sábado, 7 de agosto de 2010

Medida da Significação

I

PROCUREI-ME nesta água da minha memória
que povoa tôdas as distâncias da vida
e onde, como nos campos, se podia semear, talvez,
tanta imagem capaz de ficar florindo...

Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,
para sentir, na noite, o aroma da minha duração.

Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:
desapareci como aquele — no entanto, árduo — ritmo
que, sôbre fingidos caminhos,
sustentou a minha passagem desejosa.

Acabei-me como a luz fugitiva
que queimou sua própria atitude
segundo a tendência do meu pensamento transformável.

Desde agora, saberei que sou sem rastros.
Esta água da minha memória reúne os sulcos feridos:
as sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.

E aquilo que restaria eternamente
é tão da côr destas águas,
é tão do tamanho do tempo,
é tão edificado de silêncios
que, refletido aqui,
permanece inefável.


II

Voz obstinada, por que insistes chamando
por um nome que não corresponde mais a mim?
Não é do meu propósito que fiques ao longe sòzinha.

Nem tu sabes que espécie de saudade abrolha na noite
e como o silêncio tenta mover-se inùtilmente,
quando diriges teus ímãs sonoros,
sondando direções!

Não é do meu propósito, ó voz obstinada,
mas da minha condição.

As aparências dispersaram-se de mim,
como pássaros:
que sol se pode fixar nesta existência,
para te definir a minha aproximação?

Minhas dimensões se aboliram nos limites visíveis:
como podes saber onde me circunscrevo,
e de que modo me pode o teu desejo atingir?

Eu mesma deixei de entender a minha substância;
tenho apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.

Como podes chamar por mim como às coisas concretas,
e assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?

III

Pela experiência do teu contentamento,
crio formas que vistam meus pensamentos irreveláveis,
e modelo fisionomias com que te possa aparecer.

Pisarei minha solidão com renúncia e alegria
e, por entre caminhos assombrados,
resoluta virei até onde te encontres,
cortando as sombras que crescem como florestas.

Eu mesma me sentirei alucinada e exquisita,
com êsse alento das nebulosas sinistras
que se desenvolvem nas febres.

Não saberei precisamente quando me verás,
nem si compreenderei a linguagem que falas,
e os nomes que teem as tuas realidades
e o tempo dos outros acontecimentos...

Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza
é que tua voz continuará chamando por mim, obstinada,
embora eu não possa estar mais perto nem mais viva,
e se tenha acabado o caminho que existe entre nós,
e eu não possa prosseguir mais...

IV

A água da minha memória devora todos os reflexos.

Desfizeram-se, por isso, tôdas as minhas presenças
e sempre se continuarão a desfazer.

É inútil o meu esforço de conservar-me;
todos os dias sou meu completo desmoronamento:
e assisto à decadência de tudo,
nestes espelhos sem reprodução.

Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,
conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.

Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,
para veres o que dêles resta
depois que chegarem a êstes ermos domínios
onde figuras e horas se decompõem.

Não precisaremos falar mais nem sentir:
seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.

E saberás distinguir as coisas que perecem desoladas,
olhando para esta água interminável e muda,
que não floriu, que não palpitou, que não produziu,
de tanto ser puramente imortal...

*Cecília Meireles

Um comentário:

Monica disse...

Medida da Significação

Fiquei quieta um tempo.
Não tenho palavras, nem sei
se é para ter, já meio tendo...

Leandro, entregando consciência
nesse grau tão apurado.

" Tal maçãs de ouro
em salvas de prata,
tal é a palavra dita
em seu tempo."

( provérbios de Salomão )