terça-feira, 30 de setembro de 2008

Coisas do porão. A Bíblia?



Descobertas recentes da arqueologia indicam que a maior parte das escrituras sagradas não passam de lenda 


por Vinícius Romanini
Para a Revista SuperInteressante 

A disputa entre ciência e religião pela posse da verdade é antiga. No Ocidente, começou no século XVI, quando Galileu defendeu a tese de que a Terra não era o centro do Universo. Essa primeira batalha foi vencida pela Igreja, que obrigou Galileu a negar suas idéias para não ser queimado vivo. Mas o futuro dessa disputa seria diferente: pouco a pouco, a religião perdeu a autoridade para explicar o mundo. Quando, no século XIX, Darwin lançou sua teoria sobre a evolução das espécies, contra a idéia da criação divina, o fosso entre ciência e religião já era intransponível. Nas últimas décadas, a Bíblia passou a ser alvo de ciências como a filologia (o estudo da língua e dos documentos escritos), a arqueologia e a história. E o que os cientistas estão provando é que o livro mais importante da história é, em sua maior parte, uma coleção de mitos, lendas e propaganda religiosa. 

Primeiro livro impresso por Guttemberg, no século XV, e o mais vendido da história, a Bíblia reúne escritos fundamentais para as três grandes religiões monoteístas - Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Na verdade, a Bíblia é uma biblioteca de 73 livros escritos em momentos históricos diferentes. O Velho Testamento, aceito como sagrado por judeus, cristãos e muçulmanos, é composto de 46 livros que pretendem resumir a história do povo hebreu desde o suposto chamamento de Abraão por Deus, que teria ocorrido por volta de 1850 a.C., até a conquista da Palestina pelos exércitos de Alexandre Magno e as revoltas do povo judeu contra o domínio grego, por volta de 300 a.C. Os 27 livros do Novo Testamento abarcam um período bem menor: cerca de 70 anos que vão do nascimento de Jesus à destruição de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C. 

O coração do Velho Testamento são os primeiros cinco livros, que compõem a Torá do Judaísmo (a palavra significa "lei", em hebraico). Em grego, o conjunto desses livros recebeu o nome de Pentateuco ("cinco livros"). São considerados os textos "históricos" da Bíblia, porque pretendem contar o que ocorreu desde o início dos tempos, inclusive a criação do homem - que, segundo alguns teólogos, teria ocorrido em 5000 a.C. O Pentateuco inclui o Gênesis (o "livro das origens", que narra a criação do mundo e do homem até o dilúvio universal), o Êxodo (que narra a saída dos judeus do Egito sob a liderança de Moisés) e os Números (que contam a longa travessia dos judeus pelo deserto até a chegada a Canaã, a terra prometida). 

Das três ciências que estudam a Bíblia, a arqueologia tem se mostrado a mais promissora. "Ela é a única que fornece dados novos", diz o arqueólogo israelense Israel Finkelstein, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel Aviv e autor do livro The Bible Unearthed (A Bíblia desenterrada, inédito no Brasil), publicado no ano passado. A obra causou um choque em estudiosos de arqueologia bíblica, porque reduz os relatos do Antigo Testamento a uma coleção de lendas inventadas a partir do século VII a.C.
O Gênesis, por exemplo, é visto como uma epopéia literária. O mesmo vale para as conquistas de David e as descrições do império de Salomão. 

A ciência também analisa os textos do Novo Testamento, embora o campo de batalha aqui esteja muito mais na filologia. A arqueologia, nesse caso, serve mais para compor um cenário para os fatos do que para resolver contendas entre as várias teorias. O núcleo central do Novo Testamento são os quatro evangelhos. A palavra evangelho significa "boa nova" e a intenção desses textos é clara: propagandear o Cristianismo. Três deles (Mateus, Marcos e Lucas) são chamados sinóticos, o que pode ser traduzido como "com o mesmo ponto de vista". Eles contam a mesma história, o que seria uma prova de que os fatos realmente aconteceram. Não é tão simples. O problema central do Novo Testamento é que seus textos não foram escritos pelos evangelistas em pessoa, como muita gente supõe, mas por seus seguidores, entre os anos 60 e 70, décadas depois da morte de Jesus, quando as versões estavam contaminadas pela fé e por disputas religiosas. 

Nessa época, os cristãos estavam sendo perseguidos e mortos pelos romanos, e alguns dos primeiros apóstolos, depois de se separarem para levar a "boa nova" ao resto do mundo, estavam velhos e doentes. Havia, portanto, o perigo de que a mensagem cristã caísse no esquecimento se não fosse colocada no papel. Marcos foi o primeiro a fazer isso, e seus textos serviram de base para os relatos de Mateus e Lucas, que aproveitaram para tirar do texto anterior algumas situações que lhes pareceram heresias. "Em Marcos, Jesus é uma figura estranha que precisa fazer rituais de magia para conseguir um milagre", afirma o historiador e arqueólogo André Chevitarese. 

Para tentar enxergar o personagem histórico de Jesus através das camadas de traduções e das inúmeras deturpações aplicadas ao Novo Testamento, os pesquisadores voltaram-se para os textos que a Igreja repudiou nos primeiros séculos do Cristianismo. Ignorados, alguns desapareceram. Mas os fragmentos que nos chegaram tiveram menos intervenções da Igreja ao longo desses 2 000 anos. Parte desses evangelhos, chamados "apócrifos" (não se sabe ao certo quem os escreveu), fazem parte de uma biblioteca cristã do século IV descoberta em 1945 em cavernas do Egito. Os evangelhos estavam escritos em língua copta (povo do Egito). 

O fato de esses textos terem sido comprovadamente escritos nos primeiros séculos da era cristã não quer dizer que eles sejam mais autênticos ou contenham mais verdades que os relatos que chegaram até nós como oficiais. Pelo contrário, até. Os coptas, que fundariam a Igreja cristã etíope, foram considerados hereges, porque não aceitavam a dupla natureza de Jesus (humana e divina). Para eles, Jesus era apenas divino e os textos apócrifos coptas defendem essa versão. Mesmo assim, eles trazem pistas para elucidar os fatos históricos. 

A tentativa de entender o Jesus histórico buscando relacioná-lo a uma ou outra corrente religiosa judaica também foi infrutífera, como ficou demonstrado no final da tradução dos pergaminhos do Mar Morto, anunciada recentemente. Esses papéis, achados por acaso em cavernas próximas do Mar Morto, em 1947, criaram a expectativa de que pudesse haver uma ligação entre Jesus e os essênios, uma corrente religiosa asceta, cujos adeptos viviam isolados em comunidades purificando-se à espera do messias. O fim das traduções indica que não há qualquer ligação direta entre Jesus e os essênios, a não ser a revolta comum contra a dominação romana. 

O resultado é que, depois de dois milênios, parece impossível separar o verdadeiro do falso no Novo Testamento. O pesquisador Paul Johnson, autor de A História do Cristianismo, afirma que, se extrairmos, de tudo o que já se escreveu sobre Jesus, só o que tem coerência histórica e é consenso, restará um acontecimento quase desprovido de significado. "Esse 'Jesus residual' contava histórias, emitiu uma série de ditos sábios, foi executado em circunstâncias pouco claras e passou a ser, depois, celebrado em cerimônia por seus seguidores." 

O que sabemos com certeza é que Jesus foi um judeu sectário, um agitador político que ameaçava levantar os dois milhões de judeus da Palestina contra o exército de ocupação romano. Tudo o mais que se diz dele precisa da fé para ser tomado como verdade. Assim como aconteceu com Moisés, David e Salomão do Velho Testamento, a figura de Jesus sumiu na névoa religiosa.

O Dilúvio 

O Gênesis, a história do dilúvio é uma das poucas que ainda alimenta o interesse dos cientistas, depois que os físicos substituíram a criação do mundo pelo Big Bang e Darwin substituiu Adão pelos macacos. O que intrigou os pesquisadores foi o fato de uma história parecida existir no texto épico babilônico de Gilgamesh - o que sugere que uma enchente de enormes proporções poderia ter acontecido no Oriente Médio e na Ásia Menor. Parte do mistério foi solucionado quando os filólogos conseguiram demonstrar que a narrativa do Gênesis é uma apropriação do mito mesopotâmico. "Não há dúvida de que os hebreus se inspiraram no mito de Gilgamesh para contar a história do dilúvio", afirma Rafael Rodrigues da Silva, professor do Departamento de Teologia da PUC de São Paulo, especialista na exegese do Antigo Testamento. 

O povo hebreu entrou em contato com o mito de Gilgamesh no século VI a.C. Em 598 a.C., o rei babilônico Nabucodonosor, depois de conquistar a Assíria, invadiu e destruiu Jerusalém e seu templo sagrado. No ano seguinte, os judeus foram deportados para a Babilônia como escravos. O chamado exílio babilônico durou 40 anos. Em 538 a.C., Ciro, o fundador do Império Persa, depois de submeter a Babilônia permitiu o retorno dos judeus à Palestina. Os rabinos ou "escribas" começaram a reconstruir o Templo e a reescrever o Gênesis para, de alguma forma, dar um sentido teológico à terrível experiência do exílio. Assim, a ameaça do dilúvio seria uma referência à planície inundável entre os rios Tigre e Eufrates, região natal de Nabucodonosor; os 40 dias de chuva seriam os 40 anos do exílio; e a aliança final de Deus com Noé, marcada pelo arco-íris, uma promessa divina de que os judeus jamais seriam exilados. 

Solucionado o mistério do dilúvio na Bíblia, continua o da sua origem no texto de Gilgamesh. No final da década de 90, dois geólogos americanos da Universidade Columbia, Walter Pittman e Willian Ryan, criaram uma hipótese: por volta do ano 5600 a.C., ao final da última era glacial, o Mar Mediterrâneo havia atingido seu nível mais alto e ameaçava invadir o interior da Ásia na região hoje ocupada pela Turquia, mais precisamente a Anatólia. Num evento catastrófico, o Mediterrâneo irrompeu através do Estreito de Bósforo, dando origem ao Mar Negro como o conhecemos hoje. Um imenso vale de terras férteis e ocupado por um lago foi inundado em dois ou três dias. 

Os povos que ocupavam os vales inundados tiveram que fugir às pressas e o mais provável é que a maioria tenha morrido. Os sobreviventes, porém, tinham uma história inesquecível, que ecoaria por milênios. Alguns deles, chamados ubaids, atravessaram as montanhas da Turquia e chegaram à Mesopotâmia, tornando-se os mais antigos ancestrais de sumérios, assírios e babilônios. Estaria aí a origem da narrativa de Gilgamesh. Essa teoria foi recebida por arqueólogos e antropólogos como fantástica demais para ser verdadeira. 

No entanto, no verão de 2000, o caçador de tesouros submersos Robert Ballard, o mesmo que encontrou os restos do Titanic, levou suas poderosas sondas para analisar o fundo do Mar Negro nas proximidades do que deveriam ser vales de rios antes do cataclisma aquático. Ballard encontrou restos de construções primitivas e a análise da lama colhida em camadas profundas do oceano provaram que, há 7 600 anos, ali existia um lago de água doce. A hipótese do grande dilúvio do Mar Negro estava provada. 

O Êxodo

Não há registro arqueológico ou histórico da existência de Moisés ou dos fatos descritos no Êxodo. A libertação dos hebreus, escravizados por um faraó egípcio, foi incluída na Torá provavelmente no século VII a.C., por obra dos escribas do Templo de Jerusalém, em uma reforma social e religiosa. Para combater o politeísmo e o culto de imagens, que cresciam entre os judeus, os rabinos inventaram um novo código de leis e histórias de patriarcas heróicos que recebiam ensinamentos diretamente de Jeová. Tais intenções acabaram batizadas de "ideologia deuteronômica", porque estão mais evidentes no livro Deuteronômio. A prova de que esses textos são lendas estaria nas inúmeras incongruências culturais e geográficas entre o texto e a realidade. Muitos reinos e locais citados na jornada de Moisés pelo deserto não existiam no século XIII a.C., quando o Êxodo teria ocorrido. Esses locais só viriam a existir 500 anos depois, justamente no período dos escribas deuteronômicos. Também não havia um local chamado Monte Sinai, onde Moisés teria recebido os Dez Mandamentos. Sua localização atual, no Egito, foi escolhida entre os séculos IV e VI d.C., por monges cristãos bizantinos, porque ele oferecia uma bela vista. Já as Dez Pragas seriam o eco de um desastre ecológico ocorrido no Vale do Nilo quando tribos nômades de semitas estiveram por lá. 

Vejamos agora o caso de Abraão, o patriarca dos judeus. Segundo a Bíblia, ele era um comerciante nômade que, por volta de 1850 a.C., emigrou de Ur, na Mesopotâmia, para Canaã (na Palestina). Na viagem, ele e seus filhos comerciavam em caravanas de camelos. Mas não há registros de migrações de Ur em direção a Canaã que justifiquem o relato bíblico e, naquela época, os camelos ainda não haviam sido domesticados. Aqui também há erros geográficos: lugares citados na viagem de Abraão, como Hebron e Ber-
sheba, nem existiam então. Hoje, a análise filológica dos textos indica que Abraão foi introduzido na Torá entre os séculos VIII e VII a.C. (mais de 1 000 anos após a suposta viagem). 

Então, como surgiu o povo hebreu? Na verdade, hebreus e canaanitas são o mesmo povo. Por volta de 2000 a.C., os canaanitas viviam em povoados nas terras férteis dos vales, enquanto os hebreus eram nômades das montanhas. Foi o declínio das cidades canaanitas, acossadas por invasores no final da Idade do Bronze (300 a.C. a 1000 a.C.), que permitiu aos hebreus ocupar os vales. Segundo a Bíblia, os hebreus conquistaram Canaã com a ajuda dos céus: na entrada de Jericó, o exército hebreu toca suas trombetas e as muralhas da cidade desabam, por milagre. Mas a ciência diz que Jericó nem tinha muralhas nessa época. A chegada dos hebreus teria sido um longo e pacífico processo de infiltração. 

David e Salomão

Há pouca dúvida de que David e Salomão existiram. Mas há muita controvérsia sobre seu verdadeiro papel na história do povo hebreu. A Bíblia diz que a primeira unificação das tribos hebraicas aconteceu no reinado de Saul. Seu sucessor, David, organizou o Estado hebraico, eliminando adversários e preparando o terreno para que seu filho, Salomão, pudesse reinar sobre um vasto império. O período salomônico (970 a.C. a 930 a.C.) teria sido marcado pela construção do Templo de Jerusalém e a entronização da Arca da Aliança em seu altar.
Não há registros históricos ou arqueológicos da existência de Saul, mas a arqueologia mostra que boa parte dos hebreus ainda vivia em aldeias nas montanhas no período em que ele teria vivido (por volta de 1000 a.C.) - assim, Saul seria apenas um entre os muitos líderes tribais hebreus. Quanto a David, há pelos menos um achado arqueológico importante: em 1993 foi encontrada uma pedra de basalto datada do século IX a.C. com escritos que mencionam um rei David. 

Por outro lado, não há qualquer evidência das conquistas de David narradas na Bíblia, como sua vitória sobre o gigante Golias. Ao contrário, as cidades canaanitas mencionadas como destruídas por seus exércitos teriam continuado sua vida normalmente. Na verdade, David não teria sido o grande líder que a Bíblia afirma. Seu papel teria sido muito menor. Ele pode ter sido o líder de um grupo de rebeldes que vivia nas montanhas, chamados apiru (palavra de onde deriva a palavra hebreu) - uma espécie de guerrilheiro que ameaçava as cidades do sul da Palestina. Quanto ao império salomônico cantado em verso e prosa na Torá hebraica, a verdade é que não foram achadas ruínas de arquitetura monumental em Jerusalém ou qualquer das outras cidades citadas na Bíblia. 

O principal indício de que as conquistas de David e o império de Salomão são, em sua maior parte, invenções é que, no período em que teriam vivido, a arqueologia prova que a cultura canaanita (que, segundo a Bíblia, teria sido destruída) continuava viva. A conclusão é que David e Salomão teriam sido apenas pequenos líderes tribais de Judá, um Estado pobre e politicamente inexpressivo localizado no sul da Palestina. 

Na verdade, o grande momento da história hebraica teria acontecido não no período salomônico, mas cerca de um século mais tarde. Entre 884 e 873 a.C., foi fundada Samária, a capital do reino de Israel, no norte da Palestina, sob a liderança do rei israelita Omri. Enquanto Judá permanecia pobre e esquecida no sul, os israelitas do norte faziam alianças com os assírios e viviam um período de grande desenvolvimento econômico. A arqueologia demonstrou que os monumentos normalmente atribuídos a Salomão foram, na verdade, erguidos pelos omridas. Ou seja: o primeiro grande Estado judaico não teve a liderança de Salomão, e sim dos reis da dinastia omrida. 

Enriquecido pelos acordos comerciais com Assíria e Egito, o rei Ahab, filho de Omri, ordena a construção dos palácios de Megiddo e as muralhas de Hazor, entre outras obras. Hoje, os restos arqueológicos desses palácios e muralhas são o principal ponto de discórdia entre os arqueólogos que estudam a Torá. Muitos ainda os atribuem a Salomão, numa atitude muito mais de fé do que de rigor científico, já que as datações mais recentes indicam que Salomão nunca ergueu palácios. 

Judá

Entender a história de Judá é fundamental para entender todo o Velho Testamento. Até o século VIII a.C., Judá era apenas uma reunião de tribos vivendo numa região desértica do sul da Palestina. Em 722 a.C., porém, os assírios resolvem conquistar as ricas planícies e cidades de Israel - o reino do norte, mais desenvolvido economicamente e mais culto. Judá, no sul, que não pareceu interessar aos assírios, pôde continuar independente, desde que pagasse tributos ao império assírio. 

Assim, enquanto no norte acontece uma desintegração dos hebreus, levados para a Assíria como escravos, no sul eles continuam unidos em torno do Templo de Jerusalém. Judá beneficiou-se enormemente da destruição do reino do norte. Jerusalém cresceu rapidamente e cidades como Lachish, que servia de passagem antes de chegar a Jerusalém, foram fortificadas. Era o momento de Judá tomar a frente dos hebreus. Para isso, precisaria de duas coisas: um rei forte e um arsenal ideológico capaz de convencer as tribos do norte de que Judá fora escolhida por Deus para unir os hebreus. Além disso, era preciso combater o politeísmo que voltava a crescer no norte. 

Josias foi o candidato a assumir a posição de rei unificador. Durante uma reforma no Templo de Jerusalém, em seu governo, foi "encontrado" (na verdade, não há dúvidas de que o livro foi colocado ali de propósito) o livro Deuteronômio, com todos os ingredientes para um ampla reforma social e religiosa. O livro possui até profecias que afirmam, por exemplo, que um rei chamado Josias, da casa de David, seria escolhido por Deus para salvar os hebreus. Ungido pelo relato do livro, o ardiloso Josias consegue seu objetivo de centralizar o poder, mas acaba morto em batalha. Judá revolta-se contra os assírios e o rei da Assíria, Senaqueribe, invade a região, destruindo Lachish e submetendo Jerusalém. A destruição de Lachish, narrada com riqueza de detalhes na Bíblia, também aparece num relevo encontrado em Nínive, a antiga capital assíria. E as escavações comprovaram que a Bíblia e o relevo são fiéis ao acontecido. Ou seja: nesse caso, a arqueologia provou que a Torá foi fiel aos fatos. 

Jesus

Segundo o Novo Testamento, Jesus nasceu em Belém, uma cidadezinha localizada oito quilômetros ao sul de Jerusalém, filho do carpinteiro José e de uma jovem chamada Maria, que o concebeu sem macular sua virgindade. Os evangelhos de Lucas e Mateus afirmam que Jesus nasceu "perto do fim do reino de Herodes". O texto de Lucas afirma que a anunciação aconteceu em Nazaré, onde José e Maria viviam, mas eles foram obrigados a viajar até Belém pelo censo "ordenado quando Quirino era governador da Síria". 

Hoje, o que se sabe de concreto sobre Jesus é que ele nasceu na Palestina, provavelmente no ano 6 a.C., ao final do reinado de Herodes Antibas (que acabou em 4 a.C.). A diferença entre o nascimento real de Jesus e o ano zero do calendário cristão se deve a um erro de cálculo. No século VI, quando a Igreja resolveu reformular o calendário, o monge incumbido de fazer os cálculos cometeu um erro. Além disso, é praticamente certo que Jesus nasceu em Nazaré e não em Belém. A explicação que o texto de Lucas dá para a viagem de Jesus até Belém seria falsa. Os registros romanos mostram que Quirino (aquele que teria feito o censo que obrigou a viagem a Belém) só assumiu no ano 6 d.C. - 12 anos depois do ano de nascimento de Jesus. A história da viagem a Belém foi criada porque a tradição judaica considerava essa cidade o berço do rei David - e o messias deveria ser da linhagem do primeiro rei dos judeus. 

A concepção imaculada de Maria é um dos dogmas mais rígidos da Igreja, mas nem sempre foi um consenso entre os cristãos. Alguns textos apócrifos dos séculos II e III sugerem que Jesus é fruto de uma relação de Maria com um soldado romano. A menina Maria teria 12 anos quando concebeu Jesus. Na rígida tradição judaica, uma mulher que engravidasse assim poderia ser condenada à morte por apedrejamento. O velho carpinteiro José, provavelmente querendo poupar a menina, casou-se com ela e escondeu sua gravidez até o nascimento do bebê. A data de 25 de dezembro não está na Bíblia. É uma criação também do século VI, quando o calendário foi alterado. 

A Bíblia afirma que Jesus teve duas irmãs e quatro irmãos: Tiago, Judas, José e Simão. Mas não se sabe se esses eram filhos de Maria ou de um primeiro casamento de José. Muitos teólogos afirmam que eles eram, na verdade, primos de Jesus - em aramaico, irmão e primo são a mesma palavra. A Bíblia não fala quase nada sobre a infância e a adolescência de Jesus, com exceção de uma passagem em que, aos 12 anos, numa visita ao Templo de Jerusalém durante a Páscoa, seus pais o encontram discutindo teologia com os sábios nas escadarias do templo do monte. É quase certo, porém, que ele cresceu em Nazaré. 

Jesus falava certamente o aramaico, a língua corrente da Palestina e, provavelmente, entendia o hebreu por ter tomado lições na sinagoga e por ler a Torá. Os evangelhos apócrifos o pintam como um menino Jesus travesso, capaz de dar vida a figuras de barro para impressionar os colegas e até mesmo a fulminar um menino que esbarrou em seu ombro, para ressuscitá-lo logo em seguida, depois de tomar uma bronca do pai. 

Certamente José procurou iniciá-lo na arte da carpintaria e é provável que Jesus tenha trabalhado como carpinteiro durante um bom tempo. Oportunidade não lhe faltou. Escavações recentes revelaram que ao mesmo tempo em que Jesus crescia em Nazaré, bem próximo era construída a monumental cidade de Séfores, idealizada por Herodes Antibas para ser a capital da Galiléia. Séfores estava a uma hora a pé de Nazaré e é muito provável que José e Jesus tenham trabalhado ali. Em Séfores Jesus teria visto a passagem da família real de Herodes Antibas e a opulência das famílias de sacerdotes do Templo de Jerusalém. O fato de Jesus ter passado boa parte da sua vida ao lado de Séfores indicaria que ele não era um camponês rústico como já se pensou, mas tinha contato com a cultura do mundo helênico. 

Aos 30 anos, Jesus se fez batizar por João Batista nas margens do rio Jordão. Segundo a Bíblia, durante o batismo João reconhece Jesus como o messias. Há registros históricos da existência de João Batista e, recentemente, arqueólogos encontraram entre o monte Nebo e Jericó, nas margens do rio Jordão, ruínas de um antigo local de peregrinação por volta do século III d.C.
Decidido a cumprir sua missão na terra, Jesus dirigiu-se então para a Galiléia, onde recrutou seus primeiros discípulos entre os pescadores do lago Tiberíades. Passou a viver com seus primeiros seguidores em Cafarnaum, cidade de pescadores próxima do lago de Tiberíades. Por dois anos Jesus pregou pela Galiléia, Judéia e em Jerusalém, proferindo sermões e contando parábolas. Segundo a Bíblia, realizou 31 milagres, incluindo 17 curas e seis exorcismos. Alguns dos mais famosos são a ressurreição de Lázaro, a transformação de água em vinho e a multiplicação dos peixes. 

Cafarnaum, onde Jesus teria vivido com seus discípulos, era um povoado de cerca de 1 500 moradores naquela época. Escavações encontraram os restos da casa de um dos discípulos, provavelmente de Simão Pedro (hoje conhecido como São Pedro), além de um barco datado da mesma época da passagem de Cristo pelo lugar. Não há, porém, certeza quanto ao número de discípulos que viviam próximos de Jesus. Nos evangelhos, apenas os oito primeiros conferem - os quatro últimos têm muitas variações. A hipótese mais provável é que o número "redondo" de 12 discípulos foi uma invenção posterior para espelhar, no Novo Testamento, as 12 tribos dos hebreus descritas no Velho Testamento. 

Depois de viajar por quase toda a Palestina, Jesus parte para cumprir seu destino - ou, segundo alguns especialistas, seu plano. Durante a semana da Páscoa, o principal evento religioso do calendário judeu, Jesus entra em Jerusalém montado num burro e atravessando a Porta Maravilhosa. Esse foi, certamente, um ato deliberado de provocação aos sacerdotes do Templo e à elite judaica. Jesus faz exatamente o que o profeta Zacarias afirmava na Torá que o messias faria ao chegar. Jesus estava mandando uma mensagem de provocação aos sacerdotes do Templo. No segundo dia da Páscoa, Jesus vai ao Templo e ataca os mercadores e cambistas raivosamente. 

Na quinta-feira, percebendo que o cerco apertava, os apóstolos celebram com Jesus a última ceia. A imagem que ficou dessa cena, gravada por Da Vinci e outros pintores, nada tem de verdadeiro. Os judeus comiam deitados de flanco, como os romanos, e as mesas eram ordenadas em formato de U e não dispostas numa linha reta. Durante a ceia, Judas levanta-se para trair seu mestre - ou, como alguns sugerem, para cumprir uma ordem dada pelo próprio Jesus. A captura acontece no Jardim do Getsêmani, onde Jesus e seus discípulos descansavam no caminho para Betânia, onde ficariam hospedados. 

Levado para o Sinédrio, o Conselho dos Sacerdotes do Templo, Jesus reafirma sua missão divina e é condenado. Existem provas da denúncia de Caifás a Pilatos. Estudiosos judeus afirmam, porém, que o julgamento perante o Sinédrio jamais ocorreu porque o Sinédrio não se reunia durante a Páscoa. Essa versão teria sido incluída tardiamente na Bíblia após a ruptura definitiva entre cristãos e judeus. Jesus foi morto pelos romanos porque era considerado um agitador político.
Na manhã de sexta-feira, na residência do prefeito Pôncio Pilatos, Jesus é condenado à morte. Ele atravessa as ruas de Jerusalém carregando sua própria cruz e é crucificado entre dois ladrões. O caminho que Jesus percorreu nada tem a ver com a Via Crúcis visitada pelos turistas hoje. Ela é uma criação do século XIV, quando a cidade esteve nas mãos dos cavaleiros cruzados. A maioria dos historiadores e arqueólogos concorda, porém, que o morro do Calvário (Gólgota), localizado ao lado de uma pedreira, foi realmente o lugar da crucificação. Concordam também que seu corpo tenha sido colocado numa das grutas próximas. O que aconteceu então depende da fé de cada um. Há varias versões: que Jesus teria sobrevivido ao martírio, que outra pessoa teria morrido em seu lugar, que seu corpo teria sido roubado ou, claro, que ele teria ressuscitado. 

domingo, 28 de setembro de 2008

TV e Mídia, técnicas de controle ou democratização cultural?



Ao longo dos séculos o nosso modelo de sociedade sofreu de uma domínio da informação por parte de algumas instituições civis e classes sociais. Essa prática é notada desde a antiguidade clássica, onde só os membros (Cidadãos) da Pólis podiam na antiga grécia participar de discussões sobre eventos que acaso assolavam a cidade-estado, julgamentos “públicos” e etc. Assim também procederam os Romanos, onde só os cidadãos e em especial os patrícios podia gozar plenamente de direitos políticos, participando em uma forma estreita de toda a sorte de decisões a respeito de obras públicas, campanhas militares e entre outras coisas tendo acesso rápido a todos os progressos científicos da época, todo o resto da população foi massa de manobra. Chega-se então à Idade Média, onde os Senhores Feudais, sobretudo articulados em redor do que era interessante à Igreja, censuravam, escondiam, matavam (isso quando a própria Igreja não o fazia diretamente, vide “santa inquisição”, cruzadas, o fato de a leitura da bíblia ser censurada, a proibição da usura aos homens comuns enquanto o vigário de Roma morava no mais luxuoso castelo da Europa. Só pra citar alguns eventos). Na época acreditava-se que era em nome de “Deus”, mas no final esse deus se resumia apenas a um sentido aguçado de busca pela perpetuação da ignorância de muitos para o usufruto de poucos. A ciência novamente era monopolizada, assim como a informação e a educação. Vem a revolução Burguesa na França e o que acontece é em efeitos práticos que o cetro do domínio sai das mãos dos nobres e em parte do clero para as mãos dessa classe social emergente (Burguesia). Sucedem-se outras revoluções importantes como a industrial, mas praticamente todas funcionando à serviço daquela elite que tomara a bastilha anos atrás. Já em meados século XX, no segundo pós-guerra inicia-se nos E.U.A principalmente, uma produção maciça de aparelhos de TV e esse veículo de comunicação, com a promessa de informar numa maneira descomplicada invade os lares país afora, tendência essa que foi seguida pelos outros países do mundo. Hoje em vias do Século XXI, não é exagero dizer que a TV é para o homem médio uma espécie de Aiatolá, não é mais necessário ler, a TV interpreta as escrituras, não é mais necessário pensar, a TV sempre tem “especialistas” em fazer isso por nós. Desse exame surgem questões a meu ver pertinentes. Algo como, existe um sentido palpável de ética no meio televisivo? A opinião pública realmente existe? Se existe, será ela livre ou condicionada? Pra onde a mídia televisiva pretende nos guiar? O tema é extenso e minucioso, todavia, para uma primeira análise deixo o texto que se segue, com algumas conceituações e constatações acerca desse gigante do domínio informativo. 

Dos Conceitos

& Mídia advém de Medium, intermediário entre quem fala e outro que ouve (emissor e receptor). Sua efetiva realização reside em tornar possível a troca entre quem emite um sistema de sinais (imagens, sons, letras, etc.) e quem os recebe. No caso da televisão, trata-se de um intermediário eletrônico.


& Opinião vem do grego doxa, aparência, opinião. É uma derivação do verbo Dokio, conjeturar. São os sofistas (séc V a.C, Grécia antiga) os primeiros a movimentar a doxa na vida pública da cidade. Com este conceito os sofistas rompem com a teoria dos dois mundos de Platão e colocam a realidade como uma construção a partir do movimento das aparências. Com a doxa os sofistas inauguram uma nova maneira de linguagem: prática, concreta de classe, artifício de oratório para a defesa de interesses privados e públicos, política.

& Público é tudo aquilo que pode ser visto e ouvido por todos com o maior alastramento possível. É movimento contínuo das ações humanas que se mostram e engendram a cidade e suas conjunções materiais e imateriais.

Televisão e Economia de Mercado

O medium televisivo é um sistema informativo homólogo aos códigos da economia de mercado, sustenta o filosofante Muniz Sodré. A tevê funciona junto a uma indústria de bens materiais e culturais. Ela é homogênea às relações entre produtor e consumidor. Assim como os modos de produção são formados a partir de uma demanda de consumidores, o médium televisivo organiza seu sistema identificando para dividir, classificando para censurar e serializando para lucrar. Daí a estrutura deste sistema funcionar apoiado em pesquisas de opinião para selar contratos entre emissoras e empresas na venda de espaço e tempo televisivo em comerciais. O medium televisivo age de acordo com a economia de mercado à medida que faz de seu sistema informativo um modo de produção que determina consumidores, em níveis diferentes, em uma realidade constituída econômica-social.


Televisão e Informação

A dicotomia emissor/receptor da teoria da informação na televisão é inexistente. A linguagem formada na tevê não cria um espaço de diálogo, seus significantes (sempre rasteiros) são apenas transportados da realidade constituída e direcionados de forma univoca. Se o que configura as relações sociais são as trocas em seus mais variados níveis da sociedade, a tevê impede esta troca, anulando a opinião do receptor (no entanto, conserva a troca dentro dos códigos do mercado que definem produtor e consumidor). A tevê não comunica ou informa, mas impõem. Seu entendimento de comunicação e informação está dentro dos limites da produção, da disciplina e do controle social.


A Televisão e a Palavra de Ordem

O enunciado, unidade elementar da linguagem, é a palavra de ordem (Deleuze e Guattari). O que o tele-espectador recebe do sistema de sinais da tevê são imposições, não há preocupação alguma em que o tele-espectador concorde ou não com os conteúdos emitidos, mas apenas em recebê-los como ordens remetidas de outras ordens, redundância. O tele-espectador se configura como sujeito de enunciado, pois está capturado e preso aos códigos dominantes da lógica mercadológica. Os enunciados emitidos pela tevê são palavras de ordem porque fazem de seu espaço lingüístico-informativo um marcador de poder, uma função linguagem que ordena, que estabelece vereditos.

Televisão e Opinião Pública.

A tevê não emite a opinião pública. O medium televisivo faz da opinião pública uma quimera, um não ente (Espinosa). A tevê transforma a opinião pública em uma mercadoria de troca. Por isto ela é o resultado de sondagens feitas por instituições contratadas ou não (mas sempre dentro da ordem do capital) pelas próprias emissoras que organizam seu público e suas programações de acordo com a necessidade de se alcançar o ibope (medida televisiva que mensura a relação entre redes de tevê e mercado) pretendido. A opinião enquanto artifício composto pelo movimento efetivo dos encontros dos acasos no espaço público, na tevê, em razão de seu claro interesse mercadológico, torna-se impossível.


*Nos próximos posts mais sobre TV.

sábado, 27 de setembro de 2008

...


"Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto,
ridi del duol che t'avvelena il cor!"
(R. Leoncavallo)

De todo aquele tempo, de toda aquela andança
Nada foi produzido que subsistisse ao caos da noite.
As coisas da terra à terra tornam, as coisas de meu peito
Em mim permanecem, estrangeiras.
 Não pertenço a esse lugar, não pertenço a coisa alguma
Já fui escravo, hoje sou ninguém.
Se conseguisse ser o que nunca pude talvez pudesse ser feliz aqui,
Todavia, acomete que não sou, nunca foi permitido.
O exílio é a minha casa, o não-ser é meu existir.
Sempre dancei com lobos,
Embora isso nunca tenha me impedido de dançar!
Mas o instante passou; a vida, passa.
Aquele mundo não existe mais, o Titã acorrentado jaz,
Deixado à própria sorte nessa terra amaldiçoada.
Eu sou o guardião daquele passado, eu sou o guardião
De tudo quanto nunca pode ser.
Que importa isso? Que importaria se tudo fosse êxito?
Pode ser que a totalidade fosse coisa alguma,
Que a vida nada fosse, ou é, além de teatro.
Não morrerei agora, já aconteceu, há muito tempo.
O amanhã é irremediável, o amanhã...
... Sempre dita novas cores.
Hoje eu escrevo, um dia,
Não escreverei mais.


 Porto Firme, 27 de Setembro de 2008


quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Alguma biografia de Sócrates


Em resposta aos e-mails recebidos envio esse texto que da uma geral de Sócrates, não exatamente num prisma de debate epistemológico ou numa análise científica de seu legado, mas antes, fitando um panorama do ser humano em si e de sua história pessoal. Espero que seja satisfatório. Até os próximos posts e bom proveito.

Sócrates nasceu em Atenas em 470/469 a. C. e morreu na mesma cidade em 399 a.C., condenado devido a uma acusação de "impiedade": ele foi acusado de ateísmo e de corromper os jovens com a sua filosofia, mas, na realidade, estas acusações encobriam ressentimentos profundos contra Sócrates por parte dos poderosos da época. Ele era filho de um escultor, chamado Sofronisco, e de uma parteira chamada Fenarete. Desde a juventude, Sócrates tinha o hábito de debater e dialogar com as pessoas de sua cidade. Ao contrário de seus predecessores, Sócrates não fundou uma escola, preferindo também realizar seu trabalho em locais públicos (principalmente nas praças públicas e ginásios), agindo de forma descontraída e descompromissada (pelo menos na aparência), dialogando com todas as pessoas, o que fascinava jovens, mulheres e políticos de sua época.


Segundo Reale & Antiseri (1990), depois de algum tempo seguindo os ensinos dos naturalistas, Sócrates passou a sentir uma crescente insatisfação com o legado desses filósofos, e passou a se concentrar na questão do que é o homem - ou seja, do grau de conhecimento que o homem pode ter sobre o próprio homem.

Enquanto os filósofos pré-Socráticos, chamados de naturalistas, procuravam responder à questões do tipo: "O que é a natureza ou o fundamento último das coisas?" Sócrates, por sua vez, procurava responder à questão: "O que é a natureza ou a realidade última do homem?"

A resposta a que Sócrates chegou é a de que o homem é a sua alma - psyché, por quanto é a sua alma que o distingue de qualquer outra coisa, dando-lhe, em virtude de sua história, uma personalidade única. E por psyché Sócrates entende nossa sede racional, inteligente e eticamente operante, ou ainda, a consciência e a personalidade intelectual e moral. Esta colocação de Sócrates acabou por exercer uma influência profunda em toda a tradição européia posterior, até hoje.

Ensinar o homem a cuidar de sua própria alma seria a principal tarefa a ser desempenhada por ele, Sócrates, e por todos os filósofos autênticos. Sócrates acreditava vivamente ter recebido essa tarefa por Deus, como podemos ler na Apologia de Sócrates, de Platão: "(…) é a ordem de Deus. E estou persuadido de que não há para vós maior bem na cidade que esta minha obediência a Deus. Na verdade, não é outra coisa o que faço nestas minhas andanças a não ser persuadir a vós, jovens e velhos, de que não deveis cuidar só do corpo, nem exclusivamente das riquezas, e nem de qualquer outra coisa antes e mais fortemente que da alma, de modo que ela se aperfeiçoe sempre, pois não é do acúmulo de riquezas que nasce a virtude, mas do aperfeiçoamento da alma é que nascem as riquezas e tudo o que mais importa ao homem e ao Estado."

Segundo Reale & Antiseri (1990), um dos raciocínios fundamentais feitos por Sócrates para provar essa tese é o seguinte: uma coisa é o instrumento que se usa e a outra é o sujeito que usa o instrumento. Ora, o homem usa o seu corpo como instrumento, o que significa que a essência humana utiliza o instrumento, que é o corpo, não sendo, pois, o próprio corpo. Assim, à pergunta "o que é o homem?", não seria lógico responder que é o seu corpo, mas sim que é "aquilo que se serve do corpo", que é a psyché, a alma. Esta mesma alma seria imortal e fadada a reencarnar tantas vezes fosse necessárias até a alma se aperfeiçoar de tal forma que não precisasse mais voltar a este planeta.




O "daimonion" socrático:

Entre as acusações contra Sócrates estava a de que ele estava introduzindo novos daimonions, novas entidades divinas. Em sua Apologia, Sócrates diz: "A razão (…) são aquelas acusações que muitas vezes e em diversas circunstâncias ouvistes dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de divino ou demoníaco (…) uma voz que se faz ouvir dentro de mim desde que eu era menino e que, quando se faz ouvir, sempre me detém de fazer aquilo que é perigoso e que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exortou a fazer nada". Ou seja, o daimonion socrático era "uma voz" que lhe vetava determinadas coisas, o que o salvou várias vezes de perigos e experiências negativas (Reale & Antiseri, 1990, p. 95). Ela não lhe revelava nada, apenas vetava algumas coisas que lhe eram perigosas.

O daimonion socrático é algo muito específico que diz respeito muito particularmente à excepcional personalidade de Sócrates, colocando-se no mesmo plano de um tipo de mediunismo que se fazia presente em certos momentos de concentração muito intensa e em momentos de reflexão bastante próximos aos arrebatamentos de êxtase em que Sócrates (assim como ocorria com Buda, Plotino, Joana D'Arc, etc) mergulhava algumas vezes e que duravam longamente, coisa da qual tanto Platão quanto Xenofonte falam expressamente. 

Jostein Gardner fala que as pessoas ainda hoje se perguntam por que Sócrates teve de morrer. Então ele faz um paralelo entre Jesus e Sócrates: ambos eram pessoas carismáticas e eram consideradas pessoas enigmáticas ainda em vida. Nenhum dos dois deixou qualquer escrito, e precisamos confiar na imagem e impressões que eles deixaram em seus discípulos e contemporâneos. Ambos eram mestres da retórica e tinham tanta autoconfiança no que falavam que podiam tanto arrebatar quanto irritar seus ouvintes. E ambos acreditavam falar em nome de uma coisa que era maior do que eles mesmos. Ambos desafiavam agudamente os que detinham o poder na sociedade, apontando sem piedade as hipocrisias e falsos fundamentos em que se assentavam para cometer toda sorte de abusos e injustiças. Foi isto que, no fim, lhes custou a vida. Afinal, os que questionam são sempre perigosos para os poderosos e pseudo-sábios de todas as épocas.

A maneira como Sócrates fazia as pessoas conhecerem-se a si mesmas também estava ligada à sua descoberta de que o homem, em sua essência, é a sua psyché. Em seu método, chamado de maiêutica, ele tendia a despojar a pessoa da sua falsa ilusão do saber, fragilizando a sua vaidade e permitindo, assim, que a pessoa estivesse mais livre de falsas crenças e mais susceptível à extrair a verdade lógica que também estava dentro de si. Sendo filho de uma parteira, Sócrates costumava comparar a sua atividade com a de trazer ao mundo a verdade que há dentro de cada um. Ele nada ensinava, apenas ajudava as pessoas a tirarem de si mesmas opiniões próprias e limpas de falsos valores, pois o verdadeiro conhecimento tem de vir de dentro, de acordo com a consciência, e que não se pode obter expremendo-se os outros. Até mesmo na atividade de aprender uma disciplina qualquer, o professor nada mais pode fazer que orientar e esclarecer dúvidas, como um lapidador tira o excesso de entulho do diamante, não fazendo o próprio diamante. O processo de aprender é um processo interno, e tanto mais eficaz quanto maior for o interesse de aprender.

Só o conhecimento que vem de dentro é capaz de revelar o verdadeiro discernimento. Em certo sentido, dizemos que quando uma pessoa "toma juízo", ela simplesmente traz à consciência algo muito claro que já estava "dentro" de si. Assim, as finalidades do diálogo socrático são a catarse e a educação para o autoconhecimento. Dialogar com Sócrates era se submeter a uma "lavagem da alma" e a uma prestação de contas da própria vida. Como disse Platão: "quem quer que esteja próximo a Sócrates e, em contato com ele, põe-se a raciocinar, qualquer que seja o assunto tratado, é arrastado pelas espirais do diálogo e inevitavelmente é forçado a seguir adiante, até que, surpreendentemente, ver-se a prestar contas de si mesmo e do modo como vive, pensa e viveu".

Em seu método, ao iniciar uma conversa, Sócrates sempre adotava a posição de uma pessoa ignorante, que apenas "sabe que nada sabe". E justamente por usar esta afirmativa, ele forçava as pessoas a usarem a razão. Ele entrava de tal forma na conversa, e de tal forma a dominava, que era capaz de aparentar uma maior ignorância ou de mostrar-se mais tolo do que realmente era. Seus discípulos mais fieis já sabiam que quando o opositor caia nesta jogada, logo levaria um tombo tremendo quando o quadro se invertesse. E esta era a principal técnica do método de Sócrates: usar a ironia. Foi assim que ele expôs muito das fraquezas do pensamento ateniense. Um encontro com Sócrates podia significar o risco de expor-se ao ridículo. Mas as pessoas que passaram por isto e conseguiram superar o choque do orgulho ferido, indo até o fim no processo catártico, acabavam por extrair de si mesmo a resposta em tudo lógica e compatível com os problemas expostos, dando-lhe a solução. O resultado é que o indivíduo sentia uma verdadeira sensação de iluminação, de descoberta, de der dado à luz algo de valioso que havia dentro de si, mas de que não tinha a mínima consciência. Foi assim que Sócrates conquistou fervorosos discípulos. Mas se a pessoa entregava-se ao orgulho ferido, tornava-se um inimigo feroz. E esta foi a razão que lhe custou a vida.

Histórias de Zéfiro

Para os antigos gregos, Zéfiro era o vento do Oeste, que fecundava as éguas lusitanas e lhes tornava os potros velozes. Por estes dias, o vento parece vir de todos os lados e em nada se assemelha à brisa benfazeja, favorável, mensageira da Primavera. (A flora, que Zéfiro deveria agora afagar, anda num rodopio pelos ares...)
 
Zéfiro e Flora, de William-Adolphe Bouguereau

Mas, para os mesmos gregos, Zéfiro era ainda uma das partes de um triângulo amoroso. O belo e atlético Jacinto, por quem Zéfiro estava apaixonado, era amado também por Apolo, preferido do jovem que descuidava de todas as suas outras atividades para estar junto dele. Um dia, Apolo lançou um disco o mais alto que pôde para impressionar Jacinto. Este correu para o apanhar, mas o ciumento Zéfiro desviou-o com um sopro e o disco atingiu o jovem mortalmente. Apolo, desolado, tentou reanimá-lo, mas já nada havia a fazer. Inconsolável, aquele “Deus” rogou a todos quanto podia rogar, mas o Olimpo foi impassível com a sua dor. O amado Jacinto morreu, contudo Apolo não o deixou cruzar o estige, e fez com ele vivesse eternamente transformando-o numa flor que ganhou o seu nome.


A Morte de Jacinto, G. B. Tiepolo
 
É nítida a carga emocional dessa história, o que fornece substrato temático mais que suficiente para interessar artistas de vários quadrantes, mas por razões que me ultrapassam, ou não, as “belas artes” andaram durante muito tempo presas a um conservadorismo que fez pintores e escultores subverterem o propósito de pureza do ideal artístico, prendendo sua arte a grilhões moralistas (ou pseudo-moralistas na minha opinião). Quando Mozart compôs a ópera Apollo et Hyacinthus, aos onze anos de idade, o enredo foi "ligeiramente" alterado pelo libretista (o padre Rufinus Widl): Apolo e Zéfiro passaram a desejar Melia, irmã de Jacinto. (Que coisa não ?)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Sabedoria Socrática


Um dia, em Delfos, alguém perguntou a Sócrates:

- Mestre, que é saber ?

-É não saber.

-Que é não saber?

-É conceber verdades mais altas que não interessam à maioria das pessoas.

- Que significam essas verdades?

- Eu te respondo: é o transcendente, considerado utópico.

- A que leva essa conquista?

- Ao conhecimento de si mesmo.

- Que é si mesmo?

- A miniatura de Deus, por assim dizer.

- Mas, que é Deus?

- A luz mais profunda da sabedoria, digo melhor, da própria vida.

- Volto à pergunta original: que é saber?

- Respondo com outras palavras, sem pretensão de dizer tudo: saber mesmo constitui mergulho no silêncio, que é música, a música que só pode e só deve ser sentida, e, nunca definida ou formalizada.

- Mestre, como posso transmitir tudo isso aos outros? Quero ser útil ...
- Sendo tu mesmo, isto é, reassumindo tua função no Universo, comunicando naturalmente na linguagem inarticulada do amor em ação, que vale a pena viver dando o melhor pela felicidade de todos.

TAGORE



Nota: Perceba-se que na concepção socrática o termo "Deus" surge como um estado interior do homem, e não como ser a que se busca externamente, sendo assim, uma visão avessa à apresentada pela tradição religiosa ocidental, sobretudo a cristã. (Não é de se admirar que tenha morrido por isso...)

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

William-Adolphe Bouguereau

A Verdade é que não existe muito o que comentar, a técnica desse artista sempre foi uma grande inspiração pra mim, valho-me então das palavas de Pitágoras:

"para terdes grandes idéias rodeai-vos de belas imagens"

Senhoras e Senhores, apresento-lhes William-Adolphe Bouguereau, um acadêmico sublime.

A Caridade

A Virgem
A Inocência
O Regresso da Primavera
Homero e Seu Guia

domingo, 21 de setembro de 2008

O mito da alma e de Eros (Por Platão)


Com efeito, a alma estava outrora repleta de penas e eis que, agora sente a dor própria do crescimento das asas! As impressões que sofre são exatamente como as que derivam do nascimento dos dentes: dores e irritação nas gengivas.
Quando de repente, contempla a beleza de um jovem, sente um fluxo de partículas dele provenientes, de onde nasce o que se designa por onda de desejo (hímeros) e a alma encontra assim remédio para as suas dores, e assim nasce a alegria.

Mas quando se encontra separada do objeto amado, sente-se fenecer. As aberturas pelas quais saem as asas começam a murchar e, logo se fecham, interrompendo o seu crescimento. 

Por sua vez, a asa, feita prisioneira no interior, juntamente com a força do desejo, começa a palpitar fazendo pressão sobre cada uma das saídas. Assim atormentada, a alma abandona-se sem resistência à dor, ao mesmo tempo que a recordação do objeto belo leva-a a deixar-se invadir pelo frenesi. A mistura destes dois sentimentos, atormenta-a pois verifica ser incapaz de vencer a situação. Neste delírio em que foi lançada, não pode repousar, nem de noite, nem de dia, e impelida pela paixão lança-se em busca dos lugares onde, segundo julga, pode encontrar a Beleza. Quando a consegue rever e dirigir-lhe a força do desejo, os poros, ainda obstruídos começam a abrir-se. A alma retoma a respiração, deixa de sentir o aguilhão da dor e goza, nesse instante a volúpia mais deliciosa. Esta é uma das coisas das quais não se pode afastar voluntariamente, e nada existe que possa merecer-lhe tanta atenção como o objeto amado. Nem mãe, nem irmãos, nem camaradas! Tudo é esquecido e a perda dos bens materiais, por culpa da sua incúria, não tem para a alma a menor importância. Os bons costumes e as boas maneiras que até aí se comprazia em praticar, são vistas com o mesmo desdém. Está disposta à escravidão, a repousar em qualquer parte desde que seja a mais próxima possível do seu amado. Efetivamente, não contente em venerar o ser que possui a Beleza, ela encontra nele e só nele, o remédio para a sua grande dor. O homen, belo jovem a quem dirijo este discurso, denominam de amor este estado (...)

Platão, Fedro

Na concepção Platônica o amor surge como uma iniciação da alma em direção à procura do saber, posto que em sua definição "Amor é a busca constante pelo bem" e ao homem grego não havia bem maior que o conhecimento. A jornada da descoberta se inicia com a libertação (servida no texto pela imagem das asas) das penas ou escravidão terrena a que estaria sujeita a alma enquanto condicionada pelo corpo. O termo "escravidão" é advindo da sensação de um bem que produzido em qualquer instância de cárcere é um sentimento condicionado, e não sendo espontâneo é artificial, para Platão a realidade física é uma quimera, um jogo de artificialidades. Esse Filósofo sugere que o Amor possui em si uma medida de potência que impulsiona o indivíduo à evolução, e as tormentas causadas por esse são,  como diria a psicanálise inferências do ego, o falso eu, portador de toda a sorte de preconceitos que nos impedem de ir além. Em outras palavras, para Platão, a falsidade do cotidiano se sente oprimida com a verdade do extraordinário (o Amor).  
Nota : 1 - O Amor alado, na etimologia da palavra grega, dar asas, dar asas ao desejo.

            2 - Seria interessante, num estudo do inconsciente iconográfico ocidental relacionar esta imagem de uma alma alada por força do Amor com a imagem do Anjo que surge com o Cristianismo.


"Espero que as perguntas tenham alcançado uma resposta satisfatória. Desde já, aguardo novos contatos..."


sábado, 20 de setembro de 2008

Há razões objetivas para a Beleza?

Há alguns dias recebi um e-mail comentando o post sobre Caravaggio e uma pergunta foi lançada, ela consistia em uma indagação sobre o que seria necessário para se apreciar e compreender uma obra de arte. Falando a nível pessoal, entendo que existem várias formas de contemplação, por exemplo:

A Criação de Adão - Michelângelo

O Afresco acima é parte da grande obra prima de Michelângelo na capela sistina, entretanto, para muitos pode ser alguma coisa além ou aquém disso. Se o espectador é um acadêmico ele considerará a composição em si, inclinado por seus conhecimentos, levará em conta a profundidade, o movimento, a paleta de cores utilizada, etc. O Acadêmico vê a obra basicamente como um conjunto técnico. Por outro lado, se o expectador é um religioso, e está em peregrinação pelo vaticano, certamente haverá algo de sobrenatural no impacto dessa visão sobre ele, pois é uma narrativa da história de aliança de seus “antepassados”, é uma lembrança da porção divina existente em cada um. Um religioso comum vê a obra religiosa apenas por esse ângulo, ele busca ícones de transcendência. De forma paralela, mas não com menos admiração, um homem comum, analizando a obra a partir do senso comum, poderá achá-la sublime sem necessariamente vinculá-la a uma crença, técnica ou momento histórico específico. Assim sendo, é lúcido convir que uma das determinantes na apreciação é o filtro subjetivo, e as limitações ou aberturas que esse impõe. Mas será ele o único? Nesse sentido, achei conveniente para maiores investigações publicar um pequeno texto de autoria de Monroe Beardsley que discorre sobre razões objetivas na arte, traçando uma espécie de método sistêmico de análise.

“O método afetivo de avaliação crítica consiste em avaliar a obra pelos seus efeitos psicológicos, ou pelos efeitos psicológicos prováveis, sobre o próprio crítico ou os outros. Como mais adiante se tornará patente, não considero irrelevantes as razões as razões afetivas para a avaliação dos objetos estéticos (...)Neste momento, apenas defenderei que as razões afetivas, só por si, são inadequadas, porque não são informativas em dois aspectos importantes.
Primeiro, se alguém afirma que ouviu o andamento lento do Quarteto de Cordas em Mi Bemol Maior (Op.127), de Beethoven, e que lhe deu prazer, ou nos adverte que nos daria prazer, penso que deveríamos considerar esta advertência uma resposta fraca a esta grande música. E, contudo, num sentido muito amplo e vago é verdade que nos dá prazer, tal como os amendoins salgados ou um mergulho em água fresca. Somos, assim, a perguntar que tipo de prazer nos dá e como difere esse prazer de outros, se é que assim pode ser chamado, e como obtém a sua qualidade única precisamente a partir dessas diferenças. E esta linha de investigação levar-nos-ia ao segundo aspecto. Pois uma afirmação afetiva informa-nos sobre o efeito da obra, mas não identifica as características da obra que causam esse efeito. Poderíamos ainda perguntar, por outras palavras, o que há de prazeroso nesta música que está ausente noutra música. Esta linha de investigação seria paralela à primeira, uma vez que nos conduziria a discriminar este tipo de prazer de outros que têm diferentes causas e objetos.
As mesmas duas questões poderiam ser levantadas acerca da noção geral que parece estar implícita nas outras razões afetivas: a obra é boa se conduz a uma forte reação emocional de um certo tipo. Mas de que modo difere a reação emocional das fortes reações emocionais geradas por telegramas anunciando mortes, por sustos de morte em carros descontrolados, pela doença grave de um filho, ou por um pedido de casamento? Há certamente uma diferença importante que a explicação da reação emocional tem de ter em conta para ser completa. O que há no objeto estético que causa reação emocional? Talvez seja alguma qualidade específica intensa, na qual a nossa atenção está centrada quando estamos perante a obra. De fato, alguns termos afetivos são muitas vezes enganadores, pois são realmente sinônimos de termos descritivos: querem dizer que o objeto tem certas qualidades específicas num grau de intensidade apreciável. E nesse caso, é claro que a razão já não é afetiva, mas objetiva. (...)
Penso que ao inspecionarmos bem as razões presentes nos juízos críticos, podemos inseri-las, sem grande dificuldade, em três grupos principais. Em primeiro lugar, há razões que parecem ser suportadas pelo grau de unidade da obra:
... é bem organizada (ou desorganizada).
... é formalmente perfeita (ou imperfeita).
... tem uma estrutura e um estilo internamente coerentes (ou incoerentes).

Em segundo lugar, há razões que parecem apoiar-se no grau de complexidade ou simplicidade da obra:
... é desenvolvida em larga escala.
... é rica em contrastes (ou falta-lhe diversidade e é repetitiva).
... é sutil e imaginativa (ou grosseira).

Em terceiro lugar, há razões que parecem apoiar-se na intensidade ou falta de intensidade das qualidades humanas específicas presentes na obra:
... é cheia de vitalidade (ou apagada).
... é poderosa e vivida (ou fraca e deslavada).
... é terna, irônica, trágica, graciosa,delicada, profundamente cômica.”

Monroe Beardsley, Estética, 1958




quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A TEMÁTICA DA ALIENAÇÃO: ORIGENS E PARTICULARIDADES


O conceito de alienação é um conceito histórico na medida em que tem aplicação analítica numa relação mútua entre sujeito, objeto e circunstâncias concretas específicas. Não obstante, os construtos teóricos acerca dos processos alienantes da vida humana foram edificados em estruturas atemporais, mistificadoras, abstraíndo dos processos sócio-econômicos concretos. 

É no desenvolvimento do modo de produção capitalista e de sua particular e específica forma de produção material que Marx desenvolve o conceito da alienação. Sua formulação teórico-conceitual situa-se particularmente no interior de duas obras: Os "Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844" e "Elementos para a Crítica da Economia Política" (1857-58).
Nos Manuscritos se desenvolve o primeiro confronto de Marx com a Economia Política e é explorada, pela primeira vez, a idéia da "alienação do trabalho" e suas consequentes determinações à todas as esferas da vida social. Nas reflexões de 57-58 Marx realiza a primeira formulação concreta da especificidade da alienação na sociedade burguesa - o problema do fetichismo -. A definição teórico-analítica desta dimensão particular da categoria da alienação ocorre em função da análise do conjunto de mediações histórico-concretas responsáveis pela afirmação do valor de troca como forma determinante de intercâmbio econômico-social e de interação sócio-cultural da sociedade burguesa.
Nos Manuscritos, o trabalho aparece como a objetivação primária do ser social e é por se objetivarem que os homens podem constituir sua subjetividade, sua personalidade enquanto determinação individual específica. Mas esta é determinada ontológicamente na totalidade das condições sociais, e é nelas e a partir delas que a subjetividade é historicamente formada e mudada. È mutável uma vez que as condições são produzidas pelo homem social, são o produto da autocriação humana.
Uma subjetividade rica é formada no processo de socialização com a apropriação cada vez maior da riqueza social existente, ou seja, da massa de objetivações dispostas pela sociedade. Em outras palavras, a riqueza do homem é a riqueza de suas relações sociais. O homem é assim entrelaçado e criado em relações inter-humanas históricas e concretas. È um produto da sociedade e também o seu criador:
É na sua acepção histórica particular nos moldes capitalistas - na forma da "divisão do trabalho, troca, propriedade privada"- que a atividade teleológica se torna trabalho assalariado. Ao invés de ser uma objetivação e o elemento mobilizador da sociabilidade que realiza uma subjetividade rica, o trabalho aqui se transforma no seu contrário: aliena o homem ao invés de objetivá-lo, passa a ser o que o avilta e mutila, aparecendo como a base de toda alienação. O homem é dominado por aquilo que ele cria, o que o impede de fazer a passagem do singular para o genérico, expressando uma sociabilidade marcada pelo caráter individualista e egoísta. "A atividade produtiva é, portanto, a fonte da consciência, e a ‘consciência alienada’ é o reflexo da atividade alienada ou da alienação da atividade, isto é, da auto-alienação do trabalho." Mészaros (1981, p.76). 
Partindo da atividade produtiva como elemento ontológico fundamental da constituição do ser social e de uma substanciação das categorias em termos históricos concretos, a abordagem marxiana da natureza humana está numa perspectiva radicalmente oposta às concepções estáticas, a-históricas e naturais da economia política (substitui o indivíduo histórico e socialmente concreto pela imagem idealista de uma "natureza humana" abstraída de todas as determinações sociais). Nos Manuscritos o "princípio do individualismo" passa a ser analisado como uma manifestação ontológica da alienação do homem no trabalho. O egoísmo não é inerente e não é a característica definidora da natureza humana, esta é transformada, pela própria atividade humana e pela sociabilidade (isto é, "o conjunto das relações sociais") naquilo que é. Assim, o verdadeiro eu é um eu social e, em decorrência, a compreensão da individualidade não pode ser calcada em qualidades abstratas inerentes ao indivíduo isolado, mas na análise histórica concreta do caráter da sociabilidade. È esta que define a natureza humana, pois esta não pode ser encontrada dentro do sujeito, mas nas suas relações objetivadas. 
Segundo Netto(1987, pgs, 59-60), embora prisioneiro de uma antropologia feuerbachiana, Marx já desenvolve nos Manuscritos as bases de uma teoria que é "compatível com a ulterior determinação teórica do fetichismo" e que "desempenhará uma função central na estrutura ontológica da sua teoria social : a categoria da práxis":"Ao considerar o homem como ser prático e social e a práxis como a totalidade das objetivações do ser social, constituída e constituinte, Marx funda a alternativa para situar a alienação como fenômeno e problema prático-social". 
Não obstante essas determinações, as análises feitas por Marx em 1844 têm como foco descrever como se explicitam as manifestações dos processos alienantes nos indivíduos e nas suas formas de sociabilidade no interior da sociedade fundada na produção mercantil e na troca. Derivada a partir da propriedade privada e consolidada pelas repartições da economia mercantil (divisão do trabalho, troca) a alienação parece alcançar uma característica histórica generalizante que culmina nos marcos da sociedade burguesa. Para Vázquez (1968, p.437), a principal limitação do conceito na obra de 1844 é a sua "polivalência"..."explica muito, sem ser ela mesma, a seu turno, suficientemente explicada". É por isso, segundo Netto (1987, p.70) que a abordagem marxiana é abstrata:"ela não consegue determinar a especificidade das alienações engendradas pela sociedade burguesa". 
É nas reflexões presentes em "Elementos para a Crítica da Economia Política" que a particularidade histórico-social da essência econômica da sociedade burguesa alcança sua concretude investigativa.Tal concretização teórica possibilita a apreensão caracterizadora da tematização da alienação na sua modalidade e afirmação enquanto expressão típica desta sociedade, a reificação : "Aquilo de que a ótica marxiana de 1844 não pode dar conta é que a sociedade burguesa constituída, abrigando e recolhendo as antigas formas de alienação, repõe-nas em outro nível justamente o engendrado pelo fetichismo". Netto (1987, pgs70,71).
A superação desta abordagem abstrata está na análise precisa da forma do produto mercantil -mercadoria- que Marx objetivamente define como "célula econômica da sociedade burguesa" raíz em que o fetichismo se universaliza. È no contexto destas proposições que se articulam duas realizações teóricas do movimento histórico que confluem concretamente na emergência do modo de produção capitalista: análise da sociabilidade numa perspectiva ontológica de seus alicerces - as objetivações teleológicas da prática sócio-humana que constituem o trabalho; e a propriedade deste como produtor de valor. Este modo de produção cristaliza o produto do trabalho na forma mercadoria, engendrando uma ambiência mística que oculta o caráter social que fundamenta a sua produção. As relações sócio-humanas são invertidas: de relações entre pessoas convertem-se em relações entre coisas. O trabalho humano é considerado não só trabalho concreto (atividade e produto determinado), como também trabalho abstrato, geral, pois só assim os produtos do trabalho podem ser equiparados e trocados. Assim, o produto do trabalho torna um fetiche na medida em que se converte em partícula de um trabalho geral, abstrato, isto é, como mercadoria. 
Ao implementar o programa teórico de desocultamento da especificidade da alienação na processualidade histórica dos fetiches que rodeiam as formas sociais e suas representações místicas na sociedade burguesa, Marx abandona mantém ou modifica a concepção do trabalho alienado presente nos Manuscritos?
Segundo Vázquez (1968, p.448) a distância que separa o conceito de trabalho alienado para o do fetichismo da mercadoria é a distância entre uma concepção do trabalho ainda não fundamentada dentro de uma análise da estrutura do modo de produção capitalista em que opera o conceito, e outra na qual se concretiza nas categorias de força de trabalho, trabalho assalariado, trabalho abstrato e concreto, etc. São estas determinações ontológico-históricas que estabelecem, que demarcam "as diferenças fundamentais quanto ao lugar, alcance e conteúdo da forma concreta com que aparece a alienação em "O Capital" como fetichismo econômico". Não obstante, em ambas as concepções estão presentes uma estrutura axial da alienação: tanto os homens (o trabalhador individual - alienação da essência humana em 44), ou as relações sociais (alienação de um modo de sociabilidade própria do desenvolvimento histórico-social - em 57-58) se objetivam em produtos que se tornam autônomos e que se apresentam com um poder próprio. O caráter de continuidade que se afirma é a contradição entre os homens e a realidade exterior. 
Em consequência, não se trata de dissolver ou substituir a teoria da alienação na teoria do fetichismo. A primeira é qualitativamente a mesma e a segunda é sua particularidade funcional e sua problemática é um aspecto da problemática mais abrangente daquela: ... "a concepção marxiana do fetichismo supõe uma teoria da alienação"...Netto (1987, pgs.59-60). Mas ... "fetichismo e alienação não são idênticos" (p.74). Nesse sentido, se o fetichismo exprime a forma mais desenvolvida da alienação, isso não signica que esgote seu conceito e suas formas de manifestação: "se a relação da alienação condiciona o aparecimento do fenômeno do fetichismo, e se o fetichismo das mercadorias for uma consequência específica da alienação, nesse caso esta é a noção mais ampla e mais rica, que não pode ser limitada ao fenômeno do fetichismo." Schaff (1967,p.135) 
Nos Manuscritos, a alienação desenvolve-se quando os indivíduos não conseguem discernir e reconhecer o conteúdo e o efeito da sua ação interventiva nas formas sociais. Assim, os processos alienantes podem ser entendidos como processos que envolvem, a partir das condições dadas pela vigência da apropriação privada do excedente econômico, múltiplas e complexas concretizações da atividade sócio-humana nas diferentes esferas da vida social. Nesse campo amplo de afirmações e desenvolvimentos, a alienação estende sua materialização sem cristalizar-se em relações objetuais, que são próprias da sua nova e determinada forma constitutiva a partir do fetichismo. Marx evolui de um conceito geral da alienação para uma concepção como fenômeno que deve ser recuperado em sua processualidade histórica, como produtos históricos particulares que necessitam ser investigados concretamente.
Em Marx, o primado das categorias econômicas decorre do significado central que tem o trabalho como estrutura fundamental da objetivação social e das relações humanas. E é de uma análise daquelas categorias que se deve partir para "desmistificação" das relações sociais. Não obstante, as relações econômicas e os resultados de sua investigação não determinam e não podem ser simplesmente transferidos mecanicamente para todo conjunto complexo das inter-relações sociais. O específico destas tem que ser identificado em suas múltiplas mediações internas e externas e em suas interligações estruturais fundamentais.

Bibliografia:


GIANNOTTI, J.A. Origens da dialética do trabalho. SP: Difusão Européia do Livro, 1966. 
GOLDMANN, L. Dialética e Cultura. RJ: Paz e Terra, 1979.
MARX, K. De la Crítica de la filosofia del derecho de Hegel in MARX – Escritos de juventud. México: Fondo de cultura econômica, s.d. 
______Manuscritos econômicos- filosóficos de 1844. (primeiro e segundo) in FROM, E. Conceito marxista do homem. 
______ ___________________________________(terceiro) in Marx. SP:Abril Cultural, col. "Os pensadores", 1978.
______. A Questão Judaica. Portugal: Ed. José Fortunato, 1978.
______Teses sobre Feuerbach in Marx. SP: Abril Cultural, col. "Os pensadores", 1978.
______ Miséria da filosofia. SP: Ciências Humanas, 1982.
______ Introdução (à Crítica da economia política/1857). In Marx. Para a crítica da economia política. SP: Abril Cultural, col. "os pensadores", 1978.
______"Prefácio da primeira edição" e "Posfácio da Segunda edição" in Marx, K. O capital. Crítica da economia política. SP: Abril Cultural, col. "Os economistas", l,1,1983.
______ O Capital. Vol.l, Livro l, Tomo l. SP: Nova Cultural, col."Os economistas",1988.
MÉSZAROS, I. Marx: A Teoria da alienação. RJ: Zahar, 1981.
NETTO, J.P. "Introdução" in Miséria da filosofia. São Paulo: Ciências Humanas, 1982. 
__________ Capitalismo e reificação. São Paulo: Ciências Humanas, 1987.
SCHAFF, A. O Marxismo e o Indivíduo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 
VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

Por Maria Lúcia Duriguetto 

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

DELEUZE E AS SOCIEDADES DE CONTROLE


I. HISTÓRICO

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seuapogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios deconfinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada umcom suas leis: primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"),depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em quando ohospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É aprisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, ao veroperários, "pensei estar vendo condenados...". Foucault analisou muito bem o projetoideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuirno espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeitodeve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia erada brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo efunções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção,decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, eNapoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas asdisciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças quese instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial:sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão,hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior ", em crise como qualqueroutro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param deanunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, ohospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas,num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar aspessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades decontrole que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome queBurroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nossofuturo próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultrarápidas decontrole ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração deum sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias,formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervirno novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o maistolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Porexemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitaisdia,o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas tambémpassaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais durosconfinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

II. LÓGICA

Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo sãovariáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagemcomum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modosde controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema degeometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamentebinária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são umamodulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cadainstante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se vêclaramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forçasinternas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixopossível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu afábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema deprêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação paracada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios,concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têmtanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábricaconstituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato quevigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa deresistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sãemulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cadaum, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do "salário por mérito" tenta aprópria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a
formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui oexame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, dacaserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, aempresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de umamesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava nocruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicasmais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre doisconfinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variaçãocontínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, elemesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. Associedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o númerode matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viramincompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante eindividuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e moldaa individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado
no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil,por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros meios). Nas sociedades decontrole, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, masuma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladaspor palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). Alinguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, oua rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se"dividuais", divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou "bancos".É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que adisciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - que servia de medida padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervircomo cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira
monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de
controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em quevivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. Ohomem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controleé antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf jásubstituiu os antigos esportes.É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as
máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes delhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavammáquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinaresrecentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo daentropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinasde uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo éa interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evoluçãotecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutaçãojá bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é deconcentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica comomeio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mastambém eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casafamiliar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora porespecialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Masatualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequênciaà periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgiaou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima ejá não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas.O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é umcapitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para omercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A
família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos queconvergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figurascifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes.Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. Asconquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação dedisciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, portransformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupçãoganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a "alma" daempresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notíciamais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, eforma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotaçãorápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longaduração, infinita edescontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas ohomem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extremamiséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demaispara o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras,mas também a explosão dos guetos e favelas.

III. PROGRAMA

Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle quedê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva,homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade ondecada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartãoeletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusadoem tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador quedetecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveriaser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios deconfinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos,tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, masdevidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. Noregime das prisões: a busca de penas "substitutivas", ao menos para a pequenadelinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar emcasa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliaçãocontínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondentede qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da "empresa" em todos os níveis deescolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina "sem médico nem doente", queresgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra umprogresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ounumérico pela cifra de uma matéria "dividual" a ser controlada. No regime da empresa:as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pelaantiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor oque se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de
um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito àinaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nosmeios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas deresistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboçosdessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovenspedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formaçãopermanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seusantecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de umaserpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.


*DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-
226.

sábado, 13 de setembro de 2008

Discurso sobre a sofismática religiosa 1; Deus e o sentido da existência



" Uma das respostas hoje em dia mais populares no que diz respeito ao sentido da vida é a resposta religiosa. Ao passo que na Antiguidade grega e romana as respostas ao problema do sentido da vida eram de caráter filosófico e cognitivo, hoje em dia é costume pensar que só a religião pode fornecer uma resposta ao problema. Nesta seção quero mostrar em linhas gerais qual é a resposta teísta habitual ao problema e mostrar as suas limitações. Na verdade, penso que o conjunto de doutrinas sobre o deus cristão que se foram cristalizando ao longo dos séculos — em parte em resposta aos desafios de filósofos não religiosos — é um agregado incoerente de doutrinas que só aparentemente respondem aos anseios humanos mais profundos. Vejamos o caso concreto da resposta teísta genérica ao problema do sentido da vida.
Do ponto de vista teísta, Deus é criador. Criou todo o universo para os seres humanos. Só por si, isto não dá grande sentido à nossa vida. Dá-nos apenas um lugar de destaque, que talvez seja emocionalmente reconfortante para algumas pessoas. O que dá sentido à nossa vida, do ponto de vista teísta, é o fato de Deus ter um plano para nós: uma finalidade, precisamente. Todo o universo, com os seus bilhões de bilhões de estrelas (só na nossa galáxia o número de estrelas é igual ao número de segundos que há em 2 mil anos — e há milhões de galáxias), foi criado para nós e com uma finalidade em vista. A monstruosidade aritmética desta idéia é impressionante. Mas mais impressionante ainda é o fato de ninguém saber bem que finalidade é essa. Todavia, mais grave do que ninguém saber que finalidade Deus nos reservou, são os dois problemas seguintes.
Em primeiro lugar, o teísta defende que é em princípio impossível saber exatamente quais são os desígnios divinos; podemos ter algumas idéias aproximadas, mas os desígnios divinos ultrapassam necessariamente a razão humana. Assim, em última análise, não podemos compreender qual é o sentido da nossa vida. Um teísta apenas tem a esperança (do meu ponto de vista, injustificada) de que a sua vida faça sentido, apesar de o sentido que a sua vida faz, se fizer, ser insusceptível de ser compreendido pela razão humana. Em resumo, a resposta teísta é esta: a nossa vida tem sentido, mas não sabemos nem podemos saber qual é.
Em segundo lugar, do fato de Deus ter reservado para nós uma finalidade última não se segue que a nossa vida tem sentido na acepção forte do termo. Como vimos, para que a minha vida tenha sentido em termos substanciais não basta que tudo o que eu faço se organize em torno de um conjunto de finalidades últimas; é preciso que essas finalidades últimas tenham em si valor objetivo — caso contrário, seremos como psicopatas felizes, que organizam a sua vida em torno de um dado conjunto de finalidades, sem que no entanto pareça que se possa dizer que a sua vida tem sentido.
A resposta teísta ao segundo problema é surpreendente e acaba por nos conduzir ao primeiro. A resposta é a seguinte: viver no paraíso, junto de Deus, é algo que tem valor em si. E uma vez mais somos reconduzidos ao primeiro problema: esta idéia é incompreensível. Por que razão viver eternamente feliz, num júbilo permanente, e junto de Deus, tem valor objetivo? Se temos a audácia de perguntar por que razão uma vida ética, como a proposta pelos estóicos ou por moralistas como Peter Singer, dá sentido objetivo à nossa vida, estamos obrigados a fazer a mesma pergunta agora. E a resposta teísta reconduz-nos ao primeiro problema: a vida eterna, no paraíso, junto de Deus, tem valor objetivo, mas é impossível saber porquê; isso é algo que só compreenderemos quando lá estivermos. Por outras palavras, a resposta teísta ao problema do sentido da vida é apenas a esperança de que um dia iremos dar conosco no paraíso com capacidades superiores de compreensão, altura em que compreenderemos por que razão tudo fez, objetivamente, sentido. Em resumo: o teísmo é a esperança de que a nossa vida faça sentido, apesar de ser impossível compreender que sentido é esse.
Não me parece que esta perspectiva seja muito satisfatória. Imagine-se que eu dizia que há leis que explicam o movimento dos planetas e a queda dos corpos; mas que essas leis são inalcançáveis pela razão humana. Isto, em si, não explica o movimento dos planetas nem a queda dos corpos; é apenas uma maneira de nos fazer parar de pensar acerca disso. Faz-nos parar de pensar porque nos garante que é impossível descobrir tal coisa, ao mesmo tempo que nos assegura que basta esperar que compreenderemos tudo, quando mudarmos de nível de existência — desde que façamos certas coisas, como ser virtuoso e crer firmemente, contra todos os indícios em contrário, que Deus existe. Mas se tivermos a audácia de querer continuar a pensar, se insistirmos em estudar o problema do sentido da vida, que alternativas nos restam? É isso que iremos ver na próxima seção."

Mark Rothko, Russia 1903

A Felicidade?


" Não conto os bilhetes brancos, os negócios abortados, as relações interrompidas; menos ainda outros acintes ínfimos da fortuna. Cansado e aborrecido, entendi que não podia achar a felicidade em parte nenhuma; fui além: acreditei que ela não existia na terra, e preparei-me desde ontem para o grande mergulho na eternidade. Hoje, almocei, fumei um charuto e debrucei-me à janela. No fim de dez minutos vi passar um homem bem trajado, fitando a miúdo os pés. Conhecia-o de vista; era uma vítima de grandes reveses, mas ia risonho, e contemplava os pés, digo mal, os sapatos. Estes eram novos, de verniz, muito bem talhados, e provavelmente cosidos a primor. Ele levantava os olhos para as janelas, para as pessoas, mas tornava-os aos sapatos, como por uma lei de atração, anterior e superior à vontade. Ia alegre; via-se-lhe no rosto a expressão da bem-aventurança. Evidentemente era feliz; e, talvez, não tivesse almoçado; talvez mesmo não levasse um vintém no bolso. Mas ia feliz, e contemplava as botas. 

A felicidade será um par de botas? Esse homem, tão esbofeteado pela vida, achou finalmente um riso da fortuna. Nada vale nada. Nenhuma preocupação deste século, nenhum problema social ou moral, nem as alegrias da geração que começa, nem as tristezas da que termina, miséria ou guerra de classes, crises da arte e da política, nada vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as, ele reluz com elas, ele calca com elas o chão de um globo que lhe pertence. Daí o orgulho das atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranquilidade olímpica...Sim, a felicidade é um par de botas."

Machado de Assis; Contos.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Um paradoxo: o pensamento como pecado


É realmente surpreendente que Nietzsche tenha sabido não só adivinhar em Sócrates um decadente, quer dizer, um homem caído, como também (como se estivesse comprometido a ilustrar com o exemplo de Sócrates a narrativa bíblica) tivesse compreendido que um homem caído é incapaz de salvar-se com as suas próprias forças. Tudo o que o decadente empreende para salvar-se, diz Nietzsche, não faz mais que aumentar a sua perdição. Poderá lutar e vencer-se a si mesmo tudo o que puder; os seus intentos de salvação não são mais que a expressão da sua queda. Tudo o que faz, fá-lo como homem caído, quer dizer como um homem que perdeu a liberdade de escolha e foi condenado por força hostil a ver a sua salvação precisamente no mesmo lugar onde está a causa da sua perda.

Quando Kierkegaard disse que o maior génio é também o maior pecador, não nomeia Sócrates, mas evidentemente teve que pensar nele. Sócrates personificava para ele, essa tentação de que a Bíblia fala. E, com efeito, pode haver máxima mais tentadora do que a do oráculo de Delfos - "Conhece-te a ti mesmo" - ou que o prudente conselho de Sócrates - discorrer o dia inteiro sobre a virtude? Mas é justamente nisto que consiste a tentação da serpente bíblica. E tentou tão bem o primeiro homem, que hoje todavia vemos ali mesmo a verdade onde se oculta um fatal engano. Todos os homens, os místicos inclusive, aspiram ao conhecimento. No que toca a Kierkegaard, põe simplesmente de parte a serpente, e isto por razões, que como todo o mundo, lhe parecem surgir das profundezas do espírito que despertou da "modorra da ignorância". Há que buscar aqui, provavelmente, a origem dessa convicção Socrática segundo a qual o homem que "sabe" não pode fazer o mal e, por consequência, também a origem da nossa segurança de que o pecado não pode proceder da árvore da Ciência. Se queremos prosseguir utilizando imagens bíblicas teremos que dizer, ao contrário, que o pecado procede da árvore da vida e que, em suma, todo o mal que existe sobre a terra procede da mesma árvore. 

Leon Chestov, Kierkegaard y la filosofia existencial, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1951
Título original em francês: Kierkegaard et la Philosophie Existentielle
Tradução para o espanhol de José Ferrater Mora
Tradução do espanhol: Helena Serrão