terça-feira, 29 de setembro de 2009

A mentira da palavra

Tudo isto são coisas, coisas que nós podemos amar. Mas não posso amar palavras. É por isso que não aprecio as doutrinas, não têm dureza ou moleza, não têm cores, não têm arestas, não têm cheiro, não têm gosto, nada têm senão palavras.
Talvez seja isto que impede de encontrares a paz, talvez sejam as palavras em excesso. Porque também libertação e virtude, também Samsara e Nirvana são meras palavras. Nada existe que seja o Nirvana; apenas existe a palavra Nirvana.

*Hermann Hesse

O Devasso Bilac

Nunca fui entusiasta dos parnasianos, todas aquelas formas marmóreas e o excesso de sobriedade tão maquinalmente calculado. Uma poesia sem sangue, pensava eu. Recentemente descobri um algo surpreendente para a maioria, o senhor Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, mais conhecido por uma abreviação desse como Olavo Bilac, carregava em si uma devassidão velada. Você não leu errado, estamos falando da mesma pessoa. Aquele senhor polido, direitista e reacionário era em seus domínios, um anarquista sexual. Vim a dar conhecimento disso quando por acaso descobri um embaraçoso epitáfio da lavra de Emílio de Menezes para o túmulo de nosso amigo em questão: "Bilac esta cova encerra. Choram sacros e profanos... Muitos anos coma a terra, a quem comeu tantos ânus!". O apático gentleman era então um sodomita de carteirinha, deve mesmo ocorrer que de perto ninguém é tão normal assim. Pois bem, em busca de uma prova literária do apetite sexual do nosso poeta até pouco tempo senhor de virtudes cristalinas, me pus a lê-lo. Abaixo seguem alguns fragmentos.

Satânia
(...)
Sobe... cinge-lhe a perna longamente;
Sobe...- e que volta sensual descreve
Para abranger todo o quadril!- prossegue,
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura,
Morde-lhe os bicos túmidos dos seios,
Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo
Da axila, acende-lhe o coral da boca,
E antes de se ir perder na escura noite,
Na densa noite dos cabelos negros,
Pára confusa, a palpitar, diante
Da luz mais bela dos seus grandes olhos.

E aos mornos beijos, às carícias ternas,
Da luz, cerrando levemente os cílios,
Satânia os lábios úmidos encurva,
E da boca na púrpura sangrenta
Abre um curto sorriso de volúpia...

Beijo Eterno
Diz tua boca: "Vem!"
"Inda mais!" diz a minha, a soluçar...Exclama
Todo o meu corpo que o teu corpo chama:
"Morde também!"
Ai! morde! que doce é a dor
Que me entra as carnes, e as tortura!
Beija mais! morde mais! que eu morra de ventura,
Morro por teu amor!

Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim! O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!


Delírio

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!
Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.
Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
Mais abaixo, meu bem! ? num frenesi.
No seu ventre pousei a minha boca,
Mais abaixo, meu bem! ? disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci…

Última Página
Primavera. Um sorriso aberto em tudo. Os ramos
Numa palpitação de flores e de ninhos.
Doirava o sol de outubro a areia dos caminhos
(Lembras-te, Rosa?) e ao sol de outubro nos amamos.

Verão. (Lembras-te Dulce?) À beira-mar, sozinhos,
Tentou-nos o pecado: olhaste-me... e pecamos;
E o outono desfolhava os roseirais vizinhos,
Ó Laura, a vez primeira em que nos abraçamos...

Veio o inverno. Porém, sentada em meus joelhos,
Nua, presos aos meus os teus lábios vermelhos,
(Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor...

(...)

*Leandro M. de Oliveira

sábado, 26 de setembro de 2009

Pode acaso quem nunca nada viu, julgar um cavaleiro andante?

As repreensões santas e bem intencionadas requerem outras circunstâncias e pedem outros assuntos; pelo menos, o repreender-me em público e tão asperamente, excedeu todos os limites da censura cordata; porque às primeiras cabe melhor a brandura do que a aspereza; não me parece bem que, sem ter conhecimento do pecado que se repreende, se chame ao pecador, sem mais nem mais, mentecapto e tonto. Senão, diga-me Vossa Mercê: que tonteria viu em mim, para me condenar e vituperar, e mandar-me que vá para minha casa tomar conta do seu governo, e de minha mulher e de meus filhos, sem saber se tenho filhos e mulher? Então não é mais senão entrar a trouxe-mouxe pelas casas alheias a governar os donos delas, e, tendo-se criado alguns dos que isso fazem na estreiteza dum seminário, sem terem visto mais mundo do que o que pode encerrar-se em vinte ou trinta léguas de comarca, meterem-se de rondão a dar leis à cavalaria e a julgar os cavaleiros andantes? Porventura é assunto vão, ou é tempo desperdiçado o que se gasta em vaguear pelo mundo, não procurando os seus regalos, mas sim as asperezas por onde ascendem os bons à sede da imortalidade?

Se me tivessem por tonto os cavaleiros, os magníficos, os generosos, os de alto nascimento, considerá-lo-ia eu afronta irreparável; mas que me tenham por sandeu os estudantes, que nunca pisaram a senda da cavalaria, pouco me importa; cavaleiro sou e cavaleiro hei-de morrer;

Se aprouver ao Altíssimo: uns seguem o largo campo da ambição soberba, outros o da adulação servil e baixa, outros o da hipocrisia enganosa, e alguns o da verdadeira religião; mas eu, guiado pela minha estrela, sigo a apertada vereda da cavalaria andante, por cujo exercício desprezo a fazenda, mas não a honra. Tenho satisfeito agravos, castigado insolências, vencido gigantes e atropelado vampiros: sou enamorado, só porque é forçoso que o sejam os cavaleiros andantes, e, sendo-o, não pertenço ao número dos viciosos, mas sim ao dos platônicos e continentes. As minhas intenções sempre as dirijo para bons fins, que são fazer bem a todos e mal a ninguém. Se quem isto entende, se quem isto pratica, se quem disto trata, merece ser chamado bobo, digam-no vossas grandezas, duque e duquesa excelentes.

*Miguel de Cervantes, Dom Quixote - capítulo XXXII

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Deixe-me dormir

Ela conseguiu acabar com meu dia antes mesmo que começasse. Depois de dez anos entre convulsões sonambulísticas e dormidas desfalecentes como quando se toma uma pancada na cabeça, tive um sonho decente. Eu estava longe, liberto e bem-humorado mas, no clímax ela tinha mesmo que vir aqui como búfalo selvagem e invadir meu idílio imaginário. Não sei porque anjos ou diabos nada de bom vai do início ao fim comigo, ainda que seja mero hipotético. E agora ela me acorda, e agora o beijo na realidade, ainda sou prisioneiro. No sonho as pornografias são coisas tão cândidas, por que despertar pra esse mundo de teorias e maldades. Droga, ela é minha mãe, deveria supor meu subconsciente. Mas tinha que me acordar, e quando me reporto a ela perguntando o que quer, toda a motivação se condensa em uma palavra:

-Nada!!!!

Nesses primeiros momentos não estou indo bem em administrar o horror de ha um segundo me sentir um Titã. Era enfim um homem livre, que pra seu desespero, logo após de um descerrar forçado dos olhos acorda, de volta à memória austera reavaliando que ainda permanece como aquela decadente massa de carne e sangue. Quanto à qualidade dos últimos dois itens, não posso atestar. Talvez isso mude ainda, um dia. É cômico como uma pantomima do inferno, levanto sem ouvir ou falar, atado ao momento anterior. Tudo pela estupidez de um carinho maternal. Socorro, socorro, exílio, exílio; Morpheu “donde estàs?” E pensar que quando era criança ela costumava me acordar com doces e bombons. Como diriam os pré-socráticos nada na vida tem perenidade, também nesse sentido, Lavoisier já advertira que na natureza tudo se transforma. Acho que ela tentou me dizer isso em outras palavras, num tom menos acadêmico. Pois bem, que os doces e bombons sejam lembranças remotas, que a doçura dos anos de inocência sofra a catarse do mal. Que eu me torne um sítio oblíquo e esquecido. Meu sono, meu assombro, minha fulga. Estou de pé, e as pessoas daqui seguem sem coisa alguma a acrescentar, insurtos de mim. Erro pela casa agora vazia, ninguém nunca tem nada a dizer.

*Leandro M. de Oliveira
**Ps: Parece até coisa de adolescente

Chagall e a magia vida






Marc Chagall (1887 - 1985) um artista afundado em si mesmo à busca do insondável humano, criou seu próprio mundo colorido de mitos e magia, de estranhas criaturas, amantes e animais alados em cenários oníricos.

Num século marcado por uma arte de formalismo e abstração, a pintura de Chagall é única, só comparada em importância e extensa produção à de Pablo Picasso. Suas telas são repletas de símbolos e ligadas à memória, ao mundo dos sonhos e do subconsciente, mostrando as profundas raízes efetivas e culturais do artista. Influenciado inicialmente pelo cubismo, o artista dialogou com o expressionismo alemão e atraiu a atenção dos surrealistas, passou por todas as vanguardas e não se prendeu a nenhuma.

Chagall (cujo nome verdadeiro era Moshe Segall) nasceu em Vitebsk, Rússia, viveu grande parte da sua vida em Paris - onde ficou amigo dos escritores Blaise Cendrars (autor de quase todos os títulos de suas pinturas) e Apollinaire - e morreu em Saint-Paul de Vence, sul da França, aos 97 anos.

Desde sempre nutri uma admiração ímpar por esse pintor que fez uma arte sentida e não só calculada como reclamam os insossos acadêmicos. É um triunfo artístico feito apartir do humano em estado puro, sem concessões. Do mais, as imagens falam por si só. Tente ver de olhos fechados... No Brasil, é possível ver obras de Chagall nos museus MAC-USP, MASP, FAAP – Museu de Arte Brasileira, em São Paulo; Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro e no MAM, em Salvador. Visitem!

*Leandro M. de Oliveira

The Drowning

Por três dias estive de pé
Por três dias estive de pé
Por outros seis fui abatido no chão
Incisões não podem penetrar em meus pés
Provocar tensões, fazê-los escorregar, deixá-los dormentes
As mãos se mantiveram atadas à pele sem carências
Rasgada, oculta, invocadas em silêncio

Você, em habitações mudas
Você, num sono de sarjeta – amor
Você, nasce para ser morto – luvas enfaixadas
Você vestindo filhas e filhos
Assim como você – eu estou despedaçado e frágil
Assim como você – estou provando meu coração pela primeira vez
Assim como você se alimentando num breve descanso
Assim como você – deixei meus olhos distantes para trás
Pedindo atenção e ainda me afogando

Repouse no oitavo dia
Repouse no oitavo dia
Fui arrastado de volta ao primeiro
Dedos indelicados enfraquecem meus olhos
Eles choram, espreitam, se debatem cegamente
Não há sanidade para que eu volte a ficar de pé

Estou num quarto vazio
Estou incendiando a formalidade dos livros
Estou perdido com você na cama
Quebrando os espelhos para por fim em tudo que já vi

Assim como você – eu estou despedaçado e frágil
Assim como você – estou provando meu coração pela primeira vez
Assim como você se alimentando num breve descanso
Assim como você – deixei meus olhos distantes para trás
Pedindo atenção e ainda me afogando...

*Rozz Willliams

Machado e o insólito cotidiano

"Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
(...)
Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam.
(...)
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: 'Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados.
(...)
Tinha lido de manhã, em uma notícia de jornal, que há estrelas duplas, que nos parecem um só astro. Em vez de ir dormir, encostou-se à janela do quarto, olhando para o céu, a ver se descobria alguma delas; baldado esforço. Não a descobrindo no céu, procurou-a em si mesma, fechou os olhos para imaginar o fenômeno; astronomia fácil e barata, mas não sem risco. O pior que ela tem é pôr os astros ao alcance da mão; por modo que, se a pessoa abre os olhos e eles continuam a fulgurar lá em cima, grande é o desconsolo e certa a blasfêmia. Foi o que sucedeu aqui. Maria Regina viu dentro de si a estrela dupla e única. Separadas, valiam bastante; juntas, davam um astro esplêndido. E ela queria o astro esplêndido. Quando abriu os olhos e viu que o firmamento ficava tão alto, concluiu que a criação era um livro falho e incorreto, e desesperou.
(...)
O pior é que entre a espiga e a mão há o tal muro do poeta, e o Rangel não era homem de saltar muros. De imaginação fazia tudo, raptava mulheres e destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo mesmo, ministro de Estado, e fartou-se de cortesias e decretos. Chegou ao extremo de aclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro, ao voltar da parada no largo do Paço; imaginou para isso uma revolução, em que derramou algum sangue, pouco, e uma ditadura benéfica, em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá fora, porém, todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade, era pacato e discreto."

*Machado de Assis in Várias Histórias.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Deve-se conformar?

"Como já declarei, nunca, em todos esses anos, pensei no assunto dessa forma: porém talvez seja parte da natureza de empreender uma viagem como esta, impulsionar a pessoa em direção a perspectivas novas e surpreendentes a respeito de assuntos que a pessoa julgava já esgotados há muito.
(...)
Mas qual é o sentido em estar sempre especulando o que poderia ter acontecido se uma dada ocasião tivesse um desfecho diferente? É provável que assim uma pessoa acabe perdendo o juízo. De qualquer maneira, embora seja válido falar em "momentos decisivos", certamente só se pode identificar tais momentos em retrospecto. Naturalmente, quando hoje se rememora essas ocasiões, elas podem realmente tomar a aparência de momentos cruciais e preciosos na vida da pessoa; mas na época, é claro, esta não era a impressão que se tinha.
(...)
Afinal, não se pode fazer o relógio voltar. Não se pode estar eternamente pensando no que poderia ter sido. É preciso ter consciência de que se tem uma vida tão boa quanto a maioria, talvez melhor, e sentir gratidão por isso."

*Kazuo Ishiguro in Os vestígios do dia.

Paganismo e o não ao "Status Quo"

Constelações pelas quais orientar a barca da alma.
"Se o muçulmano entendesse o Islã ele se tornaria um idólatra" - Mahmud Shabestari

Eleguá, horrendo abridor de portais com um gancho em sua cabeça & búzios como olhos, negro charuto de santeria & um copo de rum — o mesmo que Ganesh6, gorducho garoto dos Inícios, com cabeça de elefante, que cavalga um rato. O órgão que sente as atrofias numinosas com os sentidos. Aqueles que não podem sentir baraka não podem conhecer a carícia do mundo.

Hermes Poimandres ensinou a animação dos eidolons, a incorporação mágica de ícones por espíritos — mas aqueles que não podem realizar este rito em si mesmos & em todo o tecido palpável do ser material herdará apenas tristeza, lixo, decadência.

O corpo pagão torna-se uma Corte de Anjos que percebem todos este lugar — este mesmo arvoredo — como um paraíso ("Se há um paraíso, certamente é aqui!" — inscrição em um portão de um jardim Mughal). Mas o anarquismo ontológico é por demais paleolítico para escatologias — as coisas são reais, a feitiçaria funciona, espíritos da mata unos com a Imaginação, morte como uma desagradável imprecisão — a trama das Metamorfoses de Ovídio —, um épico de mutabilidade. A mitologia pessoal.
O Paganismo ainda não inventou leis — apenas virtudes. Sem sacerdócio, sem teologia ou metafísica ou moral — apenas um xamanismo universal onde ninguém atinge a real humanidade sem uma visão. Comida dinheiro sexo sono sol areia & sensmilía— amor verdade paz liberdade & justiça. Beleza. Dionísio o garoto bêbado em uma pantera — rançoso suor adolescente — Pã homem-bode abre caminho através da terra sólida até sua cintura como se estivesse no mar, sua pele incrustada de musgo & líquen — Eros se multiplica em uma dúzia de jovens caipiras nus com pés embarrados & limo de açude em suas coxas.

Raven, o trapaceiro do potlatch, às vezes um garoto, uma velha, pássaro que roubou a lua, agulhas de pinheiro flutuando em um açude, cabeça de totem Heckle/Jeckle, corvos coristas com olhos de prata dançando na pilha de lenha — o mesmo que Semar, o corcunda albino hermafrodita marionete de sombras, patrono da revolução Javanesa. Yemanjá, estrela azulada, deusa marinha & padroeira dos bichas — o mesmo que Tara, aspecto cinza-azulado de Kali, colar de crânios, dançando no rígido lingam de Shiva, lambendo nuvens de monção com sua língua enormíssima — o mesmo que Loro Kidul, a deusa marinha verde-jaspe javanesa, que concede o poder de invulnerabilidade a sultões através de intercurso tântriko em torres & cavernas mágicas. Sob um ponto de vista o anarquismo ontológico é extremamente vazio, desprovido de quaisquer posses & qualidades, pobre como o próprio CAOS — mas sob outro ponto de vista ele pulula com a mesma beleza barroca dos Templos da Foda de Katmandu ou de um livro de emblemas alquímicos — esparrama-se em seu divã comendo loukoum14 & acolhendo noções heréticas, uma mão dentro de suas calças frouxas.


Os cascos de seus navios piratas são laqueados de negro, as velas triangulares são vermelhas, bandeiras negras exibindo uma ampulheta alada. Um imaginário Mar do Sul Chinês, próximo de uma costa coberta por uma floresta de palmeiras, apodrecidos templos dourados dedicados à deuses de bestiários desconhecidos, ilha após ilha, a birsa como úmida seda amarela na pele nua, navegando por estrelas panteístas, hierofania sobre hierofania, luz sobre luz contra a escuridão luminosa & caótica.

*Hakim Bey

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Acerca da Morte

Como ao homem primitivo, também ao nosso inconsciente se apresenta um caso em que as duas atitudes opostas, em face da morte, chocam e entram em con?ito; uma, que a reconhece como aniquilação da vida, e outra que a nega como irreal. E este caso é o mesmo que na época primitiva: a morte ou o perigo da morte de um ente querido, do pai ou da mãe, de um irmão, de um ?lho ou de um amigo dilecto. Estas pessoas amadas são para nós, por um lado, um patrimônio íntimo, componentes do nosso próprio Eu; por outro, porém, são em parte estranhos, e até inimigos. Todas as nossas relações amorosas, mesmo as mais íntimas e ternas, implicam, salvo em raríssimas situações, um fragmento de hostilidade que pode estimular o desejo inconsciente de morte. Desta ambivalência já não nascem, como outrora, o animismo e a ética, mas a neurose, a qual nos faculta vistas profundas sobre o psiquismo normal. Os médicos que praticam o tratamento psicanalítico depararam, muitas vezes, com o sintoma de uma preocupação exacerbada pelo bem-estar dos familiares ou com autocensuras totalmente in- fundadas após amorte de uma pessoa amada. O estudo destes casos não lhes deixou dúvida alguma sobre a difusão e a importância dos desejos inconscientes de morte. O leigo horroriza-se com a possibilidade deste sentimento e atribui a tal repugnância o valor de um motivo legítimo para aceitar com incredulidade as a?rmações da psicanálise. Na minha opinião, sem fundamento algum. Não se intenta qualquer depreciação da vida afetiva, e não tem também semelhante consequência. Tanto a nossa inteligência como o nosso sentimento resiste, decerto, a juntar assim o amor e o ódio; mas a natureza, ao trabalhar com este par antitético, consegue conservar sempre desperto e fresco o amor, para o resguardar do ódio que, por detrás dele, está à espreita. Pode dizer-se que devemos as mais belas ?orações da nossa vida amorosa à reação contra o impulso hostil, que percebemos no nosso peito. Em resumo: o nosso inconsciente é tão inacessível à representação da morte própria, tão sanguinário contra os estranhos e tão ambivalente quanto à pessoa amada como o homem da Pré-história. Mas quanto nos afastamos deste estado primitivo na nossa atitude cultural e convencional frente à morte!
*Sigmund Freud

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O Monte

Subi o monte com pensamentos de grandeza
Mas, lá só haviam descampados e correntes de ar.
Os Deuses foram convertidos em estátuas enferrujadas
E os homens fizeram-se em rebanho de cabras.
Tomei meu café como quem foge ou esquece,
Passei aqui e ali, e tudo era igual,
Onde estou que não me vejo?
A rua existe como caminho pavimentado,
Como existe nódoa dentro dos homens,
Como existe um andarilho em assombro.
E eu sem dormir, me meto a escrever ou pensar.
Das estreitas possibilidades, a cidade está
Dispersa como lugar em que se habita.
Das minhas largas mazelas a cidade ficou,
Semelhante a um canceroso terminal.
Como o ar esta pesado aqui, urge reinventar.
Torno ao monte remoto, aos descampados e às correntes,
Pensei ter tido um lampejo de eternidade, isto me cismou,
Era só meu estômago bradando em petição de miséria.
A comida nunca satisfaz uma alma faminta,
Mas que sei de almas?
Eu que tomo café como quem foge ou esquece.
Já sei, vou deixar que a metafísica se esvaia
No fluxo incontinente de minha urina,
Há tanto milagre acontecendo na natureza
Quanto há em um banheiro público.
Voltei à casa antiga, por mor espanto,
As traças são implacáveis
Mesmo com as memórias mais ternas.
Vou viver pra sempre ou morrer um dia, tanto faz,
A matéria sempre alimentará outros parasitas.
*Leandro M. de Oliveira

Meio Existencial

"Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu (...)

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ... "

*Fernando Pessoa, por Álvaro de Campos

Acerca de metalinguagem e reflexão da arte

"Marcel Duchamp"


(...) Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar-estando,
mas de tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem distingo eu mesmo
o vivido e o inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.
A orelha pouco explica
de cuidados terrenos:
e a poesia mais rica
é um sinal de menos.

*Drummond de Andrade

As Coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.
*Jorge Luis Borges

sábado, 19 de setembro de 2009

Uma música...


...Boa música.

Ao Reflexo

Dê-me alcalóide. Tenho suposto um passaporte só de ida. Deveria acaso voltar aqui? Deveria me dispor a chorar, implorar ou gemer? Sei que é esse o teu fetiche mais obscuro, o de me ver eternamente reduzido, me queres como um atavio desesperado, me queres como aquele que faz e reivindica o que for daquilo que insisto, é indigno de um homem livre. Se eu te desse hoje o afeto que jamais senti alguns chamariam isso de adaptação. Mas o que posso é te invadir agora enquanto meus membros ainda não são alcançados pela letargia. Com raiva e fúria abriria teus flancos, você estaria envergonhada de si e a natureza estaria plena de seu curso.

Eu poderia saltar em teu abismo, te beijar por misericórdia da sombra que um dia fomos, tristemente, isso seria pra mim como um ato de terrorismo. Quando você se tornou tão infeliz? Tente dançar de pés descalços, é a melhor forma de deixar com que o sangue circule. Coma alho, fume ópio, espante vampiros e fantasmas tenho suspeitado presenças estranhas. Eu te amaria agora, se pudesse fazer isso sem vomitar. Tudo está perdido! O dia passou, a vida deixou, os sorrisos amarelaram. Quando eu tinha cinco anos quis ajudar um passarinho morto, anos mais tarde trago como espólio o bastão do andarilho, tarde demais. Tempo atrás... O perfume da sacerdotisa gorda e obtusa teima em recender toda o sítio. Isso é o inferno? Não foi minha criação. Todavia, pode ser que eu estivesse dormindo enquanto o inconsciente trabalhava. Que sono remoto. Fora daqui! O caos pertence a mim. Não o reclame a ti.

Agora tu entendes, aquele te ofertou paz era o mesmo que velava na surdina com uma adaga. Como eu gostaria de sentir compaixão, não consigo. Fica aí, atado a esse mundo de cristal. Mando-te lembranças um dia, embora antes tenha de combinar isso, com meus olhos e sistema digestivo. Prefiro continuar como um pirata bêbado, sem cartografia ou sextante, saio por invadir além-mares sem fazer planos. À noite uivo, de dia durmo. Tenho tido tantas humanidades como tem um cão endoudecido. Convertido fui, em soberano de minha própria pele(..)

Agora me vou. Sempre me vou. Sempre retorno.

*Leandro M. de Oliveira

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Remake

Um fabricador d’engenhos apanha suas invenções já inventadas, plageia a própria alma, da seu âmago ao desatento que por aqui passou. Nada é original. Todo sacrifício é vão. Criador olha com retidão a criatura, não vê senão o eco perdido do abandonado caminho. O novo é uma casa antiga cujas paredes foram caiadas, no interior o sepulcro é o mesmo de tempos sem conta. Toda produção, toda expressão, é só um murmúrio da ânsia da vida por si mesma. Da vida que deveria ter sido mas, na perdição das horas lentas e ociosas viu se achegar ao peito um pleno de impossibilidades irrevogáveis. Idealização frente a construção é deveras, uma lida de menor esforço pra alguém tão exausto de ser ele mesmo.
E assim foi, o homem d’engenhos passou todo um dia (ou seria ano?) na clausura da cela à busca da revelação derradeira. Passou à memória seu legado, como passa um general à frente da tropa, como passa o pacifista frente ao tanque de guerra. Como pudesse fazer moenda do candial da vida pra erguer com ele a argamassa da resposta, conjeturou infância e velhice, mesmo sentindo-se desde sempre imune a condicionamentos temporais. “A única liberdade é esmerar um algo inédito, com vida insuspeitada, com estatura que se note. Quero sair desse teatro pra escrever minha própria peça, essa companhia tornou-se ao longo de tantas temporadas, demasiado enfadonha.” Nisso, pensava ele resignado enquanto arquitetava seu livramento. “Quero comer sem arrotar, doer sem chorar, amar sem morrer, sangrar sem doer... Tudo será possível àquele que cresceu selvagem, que o mundo não teve tempo hábil a gravar seus sortilégios de derrota no côncavo do peito nu. Ademais; existir é invariavelmente um assombro.” Desceu enfim até as catacumbas, ambicionando que de lá emergisse seu novo, se eterno incriado.

Chegando ao átrio, eis que então, crente e desavisado aquele ser de indiferença e esquecimento confronta seu legado. Para o próprio assombro, descobre que é ele. É ele duplicado!

*Leandro M. de Oliveira

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Cisma Primeva

Não há sentido nesse banquete de mentiras, espere um pouco, vou escalar as paredes pra urinar no telhado. Por quem é que me trocaram quando estava a acreditar que só a mudança cabal do “status quo” salvaria minha pele? Papai Noel é um porco capitalista e a medida dos sonhos é a de quanto se pode pagar por eles. Não há regras nem pudores. Então vamos calçar nossas botas de chumbo e pisotear o canteiro florido, ha mais estrume nessa terra do que em meu mundo concebia. Quero que você dance como uma bacante bêbada, vomite em mim, a revolta sou eu. Se quer salvar meu espírito é aqui que vai encontrá-lo, açaime meu corpo entre tuas pernas, possua minha carne com agressividade, nesse lugar repousa meu santuário. Invada-o! Ou deixe que os cães terminem sua valia. Quanto tempo faz não te vejo, quebrei os espelhos com fúria, ao ver que eles nunca traziam descobertas novas. O tempo tem sido líquido e esgarçado, como uma poça que seca lentamente. A cidade acordará, ela sempre desperta com aquele velho passo maquinal de fuligem e gente. Como passaram a sentir tanta aversão por si próprios? Que venha a sabedoria das coisas simples, para entender o mistério insondável de uma agressão mútua. “Amai o teu próximo como a ti mesmo”, palavras razoáveis para um messias mas, a grande morte exige uma motivação descente. Vamos derramar o nosso ódio contido, a besta nunca é escravizada, ou vive sob seus próprios ditames, ou morre em nome de sua ideologia. Ouvi notícias de um homem, era mais retido que um asceta e mais pacato que uma ovelha tosquiada, precocemente seus músculos atrofiaram e sua vida pereceu. Esse mundo é insano, se eu acreditasse na monogamia me acusariam de subversão. Queria estar com você todo o tempo, não posso ousar. Há ainda muitos botões por abrir antes que chegue a primavera. Tenho a vocação de um javali selvagem e o caos da noite primeira, não posso sorrir na fila do matadouro. Se soubesse, talvez escreveria um poema, como não sei, sigo ruminando os intermináveis dilemas até que a aurora violente o escudo da noite.
*Leandro M. de Oliveira

sábado, 12 de setembro de 2009

Solilóquio perdido

A boca seca, a boca cospe, a boca amarga o fel do dia. As mãos tem sangue, as veias ferrugem, o escuro incerteza, o mundo tem um oco. Pude muitas coisas, e agora com meu medo e minha esclerose, não sei mais como ousá-las. Ela estava aqui, ela ainda continua aqui, como um cão ou uma árvore. Acordei cedo pra tomar o desjejum, fui moço à cozinha antiga, achei-me a deglutir um pão mofado, quis caminhar até a padaria mas, havia esquecido meus pés. Quem me roubou de mim? As horas consumidas na fuligem de um quadro desbotado significam o mesmo que não ser coisa alguma. Tenho pena do que tenho sido, vem a mim, quero vomitar o antigo e copular o novo. Se meus sonhos me causarem indigestão acaso haveria antiácidos para isso? Vou morrer, ou viver um dia mais, que importa? O mundo não deu importo a essa querela? A lavra dos anos perdidos, a lavra do caminho não trilhado. Tenho vergonha de tanta covardia, tenho uma indiferença miserável. Se eu tivesse uma arma guardaria em segredo, se eu tivesse flores deixaria que murchassem sem colhê-las. Ela violentou a si mesma, assim como desde sempre, o bode expiatório sou eu. Eternamente culpado, eternamente em exílio, quando verei as luzes de Roma outra vez? Não sei, nunca sei conjeturar ânsias tão íntimas. Perdi as certezas e o alforje, o caminho e a vontade, perdi tudo quanto aos homens é aprazível, e mal percebi acontecer. O dilema das prostitutas sifilíticas, a dor silente dos homossexuais sem teto, os judeus matando palestinos... O mundo prossegue em suas tragédias ancestrais. Eu obtuso, não dei conta disso. As geleiras antárticas, a rota invisível do sal, cordilheiras líquidas que separam homens e ideações. As caravanas terminam todas no fundo do meu pátio de marfim. A casa é repleta, as sombras abrigam por longas horas. Noite mudada em manhã sem sol, noite nesse país é um evento perene. Os ecos batem à porta, donde estão aqueles que aqui habitavam? Partiram pra longe, partiram pra sempre... Que queres nobre peregrino? Há mais não informo, também tenho andado exterior a mim.
*Leandro M. de Oliveira

Liberdade (O impulso é externo?)

Pelo meu lado, digo que esta coisa é livre, que existe e age pela necessidade da sua natureza e é constrangida e determinada por uma outra a existir e a agir segundo uma modalidade precisa e determinada. Deus, por exemplo, existe livremente porque existe apenas pela necessidade da sua natureza. Vedes então que não sintuo a liberdade num decreto livre mas numa necessidade livre.
Mas regressemos às coisas criadas que, todas elas, são determinadas a existir e a agir segundo uma forma precisa e determinada. Uma pedra recebe de uma causa exterior que a atira, uma certa quantidade de movimento... todo o objeto singular é necessariamente determinado por qualquer causa exterior a existir e a agir segundo uma lei precisa e determinada...
Concebei agora, se quiserdes, que a pedra, enquanto se move, sabe e pensa que faz todo o esforço possível para continuar a mover-se. Este perdura, certamente, porque não tem consciência senão do seu esforço... julgará ser livre...
Tal é a liberdade humana que todos os homens se envaidecem de ter e que consiste em os homens serem conscientes dos seus desejos e ignorantes da causas que os determinam. É assim que uma criança julga desejar livremente o leite... Um ébrio julga dizer por decisão o que seguidamente quererá calar.

*Baruch de Espinoza

CANTO III

A ressurreição pagã. — Renascença.
— Prometeu desagrilhoado,
escalou o céu e matou os deuses.
O Olimpo doravante será na Terra.
— Prometeu libertador, revelando,
dominando e entregando aos
homens as forças prodigiosas
da natureza. A humanidade vai
libertar-se. Cada homem será um
deus.
*Guerra Junqueiro

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Vamos acordar a cidade (Estas livre?)

(...) Não há transformação, nem revolução, nem luta, nem caminho; já és o monarca de tua própria pele — tua liberdade inviolável espera para ser completada apenas pelo amor de outros monarcas: uma política de sonho, urgente como o azul do céu.
Para desfazer todos os direitos & hesitações ilusórios da história, é necessária a economia de uma lendária Idade da Pedra: xamãs ao invés de padres, bardos ao invés de senhores, caçadores ao invés de policiais, coletores dotados de preguiça paleolítica, gentis como sangue, saindo nus por aí ou pintados como pássaros, equilibrados na onda da presença explícita, o agora-e-sempre atemporal. Agentes do caos deitam olhares flamejantes sobre qualquer coisa ou pessoa capaz de prestar testemunho à sua condição, à sua febre de lux et voluptas. Estou desperto apenas naquilo que amo & desejo ao ponto do terror: todo o resto é apenas mobília coberta, anestesia cotidiana, merda na cabeça, tédio subreptiliano de regimes totalitários, censura banal & dor inútil. Avatares do caos agem como espiões, sabotadores, criminosos do amour fou, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, educados como bárbaros, esfolados por obsessões, desempregados, sensualmente tresloucados, lobos angelicais, espelhos para contemplação, olhos como flores, piratas de todos os signos & sentidos. Cá estamos nos arrastando pelas rachaduras nos muros da igreja estado escola & fábrica, todos os monólitos paranóides. Cortados da tribo por uma nostalgia furiosa, escavamos em busca de palavras perdidas, bombas imaginárias. O último feito possível é aquele que define a percepção em si, um invisível cordão dourado que nos conecta: dança ilegal nos corredores do tribunal. Se eu te beijasse aqui eles chamariam isso de ato de terrorismo: vamos então levar nossas pistolas para a cama & acordar a cidade à meia-noite, como bandidos bêbados celebrando com uma fuzilaria a mensagem do gosto do caos.

*Hakim Bey

Acontece na América

Às vezes duvido de que se tenha captado desde a “primavera democrática” latino-caribenha a verdadeira natureza e o papel dado neste “continente da esperança” pelo imperialismo estadunidense e o sub-imperialismo israelense, ao regime colombiano que preside Álvaro Uribe Vélez.

Tomara que tudo o relacionado com a instalação de cinco novas bases militares e o re-forçamento das outras dois existentes, possibilite valorar a profundidade o real significado desse Estado em governos e sociedades da nossa América.

# Essência e evolução do poder colombiano.

Trata-se de algo realmente funesto, nefasto, de alta periculosidade.
Esse regime não é somente uma das democracias representativas da direita tradicional.
Não é simplesmente um governo de direita.
Não é exclusivamente um regime pró-oligárquico e pró-imperialista.
Não é só uma ditadura encoberta por um manto democrático-eleitoral.

Nem sequer pode definir-se só como um governo sustentado em um Estado com forte vocação terrorista a respeito de tudo o que se lhe opõe.

É isso tudo e muito mais em quanto à sua gestão de poder dentro da sociedade colombiana e frente aos processos democrático-soberanos que se desenvolveram na atualidade em escala continental.

É um Estado-governo narco-paramilitar-terrorista, instrumentalizado e gerenciado por uma oligarquia feroz e voraz, por uma “classe política” mafiosa e por um generalato criminoso; apadrinhado por um imperialismo decadente e pentgonizado, impelido pelas suas próprias carências em planos de e operações de conquistas e reconquistas pela via militar; assistido, além do mais, pelas altas técnicas do terror sionista e estadunidense, e inspirado também em seus próprios ânimos agressivos e expansionistas.

É um poder montado sobre sessenta anos de guerra suja, de múltiplos exercícios terroristas e variadas misturas políticas com as máfias das drogas e seus cartéis paramilitares.

Rico na cultura do Norte, em práticas terríveis e em dinheiro sujo. Combinação das barbáries mais antigas com as técnicas guerreiras mais modernas e pós-modernas, estas últimas subministradas pelos EUA e Israel; mistura grotesca do picadinho de seres humanos com facões afiados e seu corte em fatias com moto-serras, de massacres próprios da idade média e da robotização da guerra suja. Amálgama granítica e aberrante de inúmeros métodos de terror e extermínio de fontes e épocas diversas



# Engendro pra dentro e pra fora

Sua malvada evolução se centrou primeiro no espaço territorial colombiano para enfrentar com supina crueldade a longa e heróica resistência civil e militar desse povo irmão; aferrada a oligarquia santanderista, a partidocracia tradicional e, sobretudo, o imperialismo estadunidense, ao seu domínio sobre uma vasta e rica região situada na entrada da apetecida Amazônia.

Mais tarde, –agora com maiores ímpetos que antes - esse engendro se sentiu cutucado pela necessidade de contra-restar o avanço do bolivarianismo e de sua formidável onda de transformações redentoras (Venezuela, Equador, Bolívia...), reforçando assim sua vocação sub-imperialista inspirada na experiência judeu-estadunidense no Meio Oriente.

O Estado colombiano, o poder oligárquico e pró-imperialista que o sustenta, o governo gangsteril que o administra, tem devindo não só em um conjunto despudoradamente opressor, punitivo, violento e agressivo contra sua própria sociedade e dentro de seu próprio território, senão ademais progressivamente estruturado como plataforma de agressão imperialista contra a “primavera democrática” continental e muito especialmente contra os processos libertadores da Venezuela, Equador, Bolívia... e os formidáveis movimentos sociais do Brasil e do Peru.

Plataforma do neosantanderismo decadente contra o neobolivarianismo em auge.

Plataforma em ultramar de um imperialismo senil, militarizado, em crise e carente de recursos naturais essências: petróleo, carvão, água, biodiversidade, minerais estratégicos... que apetece demais com gula insaciável.

Plataforma de agressão a partir de uma rede de bases militares estadunidenses encaminhadas a relançar o plano contra-revolucionário regional e o plano de ocupação militar da Amazônia, para o que, de imediato, se propõem tentar arrochar uma insurgência popular e uma resistência civil inquebrantáveis, reverter os processos transformadores na Venezuela, no Equador e na Bolívia, mudar a correlação de forças no Brasil em favor da direita dura e conter a possibilidade de virada à esquerda no Peru.

Plataforma de poderosas bases imperialistas, reforçadas por contingentes e unidades altamente especializadas procedentes das forças regulares dos EUA e dos corpos privatizados que serão localizados na Colômbia dotados de sofisticadas técnicas de guerra.

Plataforma também das forças autóctones muito volumosas e fanatizadas, experimentadas durante décadas em guerras de baixa e mediana intensidade. Agora com dupla tarefa: externa e interna, com muitas unidades paramilitares em processo de reativação e ampliação, e com um montão de recursos sujos disponíveis.

Isso não é qualquer uma coisa.

Isso é um verdadeiro engendro localizado precisamente na cabeça do Norte da América do Sul, exatamente onde se situa o vórtice da onda de mudanças à nova independência e à nova democracia.

O engendro de um imperialismo em fase de putrefação agressiva, decidido a operar agressivamente em pleno desenvolvimento desta crise mundial da civilização burguesa; de um imperialismo capaz de submeter aos seus desígnios e negócios militares inclusive à triunfante expressão do desejo de mudança em sua própria sociedade representada pessoalmente nas passadas eleições por Barack Obama.

Estamos agora ante um “bushismo” sem Bush, criador –antes de Obama e acompanhado de Obama- de um monstruoso engendro colombo-gringo dentro do cenário de um país não soberano, para agredir a soberania de terceiros.

Na calçada de enfrente isto requer de todos os esforços –tal e como está fazendo o comandante Chávez- para o fortalecimento e modernização dos exércitos das nações escolhidas como vítimas, através de convênios militares apropriados para tão delicadas circunstâncias (com a Rússia, a China...). Mas, exige, sobretudo de um desenho e uma preparação para a guerra de todo o povo (ou de todos os povos ameaçados) que dissuada aos agressores de seus planos de guerra ou lhe impeça impor-se se ousam desatá-la.

Porque ademais da importância e do valor relativo dos esforços para reduzir a enorme brecha tecnológica desde a lógica da guerra entre exércitos regulares, está demonstrado que só desde uma visão de guerra assimétrica, de resistência popular bolivariana (venezuelana, equatoriana, colombiana...) seria possível contra-restar, reduzir a efetividade e finalmente empantanar e inutilizar a enorme superioridade técnico-militar dessa superpotência já instalada mediante grandes bases de guerra na Colômbia.

# O uribismo é muito funcional ao engendro.

A esse engendro, cuja gestação data de bastante tempo atrás, tem lhe caído como luva a “liderança” fabricada de Álvaro Uribe Vélez, produto da podridão modernizada, informatizada e digitalizada destes tempos pós-modernos.

Ele e os seus tem substituído o partidarismo tradicional decadente.

Ex - sócio do narco-capo Pablo Escobar Gaviria, experto nas associações com o pára-militarismo e seus cartéis, carente de escrúpulos para favorecer seus massacres em alianças com um generalato feroz, inteligente por maldade, estudioso das gerências modernas, entreguista, audaz, hábil, agressivo, teatral, conhecedor das manobras mediáticas mais eficazes... tem lhe impresso corporativismo, eficiência, mística reacionária e neo-fascismo à gestão governamental colombiana. Sensível à chantagem desde Washington pelo seu passado e expert na chantagem dentro da sua “classe política”, tem todos os atributos para elevar-lhe a posição a esse engendro da re-colonização neoliberal.

Uribe é a nova cara política do monstro localizado no ambicionado paraíso amazônico, agora com papéis precisos indicados em nível nacional-colombiano, regional e mundial.

# O quê fazer com o engendro?

O quê fazer com este engendro anti-bolivariano, contra-revolucionário, contra-reformas, antidemocrático?
Tratá-lo com uma “democracia” porque no seu território se fazem “eleições” e existem instituições “eleitas”?
Considerá-lo como um “respeitável” Estado e um governo de um país irmão?
Tratá-lo como a um “bom vizinho”?
Como a um país soberano cujas decisões devem ser respeitadas?

Acredito ter chegado a hora de analisar as coisas com mais profundidade.

Tal engendro não deve ser tratado em função de suas simulações, nem desde as simples formalidades diplomáticas.

Esse engendro deve ser condenado, repudiado, isolado e politicamente acossado por todas as forças amantes da paz, a liberdade, a democracia, a justiça e a soberania. Estejam essas forças nos governos ou fora deles, sejam políticas, sociais, culturais ou religiosas, pensamos que elas deveriam dispor-se a derrotá-lo em suas duas versões: estatal e paraestatal.

As atrocidades do Estado narco-para-terrorista colombiano e do uribismo como tal devem ser profusamente difundidas em escala mundial por todos os meios possíveis.

Além de todas as formalidades institucionais e do seu próprio e enganoso formato liberal-representativo, esse regime é realmente oprobrioso; e seu presidente, que gosta tanto de qualificar aos seus adversários de “bandidos”, é uma espécie de gangster político hiper-modernizado.

Esse engendro deverias ser isolado desde o ponto de vista diplomático, econômico e político; tanto desde os governos e Estados com vocação revolucionária, progressista e democrática, como desde as organizações sociais, políticas, religiosas, culturais e artísticas de todos os países da região.

Está demonstrado que qualquer condescendência a ele se traduz em mais agressividade e perversidade de sua parte.

Há que contribuir para sua derrota por todas as vias e meios necessários, e isso implica em respaldar, acompanhar e aliar-nos a todas as forças, cívicas, políticas, político-militares, sociais, culturais, religiosas, movimentos étnicos que na Colômbia se opõem a esse engendro guerreirista.

Isso implica em confluir com as forças insurgentes e não insurgentes, de esquerda, populares, democráticas, progressistas decididas a produzir uma mudança política na Colômbia. Uma mudança que a liberte desse engendro e impeça novas agressões contra as novas democracias do continente.

# Convergência solidária com a Colômbia e Honduras

Honduras é ponto de partida de uma grande receita para as contra-reformas e contra-revoluções de novo tipo; e Colômbia é a plataforma sul-americana desse acionar contra a Venezuela, o Equador, a Bolívia, o Brasil... contra toda a primavera democrática continental.

A questão de Honduras ameaça de imediato a El Salvador e a Nicarágua e persegue estimular a revogação dos avanços na América Central e além, procurando à vez facilitar o Plano Puebla-Panamá (agora Puebla-Bogotá).

Já na Colômbia acontece o relançamento em escala maior do Plano Colômbia-Iniciativa Andina contra as possibilidades de mudanças nesse país, contra as mudanças políticas registradas na sua vizinhança e em favor da conversão desse país em uma grande plataforma de agressão militar contra outros países e processos do continente.

Sim há razões poderosas para clamar pelo isolamento e pela derrota do golpe de Estado e do governo de Pinochetti em Honduras, sobram os motivos para contribuir tenazmente aos esforços dirigidos a produzir o mais rapidamente possível uma mudança política democrática na Colômbia.

Não é questão para inibir-se pela simples formalidade institucional (embora isso tenha peso), senão de essências e problemas de fundo. Entre Honduras e a Colômbia –enquanto estado de terror e potencial contra-revolucionário oligárquico-imperialista-mafioso- se tem vantagens de uma sobre outras são muito a favor da Colômbia.

O passo dado por Uribe aceitando as bases militares estadunidenses no seu território não só coincide com o golpe em Honduras e com o reinício nesse país da era do Estado repressivo-terrorista, senão que é parte da mesma estratégia de re-colonização imperialista para voltar a submeter os países vizinhos que se lhe escapuliram das mãos e evitar mudanças progressistas em gestação em outras nações sul-americanas.

# Unidade revolucionária continental.

Vamos fazer o quê?

Resignar-nos a que Zelaya não possa retornar e a que o engendro colombiano siga crescendo em forma ominosa e perigosa?

Isto não é questão que deva decidir só o povo de Honduras ou só o povo da Colômbia, principais vítimas do relançamento da estratégia imperial que conta com o apoio aberto e/ou semi-encoberto dos governos da Colômbia, Panamá, Honduras, México e Peru, e com o apoio mais matreiro ou a atitude escorregadia ou timorata de outros Estados.

Acredito que seja momento para recolocar a estratégia das forças bolivarianas, morazanistas, martianas, guevaristas... do continente.

Penso que desde as grandes lideranças dos Estados e povos venezuelano, equatoriano, boliviano, cubano, nicaragüense, salvadorenho, uruguaio, brasileiro… há autoridade e influências para criar –junto a muitos outros, e sobretudo aos grandes, medianos e pequenos movimentos políticos, sociais, culturais, religiosos, étnicos, meio-ambientais, feministas –uma nova situação baseada em uma linha de denúncias, mobilizações, greves, protestas civilistas, cesse de relações, medidas de isolamento, rebeldias... capazes de debilitar ao máximo, acossar, cercar e derrotar os engendros oligárquico-mafioso-imperialista- colombiano e hondurenho.

Isso é possível. Só falta a vocação política para fazê-lo, sobretudo da parte das lideranças mais influentes na região e no mundo, e das forças com mais recursos e melhor posicionadas.

E é possível, sobretudo, se vai-se mais além dos acordos e espaços intergovernamentais e interestatais e se recorre ao poder dos povos e dos seus movimentos sociais e políticos coordenados, somando-lhe as capacidades logísticas institucionais e o poder mobilizador e carismático dos líderes estadistas.

Penso que é hora para uma grande convergência de Estados, governos, forças políticas e sociais não governamentais, povos empobrecidos, comunidades originárias... para propor-se desde uma atitude beligerante, mobilizadora, consistente e firme, isolar, acossar, e derrotar os regimes da Colômbia e de Honduras, peças chaves de uma parte da contra-ofensiva gringa instrumentalizada através de ambos os cenários ocupados.

Há que acompanhar as intervenções nos cenários governamentais multilaterais com uma linha de ação desde as bases da sociedade, desde a aliança das forças governamentais e não governamentais mais avançadas, desde os povos e suas expressões institucionais e não institucionais.

Tirar o uribismo do governo na Colômbia e derrotar esse engendro maior. Deslocar do poder os golpistas em Honduras e impedir a consolidação desse engendro menor. Relançar com vigor a campanha nenhum soldado ianque na nossa América, são ao meu entender tarefas atuais de primeira ordem e de sentido estratégico.

Não é hora para ambigüidades e meias-tintas. Empenhemo-nos em pressionar nessas direções e convencer aos nossos povos e à diversidade de suas forças condutoras dessa imperiosa necessidade.


(Viva la America Libre!)
*Por N. I. Conde. República. Dominicana
Fonte: www.desacato.info
Versão em português, Raul Fitipaldi, de América Latina Palavra Viva.