quarta-feira, 22 de julho de 2009

Mikhail Bakunin, o desengano ante o mundo

“Os homens acreditavam que o estabelecimento do sufrágio universal garantia a liberdade dos povos. Mas infelizmente esta era uma grande ilusão e a compreensão da ilusão, em muitos lugares, levou à queda e à desmoralização do partido radical. Os radicais não queriam enganar o povo, pelo menos assim asseguram as obras liberais, mas neste caso eles próprios foram enganados.
Eles estavam firmemente convencidos quando prometeram ao povo a liberdade através do sufrágio universal. Inspirados por essa convicção, eles puderam sublevar as massas e derrubar os governos aristocráticos estabelecidos. Hoje depois de aprender com a experiência, e com a política do poder, os radicais perderam a fé em si mesmos e em seus princípios derrotados e corruptos. Mas tudo parecia tão natural e tão simples: uma vez que os poderes legislativo e executivo emanavam diretamente de uma eleição popular, não se tornariam a pura expressão da vontade popular e não produziriam a liberdade e o bem estar entre a população?”

“O que é a autoridade? E a força inevitável das leis naturais que se manifestam no encadeamento e na sucessão fatal dos fenômenos do mundo físico e do mundo social? Efetivamente, contra estas leis, a revolta é não somente proibida, é também impossível. Podemos conhecê-las mal, ou ainda não conhecê-las, mas não podemos desobedecê-las porque elas constituem a base e as próprias condições de nossa existência: elas nos envolvem, nos penetram, regulam todos os nossos movimentos, pensamentos e atos; mesmo quando pensamos desobedecê-las, não fazemos outra coisa que manifestar sua onipotência."

*Mikhail Bakunin, trechos de "A Ilusão do Sufrágio Universal" e "Deus e o Estado"

terça-feira, 21 de julho de 2009

A Incrível Religião do Individualismo

Vivemos numa sociedade competitiva, de mercado, periférica ao capitalismo central, subdesenvolvida econômica e espiritualmente que só consegue encontrar "saídas" - raras, raríssimas - para indivíduos. E o indivíduo que consegue libertar-se, não raro desonestamente, de toda a opressão imposta, tende a reificá-la transformando-se em opressor também. E esta secular e perversa estrutura individualista se reproduz como um câncer, obliterando a razão, as emoções e os sentimentos das pessoas. Quer-se, acima de tudo, o "bem" para si próprio - seja lá o que for que isto signifique dentro de um contexto humano! Raramente se pensa ou se trabalha em prol da coletividade, e isso mesmo dentro do meio político, com situacionistas e oposicionistas acusando-se mutuamente de utilização privada do espaço público! Como regra geral as pessoas buscam individualmente uma saída qualquer para a escravidão, a miséria, a loucura em que o século XX se enfiou. Em sua luta individual pela libertação, o homem se esquece de fatores fundamentais, como o fato de haver mais gente em igual situação e a ação coletiva tenderia a ser muito mais eficaz que a busca solitária. Ou há liberdade para todos ou ela não existe de todo! As poucas liberdades individuais conseguidas em raríssimas ocasiões são aquelas em que o "prego" passa a ser martelo mas a pancadaria continua. Que "liberdade" é essa, afinal? Além desta loucura institucionalizada, há mais, talvez até em decorrência disto: clientelismo, analfabetismo, desemprego, frustrações, ignorância, prostituição, violência, miséria... Para onde se volte o olhar, vemos o mesmo quadro. Estamos devastando o mundo, agredimos a natureza e agredimos a nós mesmos ao agredirmos outras formas de expressão da natureza além da sociedade humana. A sociedade industrial encontra-se aparatada para estraçalhar a Vida, que, apesar de tudo, segue subversivamente existindo, vivendo, amando. O tremendo e quiçá inconsciente suicídio coletivo que a sociedade humana está em vias de cometer e foge à percepção da maioria é de tal modo absurdo que mal dá para acreditar! Desta maneira, encontrar uma forma de inserção social no mundo que agrida o menos possível o que de mais inocente e nobre existe em cada um é dificílimo, mas fundamental. O homem, já nos aponta José Carlos Mariátegui em O Homem e o Mito é um "animal metafísico": não se vive fecundamente sem uma concepção metafísica de vida. Estou convencido de que a forma de inserção no mundo que todos temos, como pulsão básica a reger nossas vidas, como uma alternativa ou probabilidade de saída da loucura é a religião em seu sentido mais sublime. Há a religião cristã, a muçulmana, a judaica, a hindu, a budista... Há também a "Incrível Religião do Individualismo" que, hoje, conglomera o maior número de seguidores jamais imaginado como possível! Enfim, quando os homens defendem seus pontos de vista frente a outros homens, freqüentemente utilizam-se do artifício de "disfarçar" o nome da proposta para não assustar seu ouvinte. Com a proliferação das seitas pseudo-cristãs, do tipo templo é dinheiro, há aqueles que pregam coisas como: "Não é religião, é Cristo!" Os defensores da incrível religião individualista apresentam-se, de fato, em seus discursos anti-humanistas como "defensores da livre-iniciativa". No ritualismo demente da Incrível Religião do Individualismo, o burguês médio acende uma vela para si mesmo e outra para Mammon. Aquele que, contra a natureza, correu sozinho até a liberdade, agrediu tanto a sua própria alma que hoje precisa de um "médico de almas". E a religião individualista apresenta orgulhosa seus novos sacerdotes: é o psicólogo, o psicanalista, o psiquiatra, psi... E o poder individual, o Führerprinzip da sociedade moderna encontra plenas justificativas aqui nestas novíssimas ciências. Ainda assim há o homem. O ser humano natural, sepultado debaixo de grossas camadas de hipocrisia com que se protege do seu próprio medo e do ódio dos demais. Por trás disso tudo não há mais que uma criança inocente, boa, alegre mas muito assustada. O homem natural busca satisfações naturais a seus anseios naturais. A cultura, saber coletivo, é tão natural para o homem quanto sua herança genético-bilógica. O desvio da cultura (saber coletivo) "para dentro" é tão incrivelmente despropositado quanto as guerras. Já temos tantos problemas na domesticação da natureza, na humanização das forças naturais que o desvio das considerações intelectuais humanas na direção da destruição tecnológica de outros seres humanos é, evidentemente, um despropósito! A criação ou o surgimento de uma cultura individualista é uma fantástica contradição, só crível porque existente. Pior: hegemônica! Urge superar a violência da sincrética religião burguesa/individualista e criar um mito novo, fundado no Amor, na livre imaginação, nos sonhos e na Verdade. Isto só pode fazer sentido, claro, numa atuação coletiva em busca de uma nova forma de convivência social que liberte os seres humanos do medo e do ódio, fundando novas formas de relacionamento que abalarão até os fundamentos de uma sociedade assim absurda! Na sociedade do futuro, fraternidade, liberdade, igualdade serão mais do que meras bandeiras levantadas por escassos idealistas ou mesmo por intelectuais que sequer conseguem sair da academia para a rua em busca de unir-se ao povo em suas justas reivindicações. Na sociedade do futuro, o bem-estar físico e mental de todos os seres humanos do planeta estará erguido à posição prática coletiva daquilo que se pode chamar, com licença da Teologia da Libertação, de Construção do Reino de Deus na Terra.
*Lázaro Curvêlo Chaves
**Gracias "Dona F"

A Desobediência Civil

Aceito com entusiasmo o lema "O melhor governo é o que menos governa"; e gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Leva­do às últimas conseqüências, este lema significa o seguinte, no que também creio: "O melhor governo é o que não governa de modo algum"; e, quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que terão. O governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser in­conveniente(...) O próprio governo, que é simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua vontade, está igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo que o povo possa agir através dele(...) Desta forma, os governos são a prova de como os homens podem ter sucesso no ato de oprimir em proveito próprio, não importando se a opressão se volta também contra eles. Devemos admitir que ele é excelente; no entanto, este governo em si mesmo nunca estimulou qualquer iniciativa a não ser pela rapidez com que se dispôs a não atrapalhar(...) No entanto, quero me pronunciar em termos práticos como cidadão, distintamente daqueles que se chamam antigovernistas: o que desejo imediatamente é um governo melhor, e não o fim do governo. Se cada homem expressar o tipo de governo capaz de ganhar o seu respeito, estaremos mais próximos de conseguir formá-lo. No final das contas, o motivo prático pelo qual se permite o governo da maioria e a sua continuidade - uma vez passado o poder para as mãos do povo - não é a sua maior tendência a emitir bons juízos, nem porque possa parecer o mais justo aos olhos da minoria, mas sim porque ela (a maioria) é fisicamente a mais forte. Mas um governo no qual prevalece o mando da maioria em todas as questões não pode ser baseado na justiça, mesmo nos limites da avaliação dos homens. Não será possível um governo em que a maioria não decida virtualmente o que é certo ou errado? No qual a maioria decida apenas aquelas questões às quais seja aplicável a norma da conveniência? Deve o cidadão desistir da sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então estará cada homem dotado de uma consciência? Na minha opinião devemos ser em primeiro lugar homens, e só então súditos. Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qual­quer momento aquilo que julgo certo. Costuma-se dizer, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com consciência. A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça. Um resultado comum e natural de um respeito indevido pela lei é a visão de uma coluna de soldados - coronel, capitão, cabos, combatentes e outros - marchando para a guerra numa ordem impecável, cruzando morros e vales, contra a sua vontade, e como sempre contra o seu senso comum e a sua consciência; por isso essa marcha é mui­to pesada e faz o coração bater forte. Eles sabem perfeitamente que estão envolvidos numa iniciativa mal­dita; eles têm tendências pacíficas. O que são eles, então? Chegarão a ser homens? Ou pequenos fortes e paióis móveis, a serviço de algum inescrupuloso detentor do poder? É só visitar o Estaleiro Naval e contemplar um fuzileiro: eis aí o tipo de homem que um governo norte-americano é capaz de fabricar - ou transformar com a sua magia negra -, uma sombra pálida, uma vaga recordação da condição humana, um cadáver de pé e vivo que, no entanto, se poderia considerar enterrado sob armas com acompanhamento fúnebre, embora possa acontecer que Desta forma, a massa de homens serve ao Esta­do não na sua qualidade de homens, mas sim como máquinas, entregando os seus corpos (...) Na maior parte dos casos não há qualquer livre exercício de escolha ou de avaliação moral; ao contrário, estes homens nivelam-se à madeira, à terra e às pedras; e é bem possível que se consigam fabricar bonecos de madeira com o mesmo valor de homens desse tipo. Não são mais respeitáveis do que um espantalho ou um monte de terra. Valem tanto quanto cavalos e cachorros. No entanto, é comum que homens assim sejam apreciados como bons cidadãos. Há outros, como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, funcionários e dirigentes, que servem ao Estado principalmente com a cabeça, e é bem provável que eles sirvam tanto ao Diabo quanto a Deus - sem intenção -, pois raramente se dispõem a fazer distinções morais. Há um número bastante reduzido que serve ao Estado também com a sua consciência; são os heróis, patriotas, mártires, reformadores e homens, que acabam por isso necessariamente resistindo, mais do que servindo; e o Estado trata-os geralmente como inimigos. Um homem sábio só será de fato útil como homem, e não se sujeitará à condição de "barro" a ser moldado para "tapar um buraco e cortar o vento”; ele preferirá deixar esse papel, na pior das hipóteses, para as suas cinzas.
*Henry David Thoreau
**A Desobediência Civil é o texto mais conhecido de Thoreau. Escrito em 1848 influenciou profundamente pessoas como Mahatma Gandhi, Leon Tolstoi, Martin Luther King e tantos outros. Muito à frente de seu tempo, sua defesa do Direito à Rebeldia esteve, desde sempre, a serviço da luta contra todas as formas de discriminação. Lutou contra a escravidão nos EUA, pelos direitos das mulheres, em defesa do meio-ambiente, contra a discriminação étnica e sexual. Como pacifista Radical (indo à Raiz do mal que combate) recusou-se a pagar impostos a um governo autoritário que fazia mais uma guerra predatória na qual roubou mais da metade do território mexicano – este ato Radical de Desobediência Civil lhe custou um tempo na cadeia que lhe foi útil a escrever e deixar para a posteridade seus pensamentos – muitas vezes, diria mesmo que na maior parte delas, o lutador pelo que é VERDADEIRAMENTE Justo e Perfeito só é reconhecido postumamente após uma vida eivada de dissabores. Questão de escolha. Há aqueles que não compactuam com a injustiça, a prepotência, a arrogância ou o roubo. Há os que se acomodam. Quem se acomoda, em geral, vive melhor mas, como dizia Leonardo Da Vinci, não passam de meros condutores de comida, não deixando rastro algum de sua passagem pelo mundo exceto latrinas cheias...

O Sonho

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

-Partimos. Vamos. Somos.
*Sebastião da Gama
**Força Cristina!!!!!!!

domingo, 19 de julho de 2009

Mineração do Outro

Os cabelos ocultam a verdade.
Como saber, como gerir um corpo alheio?
Os dias consumidos em sua lavra
significam o mesmo que estar morto.

Não o decifras, não, ao peito oferto,
monstruário de fomes enredadas,
ávidas de agressão, dormindo em concha.
Um togue, e eis que a blandícia erra em tormento,
e cada abraço tece além do braço
a teia de problemas gue existir
na pele do existente vai gravando.

Viver-não, viver-sem, como viver
sem conviver, na praça de convites?
Onde avanço, me dou, e o que é sugado
ao mim de mim, em ecos se desmembra;
nem resta mais que indício,
pelos ares lavados,
do gue era amor e, dor agora, é vício.

O corpo em si, mistério: o nu, cortina
de outro corpo, jamais apreendido,
assim como a palavra esconde outra
voz, prima e vera, ausente de sentido.
Amor é compromisso
com algo mais terrível do que amor?
pergunta o amante curvo à noite cega,
e nada lhe responde, ante a magia:
arder a salamandra em chama fria.
*Drummond de Andrade

segunda-feira, 13 de julho de 2009

As três irmãs do poeta

É noite! as sombras correm nebulosas.
Vão três pálidas virgens silenciosas
Através da procela irrequieta.
Vão três pálidas virgens... vão sombrias
Rindo colar num beijo as bocas frias ...

Na fronte cismadora do — Poeta —

"Saúde, irmão! Eu sou a Indiferença.
Sou eu quem te sepulta a idéia imensa,
Quem no teu nome a escuridão projeta...
Fui eu que te vesti do meu sudário...
Que vais fazer tão triste e solitário?. . ."

— "Eu lutarei!" — responde-lhe o Poeta.


"Saúde, meu irmão! Eu sou a Fome.
Sou eu quem o teu negro pão consome...
O teu mísero pão, mísero atleta!
Hoje, amanhã, depois... depois (qu'importa?)
Virei sempre sentar-me à tua porta. . ."

— "Eu sofrerei" — responde-lhe o Poeta.

"Saúde, meu irmão! Eu sou a Morte.

Suspende em meio o hino augusto e forte.
Marquei-te a fronte, mísero profeta!
Volve ao nada! Não sentes neste enleio
Teu cântico gelar-se no meu seio?!"

— "Eu cantarei no céu" — diz-lhe o Poeta!
*E. Berthoud, tradução de Castro Alves.

domingo, 12 de julho de 2009

É possivel ser dialético acerca da existência de "Deus"?

“Um princípio fundamental de muitos sistemas teológicos, tanto ocidentais como orientais, é o de que podemos ligar-nos diretamente e (absolutamente) com a coisa mais real: DEUS. Segundo estes sistemas, Deus é a realidade que subjaz à realidade de tudo, incluindo a realidade da experiência e do mundo exterior. Portanto, se a ciência não puder construir uma ponte entre a experiência e a realidade talvez a religião possa.

Poderá o conhecimento de que Deus existe fornecer a ponte necessária entre a experiência e a realidade - entre os nossos estados mentais subjetivos e o mundo exterior? Talvez. Mas só se soubermos que Deus existe. Muitas pessoas pensam que sabem que Deus existe. Mas podem estar enganadas - mesmo que Deus exista de fato. (...) a sua crença verdadeira pode não estar baseada em provas adequadas, mas antes em considerações irrelevantes. Para que uma crença seja conhecimento, tem não apenas de ser verdadeira mas também de satisfazer uma condição complementar.Um candidato plausível a tal condição é o fato de a crença ter de estar baseada em provas adequadas.

Assim, precisamos perguntar: existirão provas adequadas quanto à existência de Deus? Parece claro que existe: o Universo. O mero fato de o Universo existir sugere que o Universo deve ter surgido de algures. Tudo tem de vir de algures. As mesas, as cadeiras, as árvores e por aí fora, não se limitam a surgir do nada. As mesas e as cadeiras são feitas por pessoas, as árvores vêm das sementes e assim por diante. Também o Universo tem de vir de algum lado - teve de ter uma causa externa. Tudo tem de ter uma causa externa. E a única coisa que poderia ter causado o Universo é Deus.

Mas esta aparente resposta óbvia cria um problema igualmente óbvio: se tudo tem de vir de algures, de onde vem Deus? Talvez não tenhamos de explicar de onde vem Deus porque Deus, ao contrário do Universo, existe sem qualquer causa externa. Nesse caso, contudo, estamos a contradizer grosseiramente a própria hipótese de que tudo tem de vir de algures. Sem essa hipótese, a existência do Universo deixa de constituir uma prova a favor da existência de Deus.”
*Daniel Kolak e Raymond Martin in Sabedoria sem respostas.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Deus?

Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede?
*Epicuro

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Constanza Piaggio


Constanza Piaggio
é Arte contemporânea argentina!!!


Link externo:
http://www.constanzapiaggio.com.ar/swfs/index.html

AS MUSAS CEGAS VI

É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis..
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina
os meus espinhos frios, a lua que inclina
meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna.


Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas,
bate os seus martelos contra um milhão de estrelas.
É uma coisa estupenda a primavera que trabalha
nas caveiras dos cavalos enterrados.
E os cavalos ressuscitam pela noite adiante.
Inspiro-me na primavera com suas grutas de água
atenta, e amo a loucura -
a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror.


Tenho medo de erguer a voz mais alto
que o meu coração, onde uma candeia
concentra um grande silêncio.
A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato.
Que a tristeza me ajude, que me ajudem
os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos,
todos os mortos, todos os que amam
entre sangue no mundo, entre as águas das noites eternas.


Sinto os ossos ascenderem às cobras da cabeça -
e a obra está nas mãos.
Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem,
fundo-me no verbo interior da primavera
como o vermelho se funde na flor futura.
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte.
Cantavas o que já se não quebra com o uso
das vozes. Porque tu eras a minha
água salgada.


Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam
e a rutilação ascende pelas veias.
Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos.
Primavera, como cresces.


Desespero ou alegria, como correm
nos membros reaparecidos.
Dizer devagar na humidade da carne, evocar
tuas colinas de sal, mistério.
Tudo em volta da primavera e da noite
com uma porta no coração para passar
num tremendo silêncio.


Ressuscitar uma vez com a cara extrema
junto a líquenes inocentes.
Entre os meses saber de um só que pede
a mudez aterradora.
A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras
evaporam-se, reaparecem em espírito
mastigando giestas. Primavera é uma palavra
numa língua demasiado estrangeira.
Uma coisa enorme, sem música.


Falo tão devagar que mal distingo
a noite sobre a terra
da minha garganta onde os animais passam
lentamente inspirados.
Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes,
e o sangue alimenta a loucura
devagar, devagar - como quem ressuscita.

*Herberto Helder, in Ou O Poema Contínuo

A palavra "Arte" (considerações na acepção)

Para eliminar as ambigüidades associadas à palavra "arte" temos de olhar para a sua história. O sentido estético da palavra, o sentido que nos diz aqui respeito, é de origem muito recente. Ars em latim antigo, como em grego, quer dizer algo muito diferente. Quer dizer um ofício ou tipo especializado de competência, como a carpintaria ou a ferraria ou a medicina. Os gregos e os romanos não tinham concepção do que chamamos "arte" como algo diferente de um ofício; o que chamamos "arte" era por eles encarado meramente como um grupo de ofícios, como o ofício da poesia (ars poetica), que entendiam, por vezes sem dúvida com algumas apreensões, como em princípio precisamente como a carpintaria e tudo o resto, diferindo de cada um desses ofícios apenas do mesmo gênero de modo em que estes diferem entre si.
É difícil darmo-nos conta deste fato, e ainda mais difícil darmo-nos conta das suas implicações. Se as pessoas não têm uma palavra para um certo tipo de coisa, é porque não estão cientes dela como uma coisa distinta. Porque admiramos a arte dos gregos antigos, supomos naturalmente que eles a admiravam com o mesmo tipo de espírito que nós. Mas nós admiramo-la como um tipo de arte, carregando consigo a palavra "arte" todas as implicações sutis e elaboradas da consciência estética européia moderna. Podemos estar perfeitamente certos que os gregos não a admiravam desse modo. Abordavam-na de outro ponto de vista. Como o faziam, podemos talvez descobri-lo lendo o que pessoas como Platão escreveram sobre isso; mas não sem grandes dificuldades, porque a primeira coisa que qualquer leitor moderno faz, quando lê o que Platão tem a dizer sobre a poesia, é pressupor que Platão está a descrever uma experiência estética semelhante à nossa. A segunda coisa que faz é perder a paciência porque Platão a descreve tão mal. Com a maior parte dos leitores não há uma terceira fase.
Ars no latim medieval, assim como "arte" no inglês moderno primordial, que tomou de empréstimo tanto a palavra como o sentido, queria dizer qualquer forma especial de saber livresco, como a gramática ou a lógica, a magia ou a astrologia. É esse ainda o que quer dizer no tempo de Shakespeare: "repousa, minha arte", profere Próspero, pondo de lado a sua toga de mágico. Mas a renascença, primeiro em Itália e depois noutros países, restabeleceu o significado antigo; e os artistas renascentistas, como os do mundo antigo, encaravam-se na verdade a si mesmos como artífices. Não foi senão no séc. XVII que se começou a desenredar os problemas e concepções do estético dos do técnico ou da filosofia do ofício. No final do séc. XVIII, esse desenredar tinha sido tão completo que estabeleceu uma distinção entre as belas artes e as artes úteis; sendo que em inglês se chamava fine arts às primeiras, mas não no sentido de serem delicadas ou de exigirem habilidade, mas no sentido de serem belas (les beaux arts, le belle arti, die schöne Kunst). No séc. XIX esta expressão, abreviada eliminando o epíteto e generalizada substituindo o plural distributivo pelo singular, tornou-se "arte".
Neste ponto, a separação entre a arte e o ofício ficou completa, em termos teóricos. Mas só em termos teóricos. O novo uso da palavra "arte" é uma bandeira colocada no cume de uma montanha pelos primeiros conquistadores; não prova que o cume está efetivamente ocupado.

*R. G. Collingwood

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Sal da vida

Escuta que quero te falar em segredo
Escuta bem, quero falar baixo,
Porque o sussurro é tão mais belo que o grito
E a palavra dita com cuidado mais esmerada.
Ouve e guarda como um selo o que te digo.
Guarda em teu lembrar somente,
Porque o que direi não mudará nada,
Sequer a mim.
Escuta meu silêncio de planície,
Minhas mãos desertas, meu sonho perdido...
Nunca se muda aquilo que não se permitiu mudar.
Escravo caí de joelhos ante a rocha silenciosa
O oráculo hediondo se me afigurou,
E eu me vi moço e eu me vi desesperado.
Tempo tem seu próprio tempo,
E o tempo do tempo foi veloz demais
Para nosso passo vacilante.

Escuta as rugas de minha alma
Elas são vales e rios, montanhas e planícies.
Quero teu amor suicida!
Amor que se mata e torna a viver
E torna a sofrer e a morrer d’enganos.
Porque sob minhas asas
Não houve acomodação à tua dor,
E agora em meus olhos não há espaço
Senão para o teu vulto sorrateiro.
*********
Ignora minhas palavras, o verbo confunde.
Eu falo do não foi vivido ou do que tenha sido há tanto,
Que não foi possível nenhuma sinapse de lembrança.
Aguarda no silêncio das colinas sombrias,
No oco das cavernas que somos nós.
Quero escavar a terra com os dentes,
Tragar o mar com minha boca e estômago,
Quero estuprar o útero da terra
Pra que eu a veja renascer dele.
Minha memória é uma nau perdida
A navegar oceanos de tempo e espaço.

Minhas velas desfraldadas
Buscam a esmo teu norte,
Minha boca de pasmo e exaustão
Já não sabe dizer o teu nome.
*********
Agora que tudo se perdeu em nós
O mundo soa remoto,
O ar soa espesso.
Se eu fosse um cão
Talvez teria mais afeições com a vida.
Mas sou homem
E dessa deficiência estou fadado.
Minha eterna amiga,
Meu corpo sem vida,
Minha vida sem termo.
Embora o mundo seja desfigurado
Ante ao espelho, comigo sempre estás...

Escuta minhas palavras que não querem eco
Além do silêncio de tua ausência.
Escuta como a canção mais elevada
Como a dor de homem que homem não quer ser,
Como um beijo de fúria em teu peito
Resoluto.
Que essas palavras não valem nada,
Que essas palavras valem tudo.
Elas são o sal da língua
A semente da vida nova.

*Leandro M. de Oliveira
**Dedicado à minha grande amiga, dizem que partiu no dia 27 do último mês. Mas eu não entendo. Como pode estar ausente, se está dentro de mim? Não sei se posso crer na morte quando ainda existe tanta vida. Minha princesa atordoada, a você os meus carinhos e as minhas alegrias perdidas. Te encontro breve, te encontro sempre...

terça-feira, 7 de julho de 2009

O crer e o conhecer

"A Fé é diferente do conhecimento. Giordano Bruno acreditava e Galileu sabia. Exteriormente estavam ambos na mesma situação. O tribunal da Inquisição exigia, sob pena de morte, tanto a um como a outro que se retratassem. Giordano Bruno estava pronto a retratar certas proposições, mas não as que julgava essenciais; teve a morte dos mártires. Galileu retratou a doutrina do movimento da terra à volta do Sol, mas conta-se a sua exclamação significativa: "E no entanto ela move-se". É precisamente aí que reside a diferença: há uma verdade que sofre por ser retratada e há outra que nenhuma retratação consegue abalar. Os dois acusados agiram de acordo com o que consideravam ser a sua verdade. O que é para mim vital só existe quando me identifico com ele.É histórico quanto à sua aparição, não tem valor universal quanto à sua expressão objetiva, mas é absoluto.
A verdade que posso demonstrar subsiste sem mim: é universalmente válida, não histórica, independente do tempo, mas não é absoluta, visto que se subordina a hipóteses, aos métodos de conhecimento na relatividade do finito. Seria desproporcionado querer morrer por ela. Mas em compensação, para o pensador que acredita ter alcançado o fundo das coisas e não pode mais retratar as suas declarações sem atentar contra a própria verdade, o debate trava-se no segredo da sua consciência."

*Karl Jaspers, in "La foi philosophique"

O que é real?

Uma vez admitidos dois fatos: que o devir não tem fim e que não é dirigido por qualquer grande unidade na qual o indivíduo possa mergulhar totalmente como num elemento de valor supremo, resta só uma escapatória possível: condenar todo esse mundo do devir como ilusório e inventar um mundo situado no além, que seria o mundo verdadeiro. Mas, logo que o homem descobre que este mundo não é senão construído sobre as suas próprias necessidades psicológicas e que ele não é de nenhum modo obrigado a acreditar nele, vemos aparecer a última forma do niilismo, que implica a negação do mundo metafísico e que a si mesma se proíbe de crer num mundo verdadeiro. Alcançado este estado, reconhecemos que a realidade do devir é a única realidade e abstemo-nos de todos os caminhos afastados que conduziriam à crença em outros mundos e em falsos deuses - mas não suportamos este mundo que não temos já a vontade de negar.
(...) Que se passou portanto? Chegamos ao sentimento do não valor da existência quando compreendemos que ela não pode interpretar-se, no seu conjunto, nem com a ajuda do conceito de fim, nem com a do conceito de unidade, nem com a do conceito de verdade. Não chegamos a nada, não logramos coisa nenhuma dessa espécie; a unidade global não aparece na pluralidade do devir: o caráter da existência não é o de ser verdadeira, mas o de ser falsa (...) não há razão alguma para nos persuadirmos de que existe um mundo verdadeiro. (...) Em suma, as categorias de fim, de unidade, de ser, graças às quais demos um valor ao mundo, retiramo-lhas e o mundo parece ter perdido todo o valor.

*F. Nietzsche, de “A Vontade de Poder”.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Beleza, impulso e refúgio (Parte 1)

Desde sempre a humanidade é tiranizada pela busca da beleza, cada qual em sua leitura tem buscado entendê-la de maneira própria. A teoria dominante na antiguidade clássica provinha de Platão que propôs a beleza como um objeto com função dupla, ao mesmo tempo em que encerrava e convergia para si o afã do desejo era também um ponto de partida, pois a contemplação do belo era o que abria as portas para o transcendental. No medievo Tomás de Aquino, com uma leitura bem coerente à visão pudico-teológica da época produz um conceito de beleza ligado à idéia de uma dádiva de Deus manifesta em atributo do ser, assim era a beleza uma espécie elo teológico entre criador e criatura, fazendo o primeiro das últimas sua imagem e semelhança.
Decerto é a beleza bem mais que apenas uma tese continuadamente reformulada de acordo com o animus social de cada tempo, ela é deveras, uma espécie de inconsciente coletivo que habita o arcabouço do desejo humano, muitas vezes sendo a peça que delimita o seu direcionamento. Então o que se pretende em verdade com esse breve comentário, não é listar dados históricos de um conceito dominante de beleza, mas sim lançar uma pergunta, sendo essa a pergunta fundamental. Que lugar deve ela, a beleza, ocupar em nossas vidas?

Grandes teóricos tem debatido a questão visando formular um conceito estético-funcional adequado ao nosso tempo, porém, embora hajam muitas especulações, pouco se conclui a respeito. Particularmente quero crer na tese da beleza como um gatilho de acionamento do desejo, sendo ela uma espécie de combustível para a ação humana. Nesse sentido, seria lícito dizer que a vida converter-se-ia em algo que talvez não valesse tanto a pena viver, não fosse a beleza e o interesse (estímulo para a ação) que ela desperta. Não entenda o belo como algo meramente subjetivo, porém e mais acertadamente em forma de algum sentimento essencialmente abstrato, como o Platão ensinava na grande Atenas de outrora.

Esse mestre do mediterrâneo propunha um ponto de contemplação para a beleza, mas não encerrava na ação de culto visual àquela forma bela o único estágio da contemplação. Com efeito, era aquele ser idolatrado nada mais que um ponto de partida ou um gatilho de acionamento para a busca do aperfeiçoamento pessoal. Nesse foco poder-se-ia justificar o zelo do mestre para com seu pupilo e vise-versa na pederastia ateniense por exemplo. Há também passagens na literatura universal das quais gosto muito que refletem o sentimento de zelo dado ao ser que se presta culto, como em “A Morte em Veneza” de Thomas Mann onde o autor apresenta um determinismo obstinado sofrido por Gustav Aschenbach quando descobre a peste que prolifera em Veneza e quer a todo custo resguardar Tadzio, seu ser idolatrado, do contágio da mesma.

Todavia, trazendo o foco para formas mais cotidianas a nós, pode-se citar o caráter de busca da beleza como um exercício de elevação pessoal na situação muito comum onde por exemplo, um homem se apaixona pela imagem de uma mulher e para chegar até ela tenta se melhorar como um todo, idealizando algo de mais elevado naquele ser e buscando evoluir em pontos difusos para se equiparar a ele. O homem então passa a praticar exercícios para melhorar seu físico, a ler poemas ou algo de literatura para fecundar idéias mais sensíveis em seu subconsciente, etc. Com isso vem a segunda fase (insuspeitada) que é onde tudo fica mais abstrato, aquele homem antes sedentário toma gosto pela atividade física e torna-se com isso mais saudável, o antes extremamente racional e frio aprende a ser menos calculista e a ver a beleza dispersa pelo mundo, num por do sol, numa flor ou no rosto puro de uma criança, aprende o sentido de sensibilidade no conceito lato de ser-humano. Se o intento inicial de conquistar a mulher é ora conseguido ou não, no bojo da conjuntura isso tem papel de sorte incidental, a coisa em si é, com efeito, o grau de sublimação que aquele momento de frenesi causou.

Não há como negar, o impacto da beleza é sentido por todos, lembro de quando li meu primeiro livro por volta dos nove anos mais ou menos, era o “Livro de Sonetos” do Vinícius de Moraes, as palavras, a textura, o cheiro do papel, a densidade do ar naquela pequena biblioteca do colégio... É tudo tão presente em minha memória, como se tivesse sido ontem. Aquela experiência me impactou de uma forma que quando dei por mim era já um compulsivo por poesia, daquele momento até muitos anos depois. A descoberta de Vinícius, Pessoa, Bandeira, Quintana, Cecília e assim por diante, tenho certeza me protegeram de muitas coisas tão menos ou nada edificantes a que qualquer adolescente desses tempos está exposto. O milagre da força do belo se fez em mim. Não cabiam estereótipos, meias intenções ou qualquer outra tentativa de caricaturização intelectual. Naqueles anos eu não buscava a leitura como forma de justificar alguma superioridade ou de obtenção poder por força dela, a beleza contida nas palavras era a meu ver auto-suficiente. Como tenho sentido falta daqueles anos...


*Leandro M. de Oliveira
**Esse comentário breve não encerra a nossa discussão acerca da beleza, em breve postarei novas considerações para se somarem a essas.