segunda-feira, 27 de setembro de 2010

72 horas

Como se a vida redefinisse o ser ao do tempo e esse, um encontro além de seus domínios. Insuspeitado, o desvario infinito, onde cada segundo é eterno e todo o porvir cabe num suspiro. Assim foi, num arremate do que não se prevê, bruxas esquecidas sibilaram um canto de memória. A casa agora inundada, tudo é luz. Entre a linha de montanha e céu, um refúgio sinuoso no horizonte, como a primavera insinua lábios e mãos entrelaçadas. De ferro fundido ao passado, o chão a frente pavimenta o cotidiano mais leve. As casas e seu testemunho, o que é em desacordo finda em ruínas. Pela observação da natureza apreende-se que o sol sempre volta a liquefazer o granizo que cobre a terra, e o peso do céu torna outra vez numa coisa menos densa.

Eu te amei por setenta e duas horas a fio. Meus olhos cegaram na luz como ao admirar um deus antigo. Minha voz era o grito de todos os famintos do mundo, a nau de todo Pelegrino que deseja se afogar. Comi de tua carne, bebi de teu sangue. Seu corpo era impulso e refúgio, alimento e flagelo. Todavia, o inexorável se cumpriu enfim. O instante se perdeu, o granizo e o sol transmigraram como em aporte. Nada restou do caminho pretérito do mesmo modo que nada nunca resta além de uma cisma incurável das experiências possíveis. Voltamos ao país das pessoas de sal. Há uma ferida aberta em cada sonho, uma quimera impiedosa a debater a planta contra seu chão.

Encimesmadamente da sede que a boca contém. Como parto e amputação, tudo vai, tudo deflui. Uma foto é o caminho simbólico da denuncia de uma memória decrépita. Perenizar um momento faz parte das buscas dos que não sabem recomeçar. É o crime dos que perderam o contato com a fonte, um tonel de Danáides obsoletas no espaço. Aparte a representação, cada nicho é decadência. Pessoas são pessoas, se fossem algo mais já teriam transcendido essa condição. Nesse carrossel vindo de uma infância desbotada, o querer segue a girar em trajes maltrapilhos. A graça não habita uma casa amaldiçoada. Talvez. A potência deve residir no afastamento singular donde ninguém nunca tocou. Ajoelhar-se ao encontro pode significar lançar mão do que foi aprendido até aqui.

Apreender um corpo alheio. No circo de dentro vive um domador inverossímil, ele acaricia a fera, embala seu sono. Mas o coração é um órgão de fogo, sua fúria resume tudo. E a alma como uma caverna que é um bloco impenetrável por fora e uma coisa oca por dentro, deixou-se por mérito o reino do eco pra sempre perdido. Não quero ter alma, não quero ter metafísica. Por deus se ainda restou algum, não quero ganhar o prêmio Nobel da paz! Ocorre que o infinito pesa como uma tempestade de chumbo e não houve tempo hábil a fazer um telhado em minha casa. Um escarro seria um ato de descortesia, não fosse as senhoritas desse tempo serem mais abomináveis que vermes de outrora. Todo amor que é vivido se torna corrupto. Todo louvável é hipotético. Felicidade a dois é um cinismo ácido.
*Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Kant e moralidade

Problema central: Em que consiste a lei moral? Como determinar o valor ético do comportamento?

Tese central: A doutrina do imperativo categórico, tese importante em Kant, a¬rma que um comportamento só pode ser considerado moral quando é universalizável. Existem comportamentos que a consciência, ao universalizar a vontade individual, pode reconhecer como certo.

Se eu penso em um imperativo hipotético não sei o que acontecerá até que ele se apresente a mim. Se, ao contrário, penso em um imperativo categórico sei imediatamente o que convém.

De fato, o imperativo, além da lei, não contém senão a necessidade, em princípio, de ser conforme a tal lei, sem que a lei se submeta a nenhuma condição.
Conseqüentemente, o que resta não é senão a universalidade de uma lei em geral, à qual a máxima da ação deve se conformar, e é somente esta conformidade que o imperativo apresenta propriamente como necessidade...

Primeiro caso

Um homem, que uma série de males acabou por levar ao desespero, sente um grande desprazer pela vida, mas, todavia, ainda esta de posse de sua razão para poder perguntar-se se não haveria uma violação do dever para consigo mesmo em tirar a própria vida.
Ele procura, então, saber se a máxima da sua ação poderia tornar-se uma lei universal. A sua máxima seria esta: por amor a mim mesmo, eu estabeleço o princípio de encurtar a própria vida a partir do momento em que, prolongando-a, tenho mais males a temer do que satisfações a esperar. A questão agora é somente saber se esse princípio do amor a si poderia tornar-se uma lei universal.

Porém, logo percebe que uma natureza cuja lei fosse destruir a própria vida, apoiando-se justamente naquele sentido cuja função especial é iniciar o desenvolvimento da vida, estaria em contradição consigo mesma e não poderia subsistir. Conseqüentemente, essa máxima não poderia absolutamente ocupar o lugar de uma lei universal, portanto, contrária ao princípio supremo do dever.

Segundo caso

Um outro homem é levado pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Ele sabe que não poderá devolvê-lo, mas sabe também que nada lhe será emprestado, se ele não se empenhar seriamente em devolvê-lo na época determinada. Ele tem vontade de fazer esta promessa, mas tem a consciência su¬ficiente para se perguntar: não é proibido e contrário ao dever se livrar da necessidade deste modo?

Supondo, porém, que ele tomasse essa decisão, a máxima da ação signifi¬caria: quando eu acredito precisar de dinheiro logo peço emprestado, prometendo devolvê-lo, mesmo sabendo que não farei nunca. Ora, é certamente possível que esse princípio do amor a mim mesmo, ou da utilidade própria se conecte com todo o meu bem-estar futuro. Mas no momento isto é justo? Transformo, portanto, este problema em caráter universal. O que aconteceria se minha máxima se tornar-se uma lei universal?

Ora, ela nunca poderia valer como lei universal... Porque admitir como lei universal que todo homem que pensa em se encontrar em necessidade possa prometer tudo o que lhe passa pela cabeça com o propósito de não cumprir; nada tornaria impossível qualquer promessa. Ninguém mais acreditaria mais naquilo que lhe é prometido.

Terceiro caso

Finalmente, um homem que é bem sucedido em tudo, vendo que os outros (a quem poderia muito bem ajudar) estão vivendo com grandes difi¬culdades, assim raciocina: O que me importa? Que cada um seja feliz com o que o Céu manda, ou seja, feliz por si mesmo... não estou disposto a contribuir para o seu bem-estar ou ajudá-lo na necessidade.

Ora, se um tal modo de pensar se tornasse uma lei universal, a espécie humana poderia sem dúvida subsistir em melhores condições do que quando todos falam continuamente de simpatia e benevolência, e até se empenham em praticá-las eventualmente, mas depois, ao contrário, assim que possível, os prejudicando de alguma outra maneira.

Mas, apesar de ser possível que subsista uma lei universal conforme esta máxima, é por outro lado impossível querer que tal princípio valha universalmente como lei universal. Porque a intenção de tomar esse partido contradiria a si mesma, uma vez que podem existir casos em que esse homem possa precisar do amor e da simpatia de outrem, então ele mesmo seria privado de esperar obter a assistência desejada, por força da mesma lei instituída por sua vontade.
*Kant adaptado do Espaço Ética

Viagem ao continente

Estranho que todos queiram começar um relato com frases de efeito, confetes não resumem a mesma substância de uma confissão espontânea. Maquiar a tragédia tem haver com qualquer pedido de perdão que reste irrealizável. Dos imateriais auto-falantes nos vem notícias de terra incivilizada, escrever ou pintar é uma tentativa surda de extirpar um tumor usando as mãos. Não pode funcionar, a incisão necessita frieza cirúrgica. E num lugar em que ninguém pode aspirar ser, eu sou o ártico de todo sul tranqüilo, a norte de qualquer alma que merece uma segunda chance.

Nada é como deveria ser, perdeste o melhor amigo, algumas carnes feitas de teu corpo feneceram diante de teus olhos... Tome um café, ou desmaie de letargia enquanto pensa. No final o que conta é poder perceber o humor das coisas simples, pode-se engavetar o que passou e recomeçar por entre girassóis. Pra outra vez se perder e se achar, e se consumir, e experimentar-se a si mesmo durante a queda em tantos descaminhos quanto forem as estrelas do céu. Isso tudo faz lembrar um teatro em decadência, do tipo com cortinas que teimam em se prender quando puxadas para o entre-ato. A ferrugem contida nas articulações de um mecanismo possui encanto singular, todavia se não demovê-la, acaba fazendo do espetáculo algo monótono.

Cada dor merece um relicário adornado, tu bem o sabes. Entre a fronteira cinza de alucinação e potência, as cores surgem como pássaros por aqui. Como passar pela nau do Caronte e permanecer a si mesmo, e ser gente em labores titânicos. Ademais, toda flor é digna de ser colhida, não fosse a aspereza de alguns espinhos, talvez a seda das pétalas permaneceria oculta. O tempo assim como as estórias são uma forma de falsear o que se sente, velhice é coisa de quem aprendeu a se guiar pela cegueira que vem de fora.

Mais um pouco e tudo já terá se esvaído, um segundo, e tudo bastará ao eterno. Há uma tempestade oculta em cada aspiração que a alma consente, como desejar fosse liberar um trovão indômito. Tudo é quando se quer, nada pode quando se esquece. Até as ilhas mais longínquas flertam com o continente quando a maré esta calma. Abra bem os olhos, depois feche-os quando convir. A partir desse ponto o que virá é inevitável. Deixe de rastejar e reformule seu par de asas.
*Leandro M. de Oliveira
**À Monica com gravidade

23 – IX

No hay tiempo.
Ya no hay tiempo.
Pero, ¿alguna vez hubo tiempo?

La ilusión de la vida por delante,
se conjuga con el verbo
de la vida por detrás.

Y todo transcurrir no es más que un punto,
quizá un punto extensible
o el revés de ese punto,
porque el tiempo es puntual.
Un punto que a veces se desliza levemente,
como una gota de asombro de la luz
o un inesperado corpúsculo de sombra,
tan sólo para justificar algo parecido a un nivel
en el barómetro casi fijo
que mide la presión imposible de la vida.

O tal vez simplemente
la presión diagonal de lo imposible.

*Roberto Juarroz

Refundação da idéia

Mil trombetas rachadas alardeiam um legado maldito, quebrando consigo o frágil silêncio: Gostar da vida é um ato obsceno! Quantas mãos e corpos podem se necessários até a conclusão da grande obra? Contar membros ou esperas nada faz de afinidade com o alquímico das utopias. Ela continuará distante, fingindo no silêncio, ademais todo gesto sequioso sofrerá condenação num lugar onde a morte do desejo há muito fora decretada. Quem busca uma catarse deve se concentrar no teatro, o mundo real tem sido bem mais insosso. Na realidade nada há de papável, não se sabe ao certo a receita de um sono profundo. E que é realidade enfim, senão o nome mais traiçoeiro da fantasia absurda.

Cotidianamente seguem homens a passar por mim. Como um covil de verificações incorpóreas ou um trem que sem alarde apita às tantas da noite, olho o comboio de olhos em espanto. Na distância surda, respirar parece com ser oprimido por escombros intangíveis. Por entre a fresta aberta no sonho, a cisterna oculta da alma às vezes abriga entes imaginários bradando um desespero incólume. Uma boa nova depois de anos de barbárie: “Deus foi assassinado a golpes de machado, somos livres enfim!”

Tire os sapatos e dance de um maneira que cause espanto, não há censuras no país da indignidade. Tudo que nossos antepassados foram significa quando muito aquilo que esperamos deles. Amar é usar lentes desfocadas, e isso é repugnante demais pra qualquer ser que se julgue em síntese, livre. Prender-se por vontade é clamar por uma amputação sem anestesia, nunca da certo.

O inferno foi evacuado, demônios ardilosos rodam a casa. Não há nada no logro dos deuses além de charlatanismo e terror psicológico de quinta. Aquele que ama o seu próximo deve esfaqueá-lo pelas costas! O único antídoto possível parece ser uma dose cavalar de desengano. Que cada altar, crucifixo ou templo seja uma latrina para ti, urine sem piedade. Seus dejetos são mais limpos que o sangue de qualquer profeta suicida. Maldito seja todo aquele que disser o contrário.

A divindade esvaziou o homem porque tudo que há de excelência no gênio humano agora é creditado num ente hipotético. A catástrofe parece infinda, a lida entre homens tornou-se rasa, o realmente sublime só é possível fora desse mundo, isso tem que parar. A vida é um acidente da matéria, a consciência é uma vingança embaraçosa contra os fatos. Há lodo demais no pântano da eternidade, quanto mais precária uma coisa é, quão mais bela há de ser. Se o problema é encontrar o paraíso, ele está aqui. Entre lençóis e coxas, abraços e encontros. Na flor, na pedra e no espinho. A beleza é saber que tudo declina, que nada é perene, como a flor que murcha e a pedra se desfaz em pó.

A vida pode ser uma droga completa, mas é engraçada. Não deve haver implicações maiores senão a de vivê-la. As tradições tem ensinado uma gama larga de pornografias sem sentido, essa masturbação mental precisa conhecer seu fim. Por que tudo tem que ser feio, sujo ou pecaminoso? Isso é loucura e ingratidão com o que temos.Talvez calhe que o mais adequado seja pensar no todo como um estado de graça. Abrir os olhos pode ser um fim em si mesmo, por mais penoso que pareça.
*Leandro M. de Oliveira

O gene egoísta (parte 2)

(...) Vou falar de como as coisas evoluíram. Não pretendo dizer de que maneira nós, os seres humanos, deveríamos nos comportar moralmente. Insisto neste ponto porque estou ciente do risco de ser mal interpretado por aquelas pessoas (numerosas, infelizmente) que não são capazes de diferenciar a declaração da crença num dado estado de coisas de uma defesa de como as coisas devam ser. Pessoalmente, acredito que uma sociedade baseada apenas na lei do egoísmo impiedoso dos genes seria uma sociedade execrável. Mas, infelizmente, por mais que se considere uma coisa execrável, ela não deixa, por isso, de ser verdade.

(...) Tratemos então de ensinar a generosidade e o altruísmo, porque nascemos egoístas. Tratemos de compreender o que pretendem os nossos próprios genes egoístas, pois só assim teremos alguma chance de perturbar os seus desígnios, algo que nenhuma outra espécie jamais aspirou fazer.


Como corolário dessas observações sobre o ensinar, devo dizer que é um erro - e, a propósito, bastante comum - supor que os traços herdados geneticamente são, por definição, fixos e inalteráveis. Os nossos genes podem nos instruir a sermos egoístas, mas não somos necessariamente forçados a obedecê-los a vida toda. Pode apenas ser mais difícil para nós aprender o altruísmo do que seria se estivéssemos geneticamente programados para sermos altruístas. Entre os animais, o homem é dominado de uma maneira muito singular pela cultura, por influências aprendidas e transmitidas de geração em geração. Alguns diriam que a importância da cultura é tão grande que os genes, egoístas ou não, são virtualmente irrelevantes para a compreensão da natureza humana. Outros discordariam. Tudo depende de onde nos situamos no debate sobre a "natureza versus cultura" como determinantes dos atributos humanos. (...) Se os genes de fato se mostrarem totalmente irrelevantes na determinação do comportamento humano moderno, e se formos com efeito os únicos entre os animais com os quais isso acontece, será, no mínimo, interessante nos indagarmos sobre a regra em relação à qual nos tornamos tão recentemente a única exceção. E, se a nossa espécie não for assim tão excepcional como gostaríamos de acreditar, será ainda mais importante nos indagarmos sobre essa regra.

(...) A lógica do meu argumento sobre o "gângster de Chicago" é inteiramente diferente. Ela funciona como segue. Os humanos e os babuínos evoluíram por meio da seleção natural. Se examinarmos o modo como a seleção natural opera, ele parece sugerir que qualquer coisa que tenha evoluído por meio da seleção natural deve ser egoísta. Portanto, é de esperar que, ao observarmos o comportamento dos babuínos, dos seres humanos e de todas as outras criaturas vivas, descobriremos que se trata de um comportamento egoísta. Se a nossa expectativa não se confirmar, se verificarmos que o comportamento humano é verdadeiramente altruísta, então estaremos diante de um fato intrigante, de algo que requer uma explicação.

Antes de prosseguir, precisamos de uma definição. Uma entidade, como um babuíno, por exemplo, será considerada altruísta se ela se comportar de forma a aumentar o bem-estar de outra entidade semelhante, com prejuízo de si mesma. O comportamento egoísta é aquele que tem exatamente o efeito oposto. O "bem-estar" é definido como "probabilidade de sobrevivência", ainda que o efeito sobre as expectativas reais de vida e de morte seja tão pequeno a ponto de parecer desprezível. Uma das conseqüências mais surpreendentes da teoria darwiniana é que mesmo as influências diminutas, aparentemente triviais, podem ter sobre as probabilidades de sobrevivência um impacto decisivo na evolução. Isso se deve à enorme quantidade de tempo disponível para que tais influências revelem seus efeitos.

É importante perceber que as definições acima apresentadas, tanto de altruísmo como de egoísmo, são comportamentais, e não subjetivas. Não me ocuparei aqui da psicologia das motivações. Não vou discutir se as pessoas que se comportam de maneira altruísta "na realidade" o fazem por motivos egoístas secretos ou subconscientes. Pode ser que seja assim e pode ser que não seja, e talvez nunca cheguemos a saber ao certo; de todo modo, não é disso que (se) trata. A minha definição visa somente a discernir se o efeito de uma ação consiste em diminuir ou aumentar as perspectivas de sobrevivência do presumível altruísta e as perspectivas de sobrevivência do presumível beneficiário.

É muito complicado demonstrar os efeitos do comportamento quando se trata das perspectivas de sobrevivência no longo prazo. Na prática, quando aplicamos a definição ao comportamento real, temos de qualificá-lo com o termo "aparentemente". Uma ação aparentemente altruísta é aquela que, superficialmente, parece tender a tornar a morte do altruísta mais provável (por pouco que seja) e a favorecer a sobrevivência do beneficiário. O exame mais detalhado revela, muitas vezes, que atos de altruísmo aparente são, na realidade, atos de egoísmo disfarçados. Uma vez mais, não pretendo dizer com isso que os motivos subjacentes sejam secretamente egoístas, e sim que os efeitos reais da ação sobre as perspectivas de sobrevivência são o oposto daquilo que havíamos pensado a princípio.

Fornecerei alguns exemplos de comportamentos aparentemente egoístas e de comportamentos aparentemente altruístas. Tendo em vista a dificuldade de evitar certos vícios de pensamento subjetivo quando lidamos com a nossa própria espécie, darei preferência a exemplos relativos a outros animais. Primeiro, alguns exemplos variados de comportamentos egoístas em animais individuais.

Os guinchos constroem seus ninhos em grandes colônias, e os mantêm separados uns dos outros por poucos palmos de distância. Ao nascer, os filhotes são pequenos e indefesos e, portanto, fáceis de engolir. É bastante comum que uma fêmea espere a sua vizinha virar as costas, possivelmente para pescar, e então se lance sobre um dos seus filhotes para engoli-lo inteiro. Deste modo, ela obtém uma refeição farta e nutritiva sem ter tido o trabalho de apanhar um peixe, e sem deixar o próprio ninho desprotegido.

Mais conhecido é o canibalismo macabro das fêmeas do louva-a-deus. Os louva-a-deus são grandes insetos carnívoros. Normalmente, alimentam-se de insetos menores, como as moscas, mas atacam praticamente tudo o que se move. Na época do acasalamento, o macho se arrasta com cautela na direção da fêmea, monta sobre ela e copula. Se tiver a oportunidade, a fêmea o come, começando por lhe arrancar a cabeça, quando o macho estiver se aproximando, logo que ele tiver montado nela, ou ainda depois que tiverem se separado. Para nós, pareceria mais sensato que ela esperasse a cópula se completar antes de começar a devorá-lo. Porém, a perda da cabeça não parece privar o restante do corpo do seu cadenciado movimento sexual. Na realidade, uma vez que a cabeça do inseto é a sede de alguns centros nervosos inibitórios, é possível que a fêmea melhore o desempenho sexual do macho ao lhe devorar a cabeça. Se assim for, isso seria um ganho secundário. O benefício primário é a boa refeição que ela obtém.

A palavra "egoísta" pode parecer demasiado branda para se aplicar a casos tão extremos como o canibalismo, muito embora estes se ajustem muito bem à nossa definição. Talvez possamos sentir uma empatia mais direta com o conhecido comportamento covarde dos pingüins-imperadores na Antártida. Observou-se que eles permaneciam de pé à beira d'água, hesitantes antes de mergulhar, em virtude do perigo de serem devorados pelas focas. Bastava que um deles mergulhasse para que os demais soubessem se ali havia ou não uma foca. Mas, naturalmente, nenhum queria servir de cobaia, de modo que todos ficavam esperando e, às vezes, chegavam mesmo a tentar empurrar-se uns aos outros para dentro d'água.

Mais habitualmente, o comportamento egoísta pode consistir apenas na recusa em partilhar um recurso valioso, tal como o alimento, o território ou os parceiros sexuais. Vejamos agora alguns exemplos de comportamentos aparentemente altruístas.

A picada das abelhas-operárias é um comportamento defensivo muito eficiente contra os ladrões de mel. Mas as abelhas que picam são lutadores camicase. No ato da picada, os órgãos vitais são normalmente arrancados do seu corpo, e o inseto morre pouco depois. Pode ser que a sua missão suicida tenha posto a salvo o estoque vital de alimento da colônia, no entanto ela própria já não estará presente para tirar proveito disso. De acordo com nossa definição, este é um comportamento altruísta. O leitor deve lembrar-se de que não estamos nos referindo a motivações conscientes, as quais podem ou não estar presentes, tanto aqui como nos exemplos de comportamento egoísta, porém isso é irrelevante para a nossa definição.

Dar a própria vida pelos amigos é decerto um gesto altruísta, do mesmo modo como correr riscos pelo bem deles. Muitos passarinhos, ao ver aproximar-se um predador voador, tal como um falcão, disparam gritos de "alarme" característicos, diante dos quais o bando inteiro toma as medidas de evasão apropriadas. Existe evidência indireta de que o pássaro que emite o grito se coloca em maior perigo, uma vez que atrai para si a atenção do predador. Trata-se apenas de um pequeno risco adicional, mas, ainda assim, pelo menos à primeira vista, ele parece qualificar-se como um ato altruísta, de acordo com a nossa definição.

Os atos de altruísmo animal mais comuns e mais reconhecíveis são realizados pelos pais, especialmente as mães, em relação aos seus filhotes. Eles podem incubá-los, em ninhos ou no interior dos próprios corpos, alimentá-los, com enormes custos para si mesmos, e correr grandes riscos para protegê-los dos predadores. Para citar um só exemplo, muitas aves que fazem ninhos no chão executam a chamada "manobra de distração" quando um predador, como uma raposa, por exemplo, se aproxima. A ave, que pode ser o pai ou a mãe, caminha coxeando para fora do ninho, deixando pender uma asa como se ela estivesse quebrada. O predador, ao perceber a presa fácil, é atraído para longe do ninho em que os filhotes se encontram. Por fim, a ave abandona a sua simulação e se lança no ar, exatamente a tempo de escapar dos dentes da raposa. É muito provável que consiga assim salvar a vida dos seus filhotes, mas o faz expondo-se, ela própria, a um risco.

Não é minha intenção defender uma posição por intermédio dessas histórias. Exemplos escolhidos nunca constituem evidência séria para qualquer generalização válida. As histórias acima nada mais são do que ilustrações daquilo que entendo por comportamento altruísta e por comportamento egoísta, no nível dos indivíduos. (...) é necessário que eu comente uma explicação particularmente errônea do altruísmo, uma vez que ela é bastante conhecida e até mesmo amplamente ensinada nas escolas.

Tal explicação baseia-se na falsa noção, já mencionada, de que os seres vivos evoluem para fazer coisas "pelo bem da espécie" ou "pelo bem do grupo". É fácil ver como essa idéia se originou, na biologia. Grande parte da vida de um animal é dedicada à reprodução, e quase todos os atos de auto-sacrifício altruísta observados na natureza são realizados pelos pais em relação aos seus descendentes. A "perpetuação da espécie" é um eufemismo comum de reprodução e é, sem dúvida, uma conseqüência dela. Não é preciso mais do que uma ligeira distorção da lógica para deduzirmos que a "função" da reprodução é "servir" à perpetuação da espécie. A partir daí, é suficiente uma pequena escorregadela para que se conclua que os animais, em geral, se comportarão de forma a favorecer a perpetuação da espécie. O altruísmo em relação aos demais membros da espécie parece converter-se, assim, numa conseqüência natural.

Esta linha de pensamento pode ser formulada em vagos termos darwinianos. A evolução opera por meio da seleção natural e seleção natural significa a sobrevivência diferencial dos "mais aptos". Mas estamos falando dos indivíduos mais aptos, das raças mais aptas, das espécies mais aptas ou do quê? Para certos propósitos, isso não é de muita importância, contudo, quando se trata de altruísmo, a diferenciação é crucial. Se são as espécies que competem naquilo que Darwin chamou de luta pela existência, o indivíduo deveria ser considerado um peão no jogo, a ser sacrificado quando o interesse maior da espécie como um todo assim exigir. Para dizer de uma forma ligeiramente mais respeitável, um grupo, tal como uma espécie ou uma população dentro de uma espécie, cujos membros individuais estão prontos a se sacrificar pelo bem-estar do grupo, corre menos risco de extinção do que um grupo rival cujos membros colocam os próprios interesses egoístas em primeiro lugar. Assim, o mundo torna-se povoado principalmente por grupos constituídos por indivíduos capazes de auto-sacrifício. Essa é a teoria da "seleção de grupo", tida como verdadeira durante muito tempo por biólogos pouco familiarizados com os pormenores da teoria da evolução. Apresentada num famoso livro de V. C. Wynne-Edwards, ela foi popularizada por Robert Ardrey em The social contract. A alternativa ortodoxa costuma ser chamada de "seleção individual", embora, pessoalmente, eu prefira falar em "seleção do gene".
*Richard Dawkins

É plausível buscar a felicidade e a moralidade através do prazer?

“Na constituição natural de um ser organizado para a vida, admitimos, por princípio, que nele não haja nenhum órgão destinado à realização de um "m" que não seja o mais adequado e adaptado a este "m".

Ora, se num ser dotado de razão e de vontade a natureza tivesse por finalidade última sua conservação, seu bem-estar ou, em uma palavra, sua felicidade, ela teria se equivocado ao escolher a razão para alcançá-la. Isto porque, todas as ações que este ser deverá realizar nesse sentido, bem como a regra completa de sua conduta, ser-lhe-iam indicadas com muito maior precisão pelo instinto.”


(Ps: Os amantes da castração deliberada devem ter adorado isso...)
*Kant

2 anos de paranóia (tardiamente)

No dia 28 do mês passado a experiência digital conhecida como “Soturna Primavera” completou dois anos. Pensei que isso fosse significar mais antes de acontecer... como disse na ocasião do primeiro aniversário, no início parece um tipo de exibicionismo cínico, ficar aqui escrevendo e compartilhando textos, orientando opiniões e debatendo pontos de desconformidade.

Mas por outro lado, num país onde Luciana Gimenez, Gugu Liberato (entre outros asnos falantes) se colocam como formadores de opinião, acho que também posso me arriscar em algumas colocações. Cada homem é livre, para esforço supremo ou degradação voluntária, não sei exatamente onde nosso legado se encaixa, mas estamos indo. Um reconhecimento sem termo à Dona Monica, Shintoni, Pititi e Penélope (In Memorian). Viva a livre iniciativa, viva!


Aos nossos incentivadores; amigos e inimigos, a minha afeição ou o meu desprezo!