sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Antífona da chuva

I
Limalhas de aço a sibilar liquidamente

Espaço entre o corte e a compostura,
A presença da água assim como o desatino
A fazer mais úmida a caminhada do hoje.
A água cai, do mesmo modo que exita
Um homem em seu leito de morte.
Sepulcral, a forca em que entregaste
Aquilo que teu jamais pôde ser.
O metal rarefeito violenta o silêncio,
O corpo, a memória. Nesse país
Todo o sangue é vil, toda dor é vã.
Que as indelicadezas sejam perdoadas.
Ao cortar os pulsos pense em mim
Com um pouco mais de candura
Antes que a horda de cães chegue aqui.

II
Dorme enquanto os outros trabalham, trabalha enquanto todos dormem. O levante das Termópilas não durará toda uma vida. Quando a primavera chegar o clima será mais ameno caso todas as flores não tiverem sido pisadas. Sinto como se tivesse chovido mas, ao acordar constatei que a água era imaterial. Só eu é que me umedecera por dentro.


*Leandro M. de Oliveira

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Do Interior

Nada mudou.
O corpo faz doer,
tem que comer, que respirar e que dormir,
tem a pele fina e o sangue logo em baixo,
provisão farta de dentes e de unhas,
ossos que quebram, articulações que esticam.
Nas torturas tudo isto é tido em conta.

Nada mudou.
O corpo treme como tremeu
antes e após a fundação de Roma,
no século XX antes de Cristo e depois,
torturas há, como antes houve,
apenas a terra diminuiu,
e o que quer que se passe é como se passasse ali à esquina.

Nada mudou.
Há só mais gente.
às velhas culpas novas se juntaram,
reais, insinuadas, fugazes e nenhumas,
mas o grito com que o corpo lhes responde,
é, foi e será um grito de inocência,
numa escala e num registo eternos.

Nada mudou.
talvez só as maneiras, a dança, as cerimónias.
O gesto da mão protegendo a cabeça
permanece o mesmo todavia.
O corpo enrosca-se, arranha-se e arranca-se,
cai das pernas cortadas, encolhe os joelhos,
arroxeia, incha, baba-se e sangra.

Nada mudou.
Fora o curso do rio,
a linha das florestas, da costa, desertos e glaciares.
Entre paisagens assim se desfia a alma,
desaparece e volta, aproxima-se e parte,
estranha para si própria, inabarcável,
certa uma vez e logo incerta de existir,
enquanto o corpo está, está e está
e não tem lugar para onde ir.

*Wislawa Szymborska

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Será tudo mentira?

Será tudo mentira?
Desde quando?
Encurraladas as verdades de outrora
que eram apenas desejos…
E os desejos crescem como as plantas
seguindo as estações…
E o desejo tornou-se uma voz desolada.
Também te dói, dizes.
Bem sei.
Se posso?
Três dias sim, três dias não…
Os dias também perderam as estações.
Desejo poder.

*Sofia Leal

terça-feira, 19 de julho de 2011

Antes de Nascer o Mundo (Fragmentos) II

Mil vezes Ntunzi me fez recordar o motivo por que meu pai me elegera como predilecto. A razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral da nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para um recanto para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de meu pai e ele se ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três anos. Ergui os braços e, em vez de lhe limpar o rosto, coloquei as minhas pequenas mãos sobre os seus ouvidos. Como se quisesse convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse voz. Silvestre fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não tinha morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:
- Alminha!
E nunca mais ele proferiu o nome dela.Nem evocou lembrança do tempo em que tinha sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado em esquecimento.
- E você me ajude, meu filho.
Para Silvestre Vitalício, a minha vocação estava definida: tomar conta dessa insanável ausência, pastorear demónios que lhe abocanhavam o sono. Certa vez, enquanto partilhávamos sossegos, arrisquei:
- Ntunzi diz que lhe faço lembrar a mãe. É verdade, pai?
- É o contrário, você me afasta das lembranças. Esse Ntunzi é que me traz espinhos do antigamente.
- Sabe, pai? Ontem sonhei com a mãe.
- Como pode sonhar com alguém que nunca conheceu?
- Eu conheci, só não me lembro.
- É a mesma coisa.
- Mas recordo a voz dela.
- Qual voz dela? Dordalma quase nunca falava.
- Recordo um sossego que parece, sei lá, parece água. Às vezes penso que me lembro da casa, o grande sossego da casa...
- E Ntunzi?
- Ntunzi o quê, pai?
- Ele insiste que se recorda da mãe?
- Não há dia em que ele não se recorde dela.
Meu pai nada respondeu. Ruminou um novelo de resmungos e, depois, com voz rouca de quem foi ao fundo da alma, afirmou:
- Vou dizer uma coisa, nunca mais vou repetir: vocês não podem lembrar nem sonhar nada, meus filhos.
- Mas eu sonho, pai. E Ntunzi se lembra de tanta coisa.
- É tudo mentira. O que vocês sonham fui eu que criei nas vossas cabeças. Entendem?
- Entendo, pai.
- E o que vocês lembram sou eu que acendo nas vossas cabeças.
O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas.Mas já não havia nem falecidos nem território das almas.O mundo tinha terminado e o seu final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos.O país dos defuntos estava anulado, o reino dos deuses cancelado. Foi assim que, de uma assentada, meu pai falou.Até hoje essa explanação de Silvestre Vitalício me parece lúgubre e confusa. Porém, naquele momento, ele foi peremptório:
- É por isso que vocês não podem nem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro.
- Mas, pai, o senhor não tem memória da nossa mãe?
- Nem dela,nem da casa,nem de nada. Já não me lembro de nada.
E ele se ergueu, rangente, para esquentar o café.Os passos eram de embondeiro que vai arrancando as próprias raízes. Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores da cafeteira.Ainda de olhos fechados, sussurrou:
- Vou dizer um pecado: deixei de rezar quando você nasceu.
- Não diga isso, meu pai.
- Estou-lhe a dizer.
Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas.
- Mas Deus está surdo - disse.
Fez uma pausa para erguer a chávena e saborear o café e, depois, rematou:
- Mesmo que não estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?
Em Jesusalém, não havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai fazia catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus.
*Mia Couto

sábado, 16 de julho de 2011

A descendência de Caim

Num lugar ermo, donde mapas são indiferentes, um homem só vive entre a imensidão das montanhas e a modéstia de sua pequena casa. Um quarto austero, alguns livros de páginas amarelas, um bule amassado de chá, a cama feita com um colchão de palha e a velha escrivaninha única companheira inabalada em anos a fio. Acima de tudo, o negrume da noite é cortado por uma lamparina de bico já gasto ostentando uma pequena chama. Nas raras manhãs onde a enxaqueca ou gota não o atordoam como fossem uma fúria dos antigos amaldiçoados, ele caminha demoradamente entre as árvores, muito talvez invejando a espessura da casca que protege os troncos. Ademais, pensa e escreve. Debruçado no velho móvel sob o auxílio do precário lume, redige cartas a um amigo que nunca existiu. À 03 de março de um ano não pertencente ao calendário gregoriano:

“O mundo vive dias de indecência e superficialidade tamanha que às vezes sem pressentir, a idéia de suicídio me bate como uma das poucas coisas dignas que restaram. Mil vezes me envergonho, integralmente por ter partilhando as minhas mais elevadas aspirações dizendo-as ao público. Aspirações essas que mesmo em tempos muito mais valiosos e profundos, não deveria ter sido partilhadas. Depois de um século de liberdade o homem se vê prostrado sem saber que frutos essa árvore de fato deu, a abertura desmedida à imprensa transformou a vida em mercado, corrompeu o gosto, chacinou a beleza. Viver assim tão a mercê da imposição alheia é existir somente, como gado que foi marcado de forma voluntária. Todavia, abraço a solidão em que me recolho tal como Dante ou Espinosa, mesmo sabendo que esses homens eram muito mais preparados. É inegável que a sua maneira de processar o mundo era muito mais ajustada à solidão que a minha, afinal, os que conseguem inventar “Deus” por companhia jamais conhecerão a solidão que sinto. Sou um aborto da natureza e a minha razão não pode querer pretender mais(...)”

Olha pela janela, fita o opaco vidro com intensidade mesmo percebendo que nada se pode ver além da muralha escura da noite. Depois dessa pausa, mergulha mais uma vez a pena no tinteiro e escreve a frase derradeira:

“A minha fé tão parca, reside agora na esperança, ou na desesperança, de que surja um homem novo que possa demonstrar que tudo é deveras avesso ao que penso, que refunde o pesadelo da vida transformando-o em coisa mais viçosa. Creio que jamais me encontrei em tamanha decadência mas, estranhamente, sinto agora alívio em dizer minhas aspirações mais profundas”.
*Leandro M. de Oliveira

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Além

Muito além de lugar algum é como se beijasse o chão com a força de olhos. Faz o sinal da cruz e escarra sobre ele com a torpeza dos que envelheceram antes da infância. Meu lugar é o que virá e enfim começo a me sentir ressarcido. Ao talhe do artista mais raro, um corpo a simular verdades decaídas.

O que quererá a vida de nós, o que pretenderei eu que já não ouso coisa alguma... A chegada sempre tardia, as muitas intragabilidades da deficiência alheia. O cume de uma montanha só parece algo grandioso visto de baixo, no alto tudo é planície e ordinariedade como em qualquer viela marginal. O espelho mudado na invenção mais incerta, porque sustentar a beleza à luz do dia exige mais que um reflexo sofismático.

Setenta e sete metros abaixo do chão parece ser um bom lugar para se ocultar um cadáver. Todavia, isso não indica o que fazer o aquilo que resta dele. Gerir a transposição da existência numa coisa inominada, apreender a dimensão da verdade depois de haver existido em erro. Algures num planeta parecido com esse, inventado ou percebido pela intuição, pessoas fazem seu trabalho maquinal, riem, comem, lembram, esquecem. Num sítio diverso do que estou agora, tenho a impressão de que o existir existe apenas, com todo o resto sendo algo como uma doença nos olhos.

A tortura mais arcaica, um homem que sangra sozinho. Você só leu sobre o inferno na bíblia, meu amor. Eu, estive lá! Descendo ao Hades com a verdade dos nunca sentiram remorso, determinadamente a querer que a beleza se reinventasse do enxofre de estar vivo. Falhei como um amador barato, não consegui transpor o estige. Agora essa sombra é como todas as outras sombria, e ela ainda está lá. Desfolho os dedos por sobre uma lápide imaterial, taciturnamente um comboio imaginário de homens sem rosto leva o que restou daqui.

Qualquer encruzilhada que dê numa sala sem janelas sou eu, ermo, solene, desabitado. De todos os vícios a vaidade pode e deve ser o mais sórdido. Mergulhar num corpo alhures, arrancar de um organismo exterior a obstinação necessária. Ninguém jamais penetrará esse mistério, a geração que não virá, o entendimento selado onde as mãos não alcançam, como fora sonho ou maldição que não se sente. Imortalidade tem haver com ser incapaz de aceitar a grandeza das coisas. Que é o homem além de um ser amputado?

A consciência assim como vontade nunca se compartilham, amar frequentemente é um nome sofisticado que se criou para rituais antropofágicos.

*Leandro M. de Oliveira

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A Gama do Vazio

Vi este perseguir tal meta e aquele tal outra; vi os homens fascinados por objetos díspares, sob o encanto de projetos e de sonhos ao mesmo tempo vis e indefiníveis. Analisando cada caso isoladamente para descobrir as razões de tanto fervor desperdiçado, compreendi o sem-sentido de todo gesto e de todo esforço.

Existe uma só vida que não esteja impregnada dos erros que fazem viver? Existe uma só vida clara, transparente, sem raízes humilhantes, sem motivos inventados, sem os mitos surgidos dos desejos? Onde está o ato puro de toda utilidade: sol que abomine a incandescência, anjo em um universo sem fé, ou verme ocioso em um mundo abandonado à imortalidade?

Quis defender-me contra todos os homens, reagir contra sua loucura, descobrir sua origem; escutei, vi e tive medo: medo de agir pelos mesmos motivos ou por qualquer outro motivo, de crer nos mesmos fantasmas ou em qualquer outro fantasma, de deixar-me afogar pelas mesmas embriaguezes ou por qualquer outra embriaguez; medo, enfim, de delirar em comum e de expirar em uma multidão de êxtases. Eu sabia que ao separar-me de uma pessoa despojara-me de um erro, que estava pobre da ilusão que lhe deixava…

Suas palavras febris a revelavam prisioneira de uma evidência absoluta para ela e irrisória para mim; ao contato de seu absurdo, despojava-me do meu… A quem aderir sem o sentimento de enganar-se e sem enrubescer? Só pode justificar-se aquele que pratica, com plena consciência, o disparate necessário para qualquer ato, e que não embeleza com nenhum sonho a ficção a que se entrega, do mesmo modo que só se pode admirar um herói que morre sem convicção, tanto mais disposto ao sacrifício quanto entreviu seu fundo.

Quanto aos amantes, seriam odiosos se no meio de suas caretas o pressentimento da morte não os roçasse. É perturbador pensar que levamos para o túmulo nosso segredo — nossa ilusão —, que não sobrevivemos ao erro misterioso que vivificava nosso alento, que excetuando as prostitutas e os céticos todos se perdem na mentira, por que não adivinham a equivalência, na nulidade, das volúpias e das verdades.

Quis suprimir em mim as razões que os homens invocam para existir e para agir. Quis tornar-me indizivelmente normal — e eis-me aqui, no embrutecimento, no mesmo plano que os idiotas e tão vazio como eles.
*Emil M. Cioran

quarta-feira, 11 de maio de 2011

A Multiplicidade do Gênio

Há variedade de gênios como há múltiplos talentos e belezas. Alguns génios são inovadores, outros são pensadores profundos, outros são pessoas de extraordinária habilidade, alguns têm uma imaginação fora de vulgar ou formas enviesadas de ver as coisas, alguns são superiormente inteligentes, outros apaixonadamente curiosos; a maioria é a combinação de, pelo menos, três destas qualidades, constituindo uma mistura volátil de dádivas intelectuais e traços de caráter. As dádivas intelectuais são a habilidade para ver as coisas de ângulos muitíssimo improváveis, de relevar o que não é essencial, e entender o verdadeiro significado do óbvio. Os traços de caráter são a persistência, teimosia, a capacidade para se entregar a grandes esforços, e a indiferença perante o ridículo ou a hostilidade de qualquer um que pense que aqueles fins perseguidos, os objetivos e as inovações em questão, são loucos.

A genialidade tem qualquer coisa da abertura e prontidão mental de uma criança, essa engenhosa capacidade para ver de outro modo, para dar saltos imaginativos e combinar coisas aparentemente inconciliáveis em novos sistemas. Entre os gênios, os grandes pensadores - Platão, Aristóteles, Newton, Kant, Einstein - viram para um lugar onde as raízes de coisas muito diferentes se juntam e enredam subterraneamente. Alguns gênios dificilmente são conscientes do seu poder, mas criam a impressão de uma transbordante abundância de talento. Mozart era um desses. O Talento está também no gênio de pintores e escultores, nos melhores cirurgiões, artesãos, jardineiros e arquitetos. Também há gênios calmos: o gênio dos poetas e dos grandes novelistas, e há gênio visionário nos grandes homens de estado e generais. Alguns gênios devem o seu sucesso ao cuidado, estudo, esforço tenaz, dedicação e "focus", determinação e coragem. outros devem-no a um flash de feliz e excêntrica inspiração no espaço e no tempo certo para ela.
*A.C. Grayling

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Sofismática da mansarda

Semelhante a um amor clandestino, a noite invade as salas antes mais iluminadas. Inscritas em matéria mais líquida que o fogo, sibilas inventam o futuro ainda presas ao hostil passado. A pertinência daquele corpo reside ao longo do edifício, muito embora de forma imaterial. O choque entre mundos deve ser um evento de natureza dúctil, caso contrário, seriam menos acidentados os caminhos que circundam o intransponível cume. Sentir na carne a verdade do mistério é ter de respirar no fundo d’água a plenos pulmões, como se compacta toda a fibra que espera ou se oprime qualquer porção de carne posta em torniquete, não há como retroagir quando se é cegado.

Dir-se-ia do homem que uma vez posto em jornada a um país estrangeiro perdera o caminho de volta pra casa. Sugerir que a crença do lar só existe quando não há mais nada para substituí-la pode ser uma das idéias mais honestas que se ousa. Nesse lugar, onde a fome de justiça conta com recursos tão parcos, só a quimera de alguns raros comporta a resignação necessária. Recorre-se à acolhida como uma porta que da para dentro de si, todo o resto que é lançado fora está igualmente perdido. O mundo a brotar como uma suspeição dos improváveis, pessoas a escavar o peito em busca de um abrigo anti-bombas.

O inteiro universo é uma massa oca e o buraco negro que sugou as constelações sou eu.

Impressentido, por campos abertos vou, ceifando a erva jovem, pisoteando as flores da insistente primavera. A natureza de um homicida não é diferente da de outro homem. No fim todos serão julgados com severidade, apesar de não haver quem saiba exatamente se são mais graves os vícios ou as virtudes ou se acaso há diferença entre eles. Ninguém pode ser belo ou grandioso demais sem que aconteça uma desgraça. Toda força, toda vitalidade há de ser subtraída um dia e aqueles que nos trouxeram aqui estarão na indiferença de suas distâncias, rindo como bêbados insanos.

Ademais da cisma de uma tragédia irreparável, a hesitação da vida rasga a consciência como um túnel.
*Leandro M. de Oliveira

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Como a noite descesse...

Como a noite descesse e eu me sentisse só, só e
[ desesperado diante dos horizontes
[ que se fechavam,
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível
[ Aurora! e vi logo que só as estrelas
[ é que me entenderiam.
Era preciso esperar que o próprio passado
[ desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
— É por aqui!

Onde, entretanto, quem me dissesse
ao espírito cego:
— Renasceste: liberta-te!

Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
— Ó doce e incorruptível Aurora...
se só as estrelas é que me entenderiam?

*Emílio Moura

I

Mas o instante passou. A carne nova
Sente a primeira fibra enrijecer
E o seu sonho infinito de morrer
Passa a caber no berço de uma cova.

Outra carne vírá. A primavera
É carne, o amor é seiva eterna e forte
Quando o ser que viver unir-se à morte
No mundo uma criança nascerá.

Importará jamais por quê? Adiante
O poema é translúcido, e distante
A palavra que vem do pensamento

Sem saudade. Não ter contentamento.
Ser simples como o grão de poesia.
E íntimo como a melancolia.

*Vinicius de Moraes

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Uma Faca Só Lâmina

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como uma bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele como a coisa ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina.

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca.

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

*João Cabral de Melo Neto

domingo, 17 de abril de 2011

Terras de Abril

Terras de Abril, eu, cá fechado
Entre o gozo da rosa incriada
Ante o ermo da noite concreta.
Caminhando vou, involuntariamente
Perpasso ruas, vielas e coisas sem nome.
Não há mérito no movimento, não há
Inserção espacial que não seja arbitrária,
Contrariamente ao repouso do que pesa.

Surpreendo-me agora constante
Entendo súbito o que cresceu enigma,
Soturnamente pelo andrajo perdido
Abraço a Esfinge que sou e erro,
Inconsciente dum carinho maternal.
Eu morro com a memória de ontem,
Depois dela o que resta evade torpe
Como fuga ou vazio da alma.

Não se é senão o que se deixa matar.
A primavera mais uma vez replicante
A flanquear de novos sulcos a terra.
Como se pode viver em paz depois disso?

O que tenho de mais colorido é Ser pálido.
Não ousem roubar daqui essas sombras
Com elas pavimento o caminho
Quem sabe um dia iluminado.

*Leandro M. de Oliveira

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Imprecisão no conhecer

A minha pergunta - aquela que aos meus cinquenta anos, quase me levou ao suicídio - era a mais elementar que reside no fundo da alma de qualquer pessoa, desde a criança estúpida ao sábio ancião, a pergunta sem a qual a vida é impossível, como verifiquei na prática. A questão era: "O que vai resultar do que estou a fazer agora, do que vou fazer amanhã - o que vai resultar de toda a minha vida?"

Expressa de outra maneira, a pergunta será: "Para que tenho de viver, para que tenho de desejar, de fazer seja o que for?" mais uma forma de exprimir a mesma pergunta: "Haverá na minha vida um sentido que não seja eliminado inevitavelmente pela minha futura morte?"

Foi a esta pergunta, expressa de várias maneiras, que procurei uma resposta na sabedoria humana. E descobri que, em relação a esta questão, todos os conhecimentos humanos se dividiam em duas semiesferas opostas, por assim dizer, tendo dois pólos contrários: um negativo e outro positivo; mas também que em nenhum deles havia respostas às questões da vida.

Uma série de conhecimentos parece não reconhecer a questão mas, responde com clareza e exatidão às suas próprias perguntas, colocadas independentemente: é uma série de conhecimentos experimentais, no ponto extremo da qual se encontra a matemática; outra série reconhece a questão, mas não lhe dá resposta: é uma série de conhecimentos especulativos, e no seu ponto extremo encontra-se a metafísica.

(...)

Se nos virarmos para o ramo dessa ciência que tenta dar respostas às questões da vida - a fisiologia, a psicologia, a biologia a sociologia - encontramos uma impressionante pobreza de pensamento, uma enorme imprecisão, pretensões injustificadas de poder resolver questões fora do seu âmbito e as permanentes contradições em que um pensador cai relativamente aos outros e, até, relativamente a si próprio.

(...)

Se nos dirigirmos aos ramos da ciência que não procuram resolver as questões da vida, resolvendo apenas a especificidade das suas questões científicas, ficamos admirados com a força da mente humana, mas sabemos de antemão que não encontramos aqui a resposta às questões da vida. Estas ciências não querem saber da questão da vida. Dizem: "Não temos resposta para a pergunta sobre o que tu és e para que vives, não tratamos disso; mas se quiseres conhecer as leis da luz, dos compostos químicos, as leis da evolução dos organismos, se quiseres saber as leis dos corpos e das suas formas, e a relação dos números e das grandezas, ou as leis do teu intelecto, temos para tudo isso respostas claras, exatas e indubitáveis."
*Liev Tolstói

terça-feira, 12 de abril de 2011

Antes de Nascer o Mundo (Fragmentos)

A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: "Jesusalém". Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, final.

Meu velho, Silvestre Vitalício, nos explicara que o mundo terminara e nós éramos os últimos sobreviventes. Depois do horizonte, figuravam apenas territórios sem vida que ele vagamente designava por "Lado-de-Lá". Em poucas palavras, o inteiro planeta se resumia assim: despido de gente, sem estradas e sem pegada de bicho. Nessas longínquas paragens, até as almas penadas já se haviam extinto.

Em contrapartida, em Jesusalém, não havia senão vivos.Desconhecedores do que fosse saudade ou esperança, mas gente vivente. Ali existíamos tão sós que nem doença sofríamos e eu acreditava que éramos imortais. À nossa volta, apenas os bichos e as plantas morriam. E, nas estiagens, desfalecia de mentira o nosso rio sem nome, um riacho que corria nas traseiras do acampamento.

A humanidade era eu, meu pai, meu irmão Ntunzi e Zacaria Kalash, nosso serviçal que, conforme verão, nem presença tinha. E mais nenhum ninguém. Ou quase nenhum. Para dizer a verdade, esqueci-me de dois semi-habitantes: a jumenta Jezibela, tão humana que afogava os devaneios sexuais de meu velho pai. E também não referi o meu Tio Aproximado.Esse parente vale uma menção: porque ele não vivia connosco no acampamento. Morava junto ao portão de entrada da coutada, para além da permissível distância, e apenas nos visitava de quando em quando. Entre nós e a sua cabana ficava a lonjura de horas e feras.

Para nós, os miúdos, a chegada de Aproximado era razão de festa maior, uma sacudidela na nossa árida monotonia. O Tio trazia mantimentos, roupas, bens de necessidade. Meu pai, nervoso, saía ao encontro do camião onde se amontoavam as encomendas. Interceptava o visitante antes que o veículo invadisse a vedação que circundava o casario. Nessa cerca, Aproximado era forçado a lavar-se para não trazer contaminações da cidade. Lavava-se com terra e com água, fizesse frio ou fizesse noite. Depois do banho, Silvestre desbagageava o camião, apressando as entregas, abreviando as despedidas. Num volátil instante,mais breve que um bater de asas, ante o nosso olhar angustiado, Aproximado voltava a extinguir-se para além do horizonte.

- Ele não é um irmão directo - justificava Silvestre. - Não quero muita conversa, esse homem não conhece os nossos costumes.

Essa humanidadezita, unida como os cinco dedos, estava afinal dividida: meu pai, o Tio e Zacaria tinham pele escura; eu e Ntunzi éramos igualmente negros, mas de pele mais clara.

- Somos de outra raça? - perguntei um dia. Meu pai respondeu:

- Ninguém é de uma raça. As raças- disse ele - são fardas que vestimos.
Talvez Silvestre tivesse razão. Mas eu aprendi, tarde demais, que essa farda se cola, às vezes, à alma dos homens.

- Vem de sua mãe, Dordalma, essa claridade da pele. Alminha era um bocadinho mulata - esclareceu o Tio.

A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado.Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar,um talento para apurar silêncios.Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

- Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.

Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:


- Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.

Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado.Talvez fosse legado de minha mãe,Dona Dordalma,quem podia ter a certeza? De tão calada,ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.


- Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego desta varanda é diferente.

Meu pai. A voz dele era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de silêncio.Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem palavras nem gramática.


Ao longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu era o escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno progenitor.
*Mia Couto

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Causa e Efeito em Hume

Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os dados da nossa memória e dos nossos sentidos. Se tivésseis que perguntar a alguém por que acredita na realidade de um fato que não constata efetivamente, por exemplo, que o seu amigo está no campo ou em França, ele vos daria uma razão, e esta razão seria um outro fato: uma carta que recebeu ou o conhecimento das suas resoluções e promessas anteriores. Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. Todos os nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza. E constantemente supõe-se que há uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os ligasse, a inferência seria inteiramente precária. A audição de uma voz articulada e de uma conversa racional na obscuridade dá-nos segurança sobre a presença de alguma pessoa. Por quê? Porque estes sons são os efeitos da constituição e da estrutura do homem e estão estreitamente ligados a ela. Se analisamos todos os outros raciocínios desta natureza, verificaremos que se fundam na relação de causa e efeito e que esta relação se acha próxima ou distante, direta ou colateral. O calor e a luz são os efeitos colaterais do fogo, e um dos efeitos pode ser inferido legitimamente do outro.

Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta evidência que nos dá segurança acerca dos fatos, deveremos investigar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito.

Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o conhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente conjugados entre si. Apresente-se um objeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suas causas ou dos seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de Adão fossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia ter inferido da fluidez e da transparência da água que ela o afogaria, ou da luz e do calor do fogo, que este o consumiria. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode a nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real de um fato.

(...) Apresentai dois pedaços de mármore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural; ele jamais descobrirá que eles aderirão de tal maneira que se requer grande força para separá-los em linha reta, embora ofereçam menor resistência à pressão lateral. Considera-se também indiscutível que o conhecimento dos eventos que têm pouca analogia com o curso corrente da natureza se obtém por meio da experiência; assim, ninguém imagina que se teria descoberto a explosão da pólvora ou a atração da pedra-ímã por argumentos a priori. Da mesma maneira, quando se supõe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou de elementos de estrutura desconhecida, não temos dificuldade em atribuir todo o nosso conhecimento à experiência. Quem será capaz de afirmar que pode dar a razão última por que o leite e o pão são alimentos apropriados ao homem e não a um leão ou a um tigre?
*David Hume

A Arrogância da Oração

Quando se chega ao limite do monólogo, aos confins da solidão, inventa-se — na falta de outro interlocutor — Deus, pretexto supremo de diálogo. Enquanto o nomeias, tua demência está bem disfarçada e… tudo te é permitido. O verdadeiro crente mal se distingue do louco; mas sua loucura é legal, admitida; acabaria em um asilo se suas aberrações estivessem livres de toda fé. Mas Deus as cobre, as torna legítimas. O orgulho de um conquistador empalidece comparado à ostentação do devoto que dirige-se ao Criador. Como se pode ser tão atrevido? E como poderia ser a modéstia uma virtude dos templos, quando uma velha decrépita, que imagina o Infinito a seu alcance, eleva-se pela oração a um nível de audácia ao qual nenhum tirano jamais aspirou?

Sacrificaria o império do mundo por um só momento em que minhas mãos juntas implorassem ao grande Responsável de nossos enigmas e de nossas banalidades. Entretanto, esse momento constitui a qualidade corrente — e como que o tempo oficial — de qualquer crente. Mas quem é verdadeiramente modesto repete a si mesmo: “Demasiado humilde para rezar, demasiado inerte para transpor o limiar de uma igreja, resigno-me à minha sombra e não quero uma capitulação de Deus ante minhas orações”. E aos que lhe propõem a imortalidade, responde: “Meu orgulho não é inesgotável: seus recursos são limitados. Pensam, em nome da fé, vencer seu eu; na realidade, desejam perpetuá-lo na eternidade, pois não lhes basta esta duração presente. Sua soberba excede em refinamento todas as ambições do século.

Que sonho de glória, comparado ao seu, não se revela engano e vã ilusão? Sua fé é apenas um delírio de grandeza tolerado pela comunidade, porque utiliza caminhos camuflados; mas seu pó é sua única obsessão: gulosos do intemporal, perseguem o tempo que o dispersa. Só o além é bastante espaçoso para suas cobiças; a terra e seus instantes parecem demasiado frágeis. A megalomania dos conventos supera tudo o que jamais imaginaram as febres suntuosas dos palácios. Quem não admite sua nulidade é um doente mental. E o crente, entre todos, é o menos disposto a consentir. A vontade de durar, levada até tal ponto, apavora-me. Recuso-me à sedução malsã de um Eu indefinido. Quero chafurdar-me em minha mortalidade. Quero permanecer normal.” (...)
*Emil M. Cioran

quarta-feira, 6 de abril de 2011

O Bem Viver de Sêneca

Todos os espíritos que alguma vez brilharam consentirão neste único ponto: jamais se cansarão de se espantar com a cegueira das mentes humanas. Não se suporta que as propriedades sejam invadidas por ninguém, e, se houver uma pequena discórdia quanto à medida de seus limites, os homens recorrem a pedras e armas; no entanto, permitem que outros se intrometam em suas vidas, a ponto de eles próprios induzirem seus futuros possessores; não se encontra ninguém que queira dividir seu dinheiro, mas a vida, entre quantos cada um a distribui! São avaros em preservar seu patrimônio, enquanto, quando se trata de desperdiçar o tempo, são muito pródigos com relação à única coisa em que a avareza é justificada.

Por isso, agrada-me interrogar um qualquer, dentre a multidão dos mais velhos: “Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos! Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto deste tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste uma resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como planejaras! Quando empregaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste a aparência imperturbável, o ânimo intrépido? Quantas obras fizeste para ti próprio? Quantos não terão esbanjado tua vida, sem que percebesses o que estavas perdendo; o quanto de tua vida não subtraíram sofrimentos desnecessários, tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis conversações, e quão pouco não te restou do que era teu Compreendes que morres prematuramente.”

Qual é pois o motivo? Vivestes como se fósseis viver para sempre, nunca vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou; vós o perdeis, como se ele fosse farto e abundante, ao passo que aquele mesmo dia que é dado ao serviço de outro homem ou outra coisa seja o último. Como mortais, vos aterrorizais de tudo, mas desejais tudo como se fôsseis imortais. Ouvirás muitos dizerem: “Aos cinquenta anos me refugiarei no ócio, aos sessenta estarei livre de meus encargos.” E que fiador tens de uma vida tão longa? E quem garantirá que tudo irá conforme planejas? Não te envergonhas de reservar para ti apenas as sobras da vida e destinar à meditação somente a idade que já não serve mais para nada? Quão tarde começas a viver, quando já é hora de deixar de fazê-lo. Que negligência tão louca a dos mortais, de adiar para o quinquagésimo ou sexagésimo ano os prudentes juízos, e a partir deste ponto, ao qual poucos chegaram, querer começar a viver!
*Sêneca

Os Tempos

TERCEIRO / CALMA

Que costa é que as ondas contam
E se não pode encontrar
Por mais naus que haja no mar?
O que é que as ondas encontram

E nunca se vê surgindo?
Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?
lha próxima e remota,

Que nos ouvidos persiste,
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho

A praia onde o mar insiste,
Se à vista o mar é sozinho?
Haverá rasgões no espaço
Que dêem para outro lado,

E que, um deles encontrado,
Aqui, onde há só sargaço,
Surja uma ilha velada,
O país afortunado

Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada?

*Fernando Pessoa

terça-feira, 5 de abril de 2011

O problema do Subjetivismo

O maior problema consiste no subjetivismo fazer o bem depender completamente do que gostamos. Se "X é um bem" e "Gosto de X" significam a mesma coisa, o seguinte raciocínio é válido:

Gosto de X.

- X é um bem.
Suponha por momentos que os amigos irresponsáveis da Ana Subjetivista gostam de se embebedar e magoar pessoas. Poderiam então deduzir que as ações abaixo são um bem:

Gosto de me embebedar e magoar pessoas.

- Apanhar bebedeiras e magoar pessoas é um bem.

Mas este raciocínio não está correto: a conclusão não se segue da premissa. O subjetivismo oferece-nos uma abordagem demasiado imperfeita da moral, em que apenas fazemos o que gostamos.

Pior ainda, os meus gostos e aversões tornariam as coisas boas ou más. Suponha que gosto de magoar pessoas; isto faria com que fosse um bem magoar pessoas. Imagine que eu gosto de reprovar estudantes apenas pelo prazer que isso provoca; isto faria com que reprovar estudantes apenas pelo gozo se tornasse um bem. Tudo o que me agradasse tornar-se-ia um bem — ainda que eu gostar disso fosse apenas o produto da estupidez e da ignorância.

O racismo fornece-nos um bom teste para as perspectivas éticas. O subjetivismo é insatisfatório neste ponto dado afirmar que fazer sofrer pessoas de outras raças é um bem desde que eu goste de o fazer. Depois, o subjetivismo implica que Hitler disse a verdade quando afirmou "O assassínio dos judeus é um bem" (visto que este é um enunciado que apenas significa que Hitler gostava de matar judeus). O subjetivismo tem implicações inaceitáveis sobre o racismo.

A educação moral dá-nos outro teste. Se aceitarmos o subjetivismo, de que modo educaremos as nossas crianças para pensarem sobre questões morais? Ensiná-las-íamos a seguir os seus sentimentos, a deixarem-se guiar pelos seus gostos e aversões; não lhes forneceríamos um guia para formarem sentimentos responsáveis e sensatos. Ensinaríamos às crianças que "Gosto de magoar pessoas — portanto, magoar pessoas é um bem" é uma forma correta de raciocinar. O subjetivismo implica também consequências bizarras em educação moral.

Não é difícil expor as debilidades do subjetivismo. Mas, nesse caso, por que razão é tão plausível esta doutrina? Uma das razões é que aquilo de que gostamos corresponde, em geral, ao que pensamos ser um bem. O subjetivismo explica isto: dizer que uma coisa é "boa" significa que gostamos dela. Mas é possível dar outras explicações. Talvez estejamos motivados para gostar daquilo que descobrimos ser um bem (através da razão ou da religião). Portanto, não há apenas uma forma de explicar a ligação entre o que gostamos e o que julgamos um bem.
*Harry Gensler

A metafísica Kantiana

Kant, no entanto - e este é um dos tópicos fundamentais da sua filosofia - apareceu com uma terceira categoria de juízos, a que chamava "sintéticos a priori". São juízos que dizem algo acerca do mundo e são também necessariamente e universalmente verdadeiros. Estas verdades por definição não poderiam derivar da experiência: não podemos deduzir nada de necessário da experiência. Mas, segundo Kant, se a metafísica for finalmente possível, se pudermos conhecer coisas que vão para além da experiência - acerca de Deus, do universo, da vontade livre, da imortalidade da alma humana - então o nosso conhecimento dessas coisas tem de consistir em juízos "sintéticos a priori."

Esta conclusão, no entanto, parece negar a possibilidade de qualquer metafísica racional, porque os juízos "sintéticos a priori" só podem ser acerca dos possíveis objetos da experiência. A nossa experiência contém elementos passivos e contingentes, mas também elementos necessários: o espaço e o tempo. Espaço e tempo não são entidades autônomas mas, construções mentais. Podemos representar a idéia de um espaço vazio, mas não podemos conceber objetos materiais fora do espaço, sem características espaciais; também poderemos representar a idéia de um tempo vazio, mas não podemos conceber acontecimentos como tendo lugar fora do tempo. Tempo e espaço são formas necessárias, ou categorias, da nossa experiência.
*Leszek Kolakowski

A Esperança, o que é?

Parece que a esperança não é uma virtude:

1. Com efeito, diz Agostinho: “Ninguém usa mal da virtude”. Ora, usa-se mal da esperança, porque ela comporta, como as outras paixões, meio e extremos. Logo, a esperança não é uma virtude.

2. Além disso, nenhuma virtude procede de méritos, porque “a virtude, Deus a opera em nós sem nós”, como diz Agostinho. Ora, “a esperança tem por origem a graça e os méritos”, como diz o Mestre das Sentenças. Logo, a esperança não é virtude.

3. Ademais, “A virtude é a disposição do que é perfeito”, diz o livro VII da Física. Ora, a esperança é disposição do que é imperfeito, isto é, daquele que não tem aquilo que espera. Logo, a esperança não é virtude.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, Gregório diz que as três filhas de Jó significam as três virtudes: fé, esperança e caridade. Logo, a esperança é uma virtude.

Segundo o Filósofo: “a virtude de cada coisa é o que torna bom o que a possui e torna boa a sua ação”. Logo, é necessário que onde se encontra um ato bom do homem, este ato corresponde a uma virtude humana. Ora, em todas as coisas submissas a regras e a medidas, o bem se reconhece pelo fato de que uma coisa atinge a sua regra própria; assim, dizemos que a roupa é boa, se não vai além nem aquém da medida devida. Ora, para os atos humanos, como foi dito acima (I-II, q.71, a.6), há duas medidas: uma imediata e homogênea, que é a razão; outra, suprema e transcendente, que é Deus. Por isso, todo ato humano que esteja de acordo com a razão ou com o próprio Deus é bom. Mas, o ato da esperança, do qual agora falamos, se refere a Deus. Com efeito, como já foi dito, quando se tratou da paixão da esperança, o objeto da esperança é um bem futuro, difícil, mas que se pode obter. Ora, uma coisa nos é possível, de dois modos: por nós mesmos ou por outrem, como está claro no livro III da Ética. Enquanto, pois, esperamos alguma coisa como possível pelo auxílio divino, nossa esperança se refere ao próprio Deus em cujo auxílio confia. E, por isso, é manifesto que a esperança é uma virtude, pois ela torna bom o ato do homem, que atinge a devida regra.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

1. Nas paixões, o meio termo da virtude consiste na obediência à reta razão; e nisso consiste a natureza da virtude. Por onde, também na esperança, considera-se o bem da virtude quando o homem, pela esperança, atinge a regra devida, que é Deus. Portanto, ninguém pode usar mal da esperança que busca a Deus, como nem da virtude moral que atinge a razão, porque o fato mesmo de atingir é o bom uso da virtude. Ainda que a esperança da qual agora falamos não seja paixão, mas hábito da alma, como a seguir se demonstrará (q. 18, a. 1).

2. A esperança provém do mérito, quando se fala da realidade mesma que se espera; enquanto alguém espera alcançar a bem-aventurança por graça e méritos, ou enquanto ao ato da esperança formada. Mas o hábito mesmo da esperança, pelo qual esperamos a bem-aventurança, não é causado pelo mérito, mas exclusivamente pela graça [Nota: O ato de esperança provém da virtude infundida de esperança: pode, portanto, ser meritório. Já a virtude infundida provém diretamente de Deus, e não de um mérito prévio].

3. Quem espera é, na verdade, imperfeito, se se considera o bem que ele espera obter, mas ainda não tem; mas é perfeito no sentido de ter atingido sua própria regra, isto é, Deus, com cujo auxílio ele conta.
*Tomás de Aquino
**Lembrando que a obra tomasiana está assentada sobre os pilares de uma releitura meticulosa de Aristóteles, a fim de promover sua produção no código de uma filosofia laica, pode-se interpretar sempre a palavra "Deus" no sentido de "Razão (logos)", tal como é nos gregos.