terça-feira, 19 de julho de 2011

Antes de Nascer o Mundo (Fragmentos) II

Mil vezes Ntunzi me fez recordar o motivo por que meu pai me elegera como predilecto. A razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral da nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para um recanto para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de meu pai e ele se ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três anos. Ergui os braços e, em vez de lhe limpar o rosto, coloquei as minhas pequenas mãos sobre os seus ouvidos. Como se quisesse convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse voz. Silvestre fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não tinha morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:
- Alminha!
E nunca mais ele proferiu o nome dela.Nem evocou lembrança do tempo em que tinha sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado em esquecimento.
- E você me ajude, meu filho.
Para Silvestre Vitalício, a minha vocação estava definida: tomar conta dessa insanável ausência, pastorear demónios que lhe abocanhavam o sono. Certa vez, enquanto partilhávamos sossegos, arrisquei:
- Ntunzi diz que lhe faço lembrar a mãe. É verdade, pai?
- É o contrário, você me afasta das lembranças. Esse Ntunzi é que me traz espinhos do antigamente.
- Sabe, pai? Ontem sonhei com a mãe.
- Como pode sonhar com alguém que nunca conheceu?
- Eu conheci, só não me lembro.
- É a mesma coisa.
- Mas recordo a voz dela.
- Qual voz dela? Dordalma quase nunca falava.
- Recordo um sossego que parece, sei lá, parece água. Às vezes penso que me lembro da casa, o grande sossego da casa...
- E Ntunzi?
- Ntunzi o quê, pai?
- Ele insiste que se recorda da mãe?
- Não há dia em que ele não se recorde dela.
Meu pai nada respondeu. Ruminou um novelo de resmungos e, depois, com voz rouca de quem foi ao fundo da alma, afirmou:
- Vou dizer uma coisa, nunca mais vou repetir: vocês não podem lembrar nem sonhar nada, meus filhos.
- Mas eu sonho, pai. E Ntunzi se lembra de tanta coisa.
- É tudo mentira. O que vocês sonham fui eu que criei nas vossas cabeças. Entendem?
- Entendo, pai.
- E o que vocês lembram sou eu que acendo nas vossas cabeças.
O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas.Mas já não havia nem falecidos nem território das almas.O mundo tinha terminado e o seu final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos.O país dos defuntos estava anulado, o reino dos deuses cancelado. Foi assim que, de uma assentada, meu pai falou.Até hoje essa explanação de Silvestre Vitalício me parece lúgubre e confusa. Porém, naquele momento, ele foi peremptório:
- É por isso que vocês não podem nem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro.
- Mas, pai, o senhor não tem memória da nossa mãe?
- Nem dela,nem da casa,nem de nada. Já não me lembro de nada.
E ele se ergueu, rangente, para esquentar o café.Os passos eram de embondeiro que vai arrancando as próprias raízes. Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores da cafeteira.Ainda de olhos fechados, sussurrou:
- Vou dizer um pecado: deixei de rezar quando você nasceu.
- Não diga isso, meu pai.
- Estou-lhe a dizer.
Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas.
- Mas Deus está surdo - disse.
Fez uma pausa para erguer a chávena e saborear o café e, depois, rematou:
- Mesmo que não estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?
Em Jesusalém, não havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai fazia catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus.
*Mia Couto

sábado, 16 de julho de 2011

A descendência de Caim

Num lugar ermo, donde mapas são indiferentes, um homem só vive entre a imensidão das montanhas e a modéstia de sua pequena casa. Um quarto austero, alguns livros de páginas amarelas, um bule amassado de chá, a cama feita com um colchão de palha e a velha escrivaninha única companheira inabalada em anos a fio. Acima de tudo, o negrume da noite é cortado por uma lamparina de bico já gasto ostentando uma pequena chama. Nas raras manhãs onde a enxaqueca ou gota não o atordoam como fossem uma fúria dos antigos amaldiçoados, ele caminha demoradamente entre as árvores, muito talvez invejando a espessura da casca que protege os troncos. Ademais, pensa e escreve. Debruçado no velho móvel sob o auxílio do precário lume, redige cartas a um amigo que nunca existiu. À 03 de março de um ano não pertencente ao calendário gregoriano:

“O mundo vive dias de indecência e superficialidade tamanha que às vezes sem pressentir, a idéia de suicídio me bate como uma das poucas coisas dignas que restaram. Mil vezes me envergonho, integralmente por ter partilhando as minhas mais elevadas aspirações dizendo-as ao público. Aspirações essas que mesmo em tempos muito mais valiosos e profundos, não deveria ter sido partilhadas. Depois de um século de liberdade o homem se vê prostrado sem saber que frutos essa árvore de fato deu, a abertura desmedida à imprensa transformou a vida em mercado, corrompeu o gosto, chacinou a beleza. Viver assim tão a mercê da imposição alheia é existir somente, como gado que foi marcado de forma voluntária. Todavia, abraço a solidão em que me recolho tal como Dante ou Espinosa, mesmo sabendo que esses homens eram muito mais preparados. É inegável que a sua maneira de processar o mundo era muito mais ajustada à solidão que a minha, afinal, os que conseguem inventar “Deus” por companhia jamais conhecerão a solidão que sinto. Sou um aborto da natureza e a minha razão não pode querer pretender mais(...)”

Olha pela janela, fita o opaco vidro com intensidade mesmo percebendo que nada se pode ver além da muralha escura da noite. Depois dessa pausa, mergulha mais uma vez a pena no tinteiro e escreve a frase derradeira:

“A minha fé tão parca, reside agora na esperança, ou na desesperança, de que surja um homem novo que possa demonstrar que tudo é deveras avesso ao que penso, que refunde o pesadelo da vida transformando-o em coisa mais viçosa. Creio que jamais me encontrei em tamanha decadência mas, estranhamente, sinto agora alívio em dizer minhas aspirações mais profundas”.
*Leandro M. de Oliveira