relação à literatura profana francesa. Deslizaram os seus absurdos filosóficos sob o original francês. Por exemplo, sob a crítica francesa das funções do dinheiro, escreviam "alienação da essência humana", sob a crítica francesa do Estado burguês, escreviam "abolição do reino do universal abstrato", e assim sucessivamente.
A esta interpolação da sua fraseologia filosófica na crítica francesa deram o nome de "filosofia da ação", "socialismo verdadeiro", "ciência alemã do socialismo", "fundamentação filosófica do socialismo", etc.
Desta maneira, foi completamente castrada a literatura socialista e comunista francesa. E, como nas mãos dos alemães deixava de ser a expressão da luta de uma classe contra outra, os alemães imaginaram que se tinham elevado muito acima da "estreiteza francesa" e felicitaram-se por ter defendido, em vez das verdadeiras necessidades, a necessidade da verdade, em vez dos interesses do proletariado, os interesses da essência humana, do homem em geral, do homem que não pertence a nenhuma classe nem a nenhuma realidade e que só existe no céu brumoso da fantasia filosófica.
Este socialismo alemão, que tomava tão solenemente a sério os seus torpes exercícios de escola e que os lançava aos quatro ventos com tanto estrépito charlatanesco, foi perdendo a pouco e pouco a sua inocência pedantesca.
A luta da burguesia alemã, e principalmente da burguesia prussiana, contra os senhores feudais e a monarquia absoluta, numa palavra, o movimento liberal, adquiria um caráter mais sério.
Deste modo, o "verdadeiro" socialismo teve a tão desejada ocasião de contrapor ao movimento político as reivindicações socialistas, de fulminar os anátemas tradicionais contra o liberalismo , contra o regime representativo, contra a concorrência burguesa, contra a liberdade burguesa de imprensa, contra o direito burguês, contra a liberdade e a igualdade burguesas e de pregar às massas populares que elas não tinham nada a ganhar, mas que, pelo contrário, perderiam tudo, neste movimento burguês. O socialismo alemão esqueceu, muito a propósito, que a crítica francesa, da qual era um simples eco insípido, pressupunha a sociedade burguesa moderna, com as correspondentes condições materiais de existência e uma Constituição Política apropriada, isto é, precisamente as premissas que, na Alemanha, se tratava ainda de conquistar.
Para os governos absolutos da Alemanha, com o seu séquito de padres, de pedagogos, de fidalgos rústicos e de burocratas, este socialismo converteu-se no espantalho desejado, contra a burguesia que se levantava, ameaçadora.
Juntou a sua hipocrisia adocicada às chicotadas e aos tiros com que estes mesmos governos responderam às rebeliões dos operários alemães.
Se o "verdadeiro socialismo" se converteu deste modo numa arma nas mãos dos governos contra a burguesia alemã, representava além disso, diretamente, um interesse reacionário, o interesse do pequeno burguês alemão. A classe dos pequeno burgueses, legada pelo século XVI, e desde então renascendo sem cessar sob diversas formas, constitui para a Alemanha a verdadeira base social do regime estabelecido.
Mantê-la é manter na Alemanha o regime estabelecido. A supremacia industrial e política da grande burguesia ameaça esta pequena burguesia de morte certa, devido, por um lado, à concentração dos capitais, e, por outro, ao desenvolvimento de um proletariado revolucionário. pareceu à pequena burguesia que o "verdadeiro" socialismo podia matar os dois coelhos com uma só cajadada. E este propagou-se como uma epidemia.
Tecido com os fios de aranha da especulação, bordado com as finas flores da sua retórica, impregnado dum quente orvalho sentimental, essa roupagem fantástica com que os socialistas alemães vestiram o esqueleto das suas "vedardes eternas" não fez mais do que ativar o escoamento da sua mercadoria, junto de semelhante público.
Por seu lado, o socialismo alemão correspondeu cada vez melhor que estava destinado a ser o representante pomposo desta pequena burguesia.
Proclamou que a nação alemã era a nação modelo e o filisteu alemão o homem modelo. A todas as infâmias deste homem modelo, deu-lhes um sentido oculto, um sentido superior e socialista, contrário à realidade. Foi conseqüente até ao fim, manifestando-se de um modo direto contra a tendência "brutalmente destrutiva" do comunismo e declarando que planava imparcialmente por cima de todas as lutas de classes. Salvo muito raras excepções, todas as obras pretensamente socialistas e comunistas que circulam na Alemanha pertencem a esta imunda e enervante literatura.

*Karl Marx e Friedrich Engels
fevereiro de 1848