Do mesmo modo como é impossível entender a migração das aves sem saber voar, não se pode ter ciência de qual a substância do sonho estando à deriva das estrelas. Há um rio subterrâneo que passa clandestinamente no coração de cada homem. Uma torrente aquática que impede a cristalização dos pés à terra; ela te faz boiar. Cada rio é em si oceano, e cada oceano é por si um homem. É impossível pressentir a cor dos navios, sobretudo quando vão a pique no contato só de uma esperança perdida. Algures no infinito há uma extensão da vida que ninguém tocou, isso é suficiente para comover as pedras. Cada veleiro que se alinha no horizonte é a projeção de um desejo de reencontro. Desbravar novas terras é como poder voltar à casa ou rezar em silêncio enquanto todos dormem. Para cada demarcação equatorial uma outra, e depois mais uma e tantas sem número que vão dar no encontro feérico de um lavrador com a terra derradeira ou o de uma mãe com seu filho incriado. As circunferências em semelhança às pessoas, tem o faculto do desdobramento.
O Corpo:
Os lugares de tormenta e as sombras de qualquer calmaria, um cidadão obrando seu projeto de república, jovens se prostituindo por migalhas. Toda pedra, todo seixo, toda reminiscência é o meu corpo imaterial partilhado no que for ausência e desvario. Translucidamente oculto em regiões densas, ao sabor das promessas vazias inscritas em cada mastro. O predador é sempre mais devorado que qualquer presa. O acaso florescerá mais rico entre pernas e espelhos. Na equação interminada da viagem, contabilizou-se um coração oco e um alforje em petição de miséria. Nada será como antes, porque o tempo deixou de existir num país onde os relógios perderam os ponteiros. A única mensura possível são todas as partidas que ao final da jornada dão no mesmo porto, e enfim são uma partida só, vista de ângulos contrários. O corpo é sobretudo uma unidade de medida, aqui se mensuram anos, paixões, distancias... Uma casa de muitas portas, várias janelas sem vista alguma. O peregrino que vai arrebatado pelo deserto em vez última, uma criança em sua primeira menstruação, pés e genitálias constantemente metamorfoseados.
O Irremediável:
O trovão silenciou como fosse uma fantasia de eu menino, pra onde quer que se olhasse o acre da descoberta inconsentida fazia sombra ao sabor do passo adiante. No instante seguinte o ar não soou leve em razão da insistência de alguém, o fato é que talvez as coisas devessem ser assim, mesmo parecendo uma corrente quebrada. Aparentemente. Só a alegria é feita de caos, o fim tem menos urgência e mais daquela medida de paz esquecida em cada convulsão passional. Quando a boca renega os lábios as palavras podem ser ditas como se não existissem, nesse momento breve o mundo se realiza como um projeto incalculado, e por isso meticuloso. As folhas caem das árvores e eu sinto por elas um amor sem termo, cada grão de pó esta a pulsar em mim do mesmo modo que artérias e excessos. O momento de despedida é uma ficção perfeita, descobrir-se imóvel é empresa de dura lida. Meus olhos já não distinguem cores, mas reconhecem o cheiro do sangue estival. Que o paraíso possa se reinventar em jugulares incautas. Se essa opção restar impossível, então que no negrume do sentimento de que alguma coisa ficou pra trás, a magia possa me bater como em um circo de interior. A vida é o truque mais barato dentre os que se podem conhecer. Na letargia, é como algo se me fugisse aos sentidos.
A descoberta:
Não sei como dizer algo que nunca foi experimentado antes. Palavras são prova de degredo, os deuses costumavam operar em silêncio por aqui. Um sentido de proibição absurda ao homem os sítios mais exuberantes. E agora tudo se resume em não estar, uma hora de fogo antes do gelo vir. Eu vi o dia seguinte como quem perdera seus agasalhos. Semáforo constantemente fechado, ou sempre aberto em rotas difusas. O impossível é um lugar que existe, e inominado termina como uma obsessão dos que se perderam. A jornada nasce do desejo, do caudaloso rio ocultado entre ossos e sonhos. No porão da alma há um mar imaginário pousado ao deságüe desse rio, ele é cada fragmento do que existe sem ser. Uma geometria onírica conduz o disforme às elipses perfeitas, enquanto a vida passa como uma errante perdida sem se dar conta disso. O cruzeiro do sul inscrito em cada peito tem leituras diversas, ele é abismo e reencontro, presença e exílio. Você pode livremente decepar as mãos para que cessem os carinhos a uma presença maculada, mas de todo, isso não extinguirá a incalidez do vento ao roçar seus cabelos. Peguei o trem para um país distante, lá chegando percebi que tudo era igual. Terra, árvores e gentes, qualquer variação da experiência deve requerer um estado de espírito peculiar. Se tudo é o mesmo e no fundo não é nada, tem-se direito a um trago. Insubstanciado, estar aqui é desatino.
Acabo de assistir um vídeo da “comunidade canção nova” extraído de um programa que tem exibição em seu canal (sim, eles tem um canal próprio de televisão), nessa filmagem o citado grupo pertencente à igreja católica apostólica romana por meio dos dois apresentadores pedem deliberadamente que quem tenha ouro em casa doe para a construção de um templo. Fazendo propostas das mais esdrúxulas possíveis como enviar alianças de casamento, restos de outros objetos, chegando mesmo ao ponto de sugerir a extração de dentes de ouro de defuntos para enviar-lhes.
Nesse último caso em específico além de implicações morais, é mister lembrar que tal situação poderia gerar complicações de ordem legal, sendo aquele que pratica ato semelhante um concorrente ao enquadramento no crime disposto no Artigo 211 do Código Penal Brasileiro, “Destruição, Subtração ou Ocultação de Cadáver” que prevê reclusão de 1 a 3 anos, e multa. Os pedidos de doação citados acima são reforçados e veiculados no site da comunidade, como se observa num texto extraído dessa página há alguns meses:
“Não, o Centro de Evangelização não está pronto ainda. Podemos dizer que ele está em condição de uso. Hoje ainda o som é alugado, a iluminação é alugada, o sistema de TV é alugado, que são coisas que nós precisaremos ter fixas neste ambiente. Então você que doou o seu ouro na construção da alvenaria, da parte metálica, da parte elétrica... a campanha não acabou. Você que tem aí um pedaço de dente, de pulseira, uma aliança, uma corrente... seja o que for, talvez isso tudo servirá para você muito pouco. Você vai fazer muito pouco com isso, mas tudo isso junto aqui nós podemos mudar a vida de muita gente. Então manda para cá esse ouro.”
E agora segue abaixo o vídeo para que avaliem:
Recentemente tenho sofrido algumas críticas de leitores do blog, me acusando de ateísmo (como se isso fosse crime) e tentando colocar-me em circunstâncias às quais não vivo. Não me incomoda ser rotulado, esse é eternamente um preço a se pagar pela opinião própria. O que realmente incomoda é ver a inteligência degenerar em nome de dogmatismo vão, de um fundamentalismo do medievo. Senhores, o mundo evoluiu e as pessoas também. Quando esse tipo de assunto que envolve credos é levado à baila em nosso espaço, isso vem do desejo de esclarecimento que deve ser o fim último de qualquer criatura humana que é nessa condição por vosso entendimento, divina. Assim, é provável que transcender rime em absoluto com conhecer. Se existe um criador que nos deu como legado a terra, é no mínimo digno de nossa parte saber em que consiste essa herança.
Todavia, mais concretamente, quando se aborda o tema da religião organizada, é preciso considerar a priori que são elas redes e instrumentos de poder. Não é pelo fiel engajado que nos manifestamos, ele é livre, para sublimação absoluta ou degradação voluntária, como bem lhe aprouver. O nossa questão é relacionada aos clérigos estelionatários de qualquer igreja que tenham como profissão de fé a exploração do ingênuo, seja ela em qualquer campo, tanto no moral, espiritual ou material. Esses homens vão se apossando aos pouco da consciência das gentes, direcionam o povo a pensamentos pré-fabricados, o que vem se traduzindo com efeito em ascensão política de membros dessas congregações que se tornam vereadores, prefeitos, deputados, governadores... Nesse exato momento, eu, você e qualquer outro que nada tem haver com esses homens e suas falcatruas, passamos a ser afetados enquanto membros e utilizadores da “res publica”. A orientação do Estado não é laica por acaso, isso ocorre para que haja um ponto de neutralidade competente a mediar conflitos gerados em sociedade, e quando esse ponto é afetado por sectarismos, estamos a um passo de descambar.
Por exemplo, lembro-me de um caso agora. Em Belo Horizonte há alguns anos um casal homossexual vivia em plena comunhão marital, essa relação entre duas mulheres perdurou por cerca de dezesseis anos, até que uma morreu por complicações de saúde. Até aí tudo corria dentro da normalidade, o caminho natural da vida é a morte, nada de extraordinário. Foi quando a família da “de cujus” veio do interior e decidiu requerer os bens que a ela pertenciam, o fato grave é que quase a totalidade dos bens (apartamento, carro, conta-poupança), estava em nome da falecida. O resultado foi que a família conseguiu contra a cônjuge sobrevivente uma ordem judicial de despejo do apartamento que ela própria ajudou a adquirir. No final estava a mesma entregue à sarjeta.
Esse é um caso ilustrativo das milhares de situações semelhantes que ocorrem. Ele foi citado para uma pergunta simples, por que o Brasil não adotou o casamento gay ou pelo menos uma garantia real com os efeitos da união civil para os casais do mesmo sexo? Simples! É basicamente lob religioso meus caros. Existe um projeto de lei acerca da União civil entre pessoas do mesmo sexo de 1995 que foi engavetado por pressão de segmentos eclesiásticos. As mesmas represálias vem sofrendo leis a respeito do aborto e de muitas outras questões relacionadas à saúde pública e à responsabilidade civil.
Ora, que tipo de Deus permite que pessoas que construíram uma vida juntas sejam ao final de tudo rechaçadas como criminosos vulgares? Que divindade deseja o crescimento da morte no ventre de uma mãe por meio da gestação de um bebê anencefalo? Não sei responder a essas perguntas, não sei mesmo dizer se isso é digno de ser discutido em termos de seriedade. Deus é na verdade uma imagem e semelhança do homem que o projeta, nesses casos estamos em profundo desacordo com as sombras na parede.
Desde os tempos mais antigos, o homem indagou sobre a origem e o sentido do mundo, e frequentemente sobre o seu objetivo. As respostas, tentativas para essas questões, podem ser encontradas nos mitos, característicos de todas as culturas, mesmo as mais primitivas. Ele avançou além desses começos simples, em duas direções bem diferentes. Em uma delas, as suas ideias formalizaram-se em religiões, preconizando um conjunto de dogmas, usualmente baseados na revelação. O mundo ocidental, por exemplo, no final da Idade Média, era completamente dominado por uma confiança implícita nos ensinamentos da Bíblia e, além disso, por uma crença universal no sobrenatural.
A filosofia e, mais tarde, a ciência constituem o outro caminho para abordar os mistérios do mundo, embora a ciência não estivesse estritamente separada da religião, na sua história primitiva. A ciência encara esses mistérios como perguntas, com dúvidas, com curiosidade, e com tentativas de explicação, portanto, com uma atitude totalmente diferente da religião. Os filósofos pré-socráticos (jônios) iniciaram essa aproximação de modo diferente, buscando explicações “naturais”, nos termos das forças observáveis da natureza, como o fogo, a água e o ar. Esse esforço para entender a causalidade dos fenômenos naturais foi o início da ciência. Durante muitos séculos, depois da queda de Roma, essa tradição foi virtualmente esquecida; mas foi ressucitada na Alta Idade Média, e durante a revolução científica. Aumentou a crença de que a verdade divina não nos era revelada apenas por meio da Escritura, mas também pela criação de Deus.
É bem conhecida a declaração de Galileu sobre essa ideia:
“Eu penso que, na discussão dos problemas naturais, não devemos começar com a autoridade dos passos da Escritura, mas sim com experimentos sensíveis e demonstrações necessárias. Pois, do Verbo Divino procedem igualmente a Sagrada Escritura e a Natureza”.
E continuava dizendo que “Deus se nos revela igualmente e de modo admirável, tanto nas ações da Natureza, como nas sagradas sentenças da Escritura”. Ele pensava que um Deus que governa o mundo com o auxílio de leis eternas inspira, finalmente, tanta confiança e fé como um que intervém constantemente no curso dos eventos. Foi essa forma de pensar que ocasionou o nascimento da ciência, como agora podemos entender.
A ciência de Galileu não era uma alternativa para a religião, mas parte inseparável dela. Da mesma forma, muitos grandes filósofos, do século XVII ao século XIX – por exemplo Kant – incluíam Deus nos seus esquemas explicativos. A assim chamada teologia natural era, a despeito do seu nome, tanto ciência quanto teologia. O conflito entre ciência e teologia desenvolveu-se só mais tarde, quando a ciência explicava mais e mais processos e fenômenos da natureza por “leis naturais”, fenômenos e processos esses que anteriormente eram considerados inexplicáveis, a não ser pela intervenção do Criador, ou por leis especiais ordenadas por Ele.
Uma diferença fundamental entre religião e ciência reside, então, no fato de que a religião usualmente consiste em um conjunto de dogmas, dogmas muitas vezes “revelados”, diante dos quais não há alternativa, nem muita flexibilidade de interpretação. Na ciência, ao contrário, as explicações alternativas são virtualmente um prêmio, e com facilidade uma teoria é substituida pela outra. A descoberta de um esquema alternativo é muitas vezes fonte de grande exultação. O valor de uma idéia científica só em pequena escala é julgado por critérios extrínsicos à ciência, porque, no seu conjunto, é arbitrado inteiramente por usa eficácia na explicação e, às vezes, na previsão.
Curiosamente, os cientistas tem sido bastante desarticulados, quanto a uma definição abrangente da ciência. No auge do empirismo e do inducionismo, o objetivo era o mais das vezes descrito como sendo a acumulação de novos conhecimentos. Em contraste, quando se lêem os escritos de filósofos da ciência, tem-se a impressão que para eles a ciência é uma metodologia. Conquanto ninguém queira pôr em dúvida a indispensabilidade do método, a preocupação quase exclusiva de alguns filósofos da ciência com o mesmo desviou a atenção do objetivo mais fundamental da ciência, que é de aumentar nosso auto-entendimento e o do mundo em que vivemos.
A ciência tem diversos objetivos. Ayala (1968) descreveu-os da seguinte forma.
1 – A ciência procura organizar o conhecimento de forma sistemática, esforçando-se para descobrir padrões de afinidade entre fenômenos e processos.
2 - A ciência empenha-se no fornecimento de explicações para a ocorrência dos eventos.
3 - A ciência propõe hipóteses explicativas, que devem ser testadas, isto é, acessíveis à possibilidade de rejeição.
Mais amplamente, a ciência procura juntar a vasta diversidade dos fenômenos e processos da natureza, sob o menor número de princípios explicativos.
Não há futuro num mito sagrado. Por quê? Por nossa curiosidade. […] Seja o que for que consideremos precioso, não podemos protegê-lo da nossa curiosidade porque, sendo quem somos, uma das coisas que consideramos preciosa é a verdade. O nosso amor pela verdade é sem dúvida um elemento central no sentido que damos à nossa vida. Em qualquer caso, a ideia de que possamos preservar o sentido da nossa vida à força de nos enganarmos é uma ideia mais pessimista, mais niilista do que eu, pela parte que me toca, consigo engolir. Se isso fosse o melhor que se pode fazer, concluiria que afinal nada tinha importância. […]
A nossa curiosidade sobre as coisas assume diferentes formas, como Aristóteles assinalou no tratado da ciência humana. O seu esforço pioneiro para classificá-las ainda faz muito sentido. Aristóteles identificou quatro questões básicas sobre qualquer coisa que queiramos responder, e chamou-as aitia, um termo grego verdadeiramente impossível de ser traduzido, tradicional mas desajeitadamente traduzido por quatro “causas”.
1.Podemos ter curiosidade sobre aquilo de que algo é feito, a sua matéria ou causa material.
2.Podemos ter curiosidade sobre a forma (ou estrutura ou configuração) que essa matéria assume, a sua causa formal.
3.Podemos ter curiosidade sobre a sua origem, como começou, ou sobre a sua causa eficiente.
4.Podemos ter curiosidade sobre o seu propósito ou objetivo ou finalidade (como na pergunta “Será que os fins justificam os meios?”), a que Aristóteles chamou o seu telos, que por vezes se traduz em português, desajeitadamente, como “causa final”.
É preciso alguma ginástica para fazer estas quatro aitia aristotélicas corresponderem a respostas às típicas perguntas portuguesas “o quê, onde, quando e por que”. A correspondência é apenas aproximada. As perguntas que começam com “por que”, contudo, normalmente pedem a quarta “causa” de Aristóteles, o telos de uma coisa. Por quê?, perguntamos. Para que serve? Como dizemos às vezes: qual é a sua razão de ser? Os filósofos e os cientistas reconheceram, durante centenas de anos, que estas perguntas pelo “por que” são problemáticas e de tal modo distintas que o estudo a que dão lugar merece um nome: teleologia.
Uma explicação teleológica é a que explica a existência ou ocorrência de algo fazendo apelo a um objetivo ou propósito a que a coisa serve. Os artefatos são os casos mais óbvios; o objetivo ou propósito de um artefato é a função que o seu criador concebeu para ele. Não há controvérsia sobre o telos de um martelo: serve para martelar e tirar pregos. O telos de artefatos mais complexos, como câmaras de vídeo, caminhões ou scanners é, na pior das hipóteses, mais óbvio. Mas mesmo nos casos mais simples, podemos ver que sempre há um problema de fundo presente:
— Por que razão estás a serrar essa tábua?
— Para fazer uma porta.
— E para que é a porta?
— Para proteger a minha casa.
— E por que razão queres proteger a tua casa?
— Para poder dormir descansado.
— E por que razão queres dormir descansado?
— Vai passear e deixa de me fazer perguntas tolas.
Essa troca de palavras revela um dos problemas da teleologia: para que isso tudo? Que causa final podemos apresentar para completar essa hierarquia de razões? Aristóteles tinha uma resposta: Deus, o Motor Imóvel, o para-quê no qual acabam todos os para-quês. A ideia, que foi aproveitada pelas tradições cristãs, judaicas e islâmicas, é que todos os nossos propósitos derivam em última análise de Deus. A ideia é sem dúvida natural e atraente. Se olharmos para um relógio e nos perguntarmos por que razão tem um vidro transparente, é óbvio que a resposta remete às necessidades e desejos das pessoas que usam relógios, que querem saber as horas olhando para o mostrador etc.. Se não fossem estes fatos sobre nós — para quem o relógio foi criado —, não haveria explicação do “por que” do vidro transparente. Se o universo foi criado por Deus para cumprir os seus propósitos, então todos os propósitos que possamos encontrar no próprio universo têm, em última análise, de estar subordinados aos propósitos de Deus. Mas quais são os propósitos de Deus? Isso é algo misterioso.
Uma maneira de afastar o desconforto acerca desse mistério é mudar ligeiramente o assunto. Em vez de responder a pergunta pelo “por que” com uma resposta do tipo “porque” (o tipo de resposta que ela parece exigir), as pessoas substituem muitas vezes a pergunta “por quê?” pela pergunta “como?”, e tentam responder esta última contando uma história sobre como Deus criou a nós e ao resto do universo, sem perder demasiado tempo com a questão de saber exatamente por que razão poderá Ele ter desejado fazer tal coisa. A pergunta pelo “como” não se encaixa na lista de Aristóteles, mas já eram perguntas e respostas populares muito antes de Aristóteles ter apresentado sua análise.
As respostas às maiores perguntas pelo “como” são cosmogonias, histórias sobre como o cosmos, o universo inteiro e tudo o que ele contém, passou a existir. O livro do Gênesis é uma cosmogonia, mas há muitos outros. Os cosmólogos que exploram a hipótese do Big Bang, e que especulam sobre os buracos negros e as supercordas, são criadores atuais de cosmogonias. Nem todas as cosmogonias seguem o padrão de um artífice. Algumas envolvem um “ovo do mundo” depositado nas “Profundezas” por uma ave mítica qualquer, e outras envolvem sementes que se deitam à terra e se cuidam. A imaginação humana não dispõe de muitos recursos de que lançar mão quando se confronta com uma questão tão intrigante. Um mito antigo da criação fala de um “Senhor que existe por si” e que, “com um pensamento, criou as águas, depositando nelas uma semente que se transformou num ovo dourado, nascendo ele próprio desse ovo como Brama, o progenitor dos mundos” (Muir 1972, Vol. IV, p. 26).
E qual era o objetivo de todas essas posturas de ovos, sementeiras e construção de mundos? Ou, já agora, qual é o objetivo do Big Bang? Os cosmólogos atuais, à semelhança de muitos dos seus antecessores ao longo da história, apresentam uma história divertida, mas preferem fugir da questão teleológica do “por que”. Será que o universo existe por uma razão qualquer? Será que as razões têm um papel qualquer que se possa compreender nas explicações do cosmos? Será que algo poderia existir por uma razão, sem que se tratasse da razão de alguém? Ou será que as razões — as causas do tipo 4 de Aristóteles — só são apropriadas nas explicações das obras e feitos de pessoas ou de outros agentes racionais? Se Deus não é uma pessoa, um agente racional, um Artífice Inteligente, que sentido poderá ter a mais grandiosa pergunta pelo “por que”? E se a maior pergunta pelo “por que” não tem qualquer sentido, como poderão outras perguntas pelo “por que”, menores e mais simples, ter sentido?
Uma das contribuições fundamentais de Darwin é mostrar-nos uma nova maneira de dar sentido às perguntas pelo “por que”. Queiramos ou não, a ideia de Darwin oferece-nos uma maneira — clara, convincente e espantosamente versátil — de dissolver estes velhos enigmas. É preciso tempo para nos habituarmos à sua ideia, e ela é muitas vezes mal aplicada, mesmo pelos seus amigos mais dedicados. […] O que ganhamos é, pela primeira vez, um sistema explicativo estável que não anda às voltas nem entra numa espiral infinita de mistérios. Aparentemente, algumas pessoas preferem a regressão infinita de mistérios, mas hoje em dia o custo desta estratégia é proibitivo: deixar-se enganar. Podemos enganar a nós próprios, ou deixar essa tarefa a outras pessoas, mas não há uma forma intelectualmente defensável de reconstruir as poderosas barreiras à compreensão que Darwin derrubou.
A questão aqui é de atitude, do que fazer frente ao desconhecido. Existem duas alternativas: ou se acredita na capacidade da razão e da intuição humana (devidamente combinadas) em sobrepujar obstáculos e chegar a um conhecimento novo, ou se acredita que existem mistérios inescrutáveis, criados por forças além das relações de causa e efeito que definem o normal.
Em outras palavras, ou se vive acreditando em causas naturais por trás do que ocorre no mundo, ou se acredita em causas sobrenaturais, além do explicável.
Quando falo sobre isso, com frequência me perguntam se não seria possível uma conciliação entre as duas: parte do mundo sendo natural e parte sobrenatural. Não vejo como isso poderia ser feito.
(...) argumentei que a ciência jamais será capaz de responder a todas as perguntas. Sempre existirão novos desafios, questões que a nossa pesquisa e inventividade não são capazes de antecipar.
Podemos imaginar o conhecido como sendo a região dentro de um círculo e o desconhecido como sendo o que existe fora do círculo. Não há dúvida de que à medida em que a ciência avança, o círculo cresce. Entendemos mais sobre o universo, sobre a vida e sobre a mente. Mas mesmo assim, o lado de fora do círculo continuará sempre lá. A ciência não é capaz de obter conhecimento sobre tudo o que existe no mundo.
E por que isso? Porque, na prática, aprendemos sobre o mundo usando nossa intuição e instrumentos. Sem telescópios, microscópios e detectores de partículas, nossa visão de mundo seria mais limitada.
A tecnologia abre novas janelas para um mundo que, outrossim, permaneceria invisível à nossa limitada percepção da realidade. Porém, tal como nossos olhos, essas máquinas têm limites.
Existem outros, ligados à própria estrutura da natureza, como o princípio de incerteza da mecânica quântica. Mas eles podem mudar com o avanço da ciência.
Essa imagem, de que o conhecido existe em um círculo e que muito do mundo permanece obscuro pode gerar confusão. Ou ainda pode ser manipulada por aqueles que querem inculcar nas pessoas um senso de que estamos cercados por forças ocultas que, de algum modo, controlam nossas vidas. É aqui que entram as alternativas que mencionei.
Parafraseando o poeta romano Lucrécio, as pessoas vivem aterrorizadas pelo que não podem explicar. Ser livre é poder refletir sobre as causas dos fenômenos sem aceitar cegamente “explicações inexplicáveis”, ou seja, explicações baseadas em causas além do natural.
Essa escolha exige coragem. Implica na aceitação de que certos aspectos do mundo, apesar de inexplicáveis, não são sobrenaturais.
Não é fácil ser coerente quando algo de estranho ocorre, uma incrível coincidência, a morte de um ente querido, uma premonição, algo que foge ao comum. Mas como dizia o grande físico Richard Feynman, “prefiro não saber do que ser enganado”.
Não perguntavam por mim, mas deram por minha falta. Na trama da minha ausência, inventaram tela falsa.
Como eu andava tão longe, numa aventura tão larga, entregue à metamorfose do tempo fluido das águas; como descera sozinho os degraus da espuma clara, e o meu corpo era silêncio e era mistério minha alma - - cantou-se a fábula incerta, segunda a linguagem da harpa: mas a música é uma selva de sal e areia na praia, um arabesco de cinza que ao vento do mar se apaga.
E o meu caminho começa nessa franja solitária, no limite sem vestígio, na translúcida muralha que opõem o sonho vivido e a vida apenas sonhada. *Cecília Meireles
Tranquilo é o fundo do mar que trago em mim; quem adivinharia que oculta monstros divertidos? Imutável é a minha profundidade, mas cintila de enigmas e de gargalhadas flutuantes.” Zaratustra falava assim da profundidade da sua alma sorrindo ao ver os sublimes que por ele passam. Peitos inflamados cheios de ar, homens engalanados com feias verdades, cobertos de espinhos e vestimentas rotas. Não conhecem o riso nem a beleza, nem nunca trazem uma única rosa consigo. Sisudos, lutam como animais selvagens, traindo a fera mal domada dentro de si. São almas tensas e recalcadas que vivem na sombra da sua sublimidade.
Há que dar um salto para o sol e, na verdade, isso só será possível quando conseguirem saltar para fora da sombra. Zaratustra chama-lhes penitentes do espírito. Homens de faces pálidas que esperam por qualquer coisa que há-de vir, não se sabe quando, numa fome que quase os mata. Têm desdém no olhar, rugas de repugnância no canto dos lábios, nucas de touro. Seria interessante ver-lhes um olhar de anjo mas o seu conhecimento ainda não os ensinou a sorrir nem a sair da sombra das paixões que traem a ascensão ao éter da beleza. Deviam descansar, com braços negligentemente colocados atrás da nuca.
É assim o descanso dos heróis, dominando o seu repouso. Conservar os músculos descontraídos e a vontade desenvolta é o grande desafio que se impõe aos homens sublimes. Não será ao poder clemente e condescendente que se chamará beleza? A ninguém se exige tanta beleza como aos homens sublimes porque é nessa vaidade, ao olharem-se ao espelho, que residirá o verdadeiro segredo da alma. A derradeira bondade que se convola em virtude. Não podemos esperar de Zaratustra, um visionário do além, a quem o mundo parece por vezes saído de um sonho, que todos os sublimes sofram as metamorfoses desejáveis de modo a ascenderem ao patamar bafejado pelo sol das virtudes.
Zaratustra é um sonhador, que desce da solidão da montanha em passos de dança, com o olhar límpido e lábios virgens de qualquer desgosto. Zaratustra renasce quando se mistura com os homens e o seu espírito sofre as 3 metamorfoses: de besta de carga a leão e de leão a menino. Zaratustra é inocência e esquecimento, um novo recomeçar, uma roda que gira por si mesma, descoberta e conquista do seu próprio mundo.
O que vale um homem só? Para que serve? Que inominável pecado cometeu para receber o castigo de continuar vivendo? Talvez Luís Maria não tivesse chegado a formular nenhuma destas interrogações enquanto permaneceu imóvel no banco da praça - não porque preferisse evitá-las, mas porque não se achava aparelhado para cogitações e metafísicas, habituado como estava a ir vivendo sem meditar no que fazia. O facto de não lhe ocorrerem tais ideias não significava, porém, que as não sentisse a medrar no peito como um bolbo gordo que fosse crescendo ao redor da garganta até ao ponto de quase o sufocar. Faltar-lhe-iam as palavras para expressar o chumbo que sentia na testa - e talvez fosse isso o que procurava com os olhos fixos na poeira do chão.
Percebera, com um único olhar em redor, a razão daquele rocambolesco despertar no meio da calçada e, enquanto caminhava os poucos passos que o separavam do banco onde se sentou, lamentou o facto de ter o caixão tosco caído da carroça, ressuscitando-o. Melhor teria sido que o enterassem de uma vez por todas, para sempre, abreviando-lhe a existência inútil, eternizando-lhe o silêncio na sepultura que não havia de ser mais do que uma elevação de terra seca assinalando o volume do seu corpo. Quando, enfim, ganhou ânimo para se erguer do banco e rumar a casa - onde mais? -, fê-lo ainda com os olhos baixos para não enfrentar a vergonha dos olhares que sentia colados às costas, nem sentir na carne as interrogações, o espanto, eventualmente o medo que neles haveria. Deteve-se apenas quando os três amigos lhe pousaram as mãos no ombro, mais por camaradagem do que para transmitir algum afecto, mas não foi sequer capaz de dizer
- Lamento.
Seguiu pelo caminho do costume, até à porta de casa, até à mesa da cozinha onde sempre se senta quando chega, com os pés junto e as palmas das mãos pousadas no tampo, olhando em frente para a parede enegrecida, dando voltas ao vazio de chumbo que usa por cima dos olhos até serem horas de dormir e esperar que um novo dia chegue.
Neste dia, porém, quando Luís Maria sentir a casa solidamente cercada pela noite, não é para a cama que dirigirá os seus passos. Virá à janela para olhar as estrelas, abrirá a porta - que ficará escancarada - depois de ter agarrado a corda que fica presa num prego pelo lado de dentro e sairá para a calçada, principiando a caminhar sem pressa entre as pequenas casas que empalidecerão ao luar. Terá esquecido o chapéu. Ao longe, haverá um cão uivando. Atravessará a vila na direcção do cemitério, ignorando o coreto, aconchegará o rolo de corda no ombro e respirará com força para sentir o cheiro da terra e o calor que dela se desprende nas noites de Verão. Sentirá os pés pesados, como se estivessem mais fortes as velhas raízes que sempre o tinham puxado para dentro da terra. Sentir-se-á cansado e parará para beber água numa fonte antes de alcançar o olival cujo muro construíra, um dia, com as próprias mãos. Forçará o portão de ferro, fundir-se-á com as sombras dos troncos retorcidos e lançará a corda sobre um ramo alto, junto à ruína de um lagar. Procedendo como se já se tivesse enforcado mil vezes, afivelará o nó numa ponta da corda, prenderá a outra cuidando para que o laço fique a uma altura fatal, subirá à oliveira, ajustará o garrote ao pescoço e deixar-se-á cair como se fosse voar, sem tristeza, sem angústia, e ficará a sentir a forca apertando-se na garganta, o estalar das vértebras, os pés baloiçando cada vez mais devagar - até que a árvore deixe de ranger com o seu peso e o mundo volte a ser só silêncio e estrelas.
Não ser objeto de esperança alheia É uma opção às domesticações compulsórias. Ex-passo de uma masmorra etérea, Horas de uma partida irreprimível. Nas veredas do que se vai gravando A vontade caiu como um obelisco E regressou em mim desenferma, Pra tornar a cair e regressar enfim Como tudo o que é vida e alma.
Ninguém pediu pra estar aqui, ou clamou mil vezes. Meu corpo perdido vaga por ruas imaginárias, Um sarcófago de mãos e impossível o leva Aqui, ali, mais adiante e em toda parte. Sussurro feito grito, engenho que deitou ferrugem. A perdição é mais antiga que qualquer silêncio. Meu Ser divido subsiste ao fascismo do possível... Jaz a esmo o que sou, como uma rosa violentada, Como um prisioneiro come no terror a própria carne. Que restará desse mundo que não aconteceu?
Nós fomos criaturas extraordinárias um dia! Talvez na suposição de alguém mais reles. Existe um frisson obsceno nos suicidas Homens puros, bestas indomadas. Ninguém alcançará esse gral de entrega Sem perder partes pelo caminho. Qualquer morte é heróica, ou ridícula De acordo com o gral de sedução A que a alma vai sendo exposta.
Em tempos anteriores a esse Os bastardos eram párias do divino. A sombra por sobre a porta reaparece aguda Com a intransigência de um rei antigo A espalhar crenças abandonadas em todo canto.
Uma retina perdida a esquadrinhar o horizonte, Contador analfabeto do incalculável A prender o intangível como dentes ou unhas.
Você realmente nunca aprendeu a voar Só dançava sobre fios de navalha Enquanto seus pés ainda estavam anestesiados. Agora a purgação vem pela carne, Dais ao mundo o que teu nunca foi Arremetais ao céu a turba de tua infâmia. Eles te violentaram enquanto ainda eras um feto, Já és livre, bebe do sangue de quem quiseres...
Que o mundo acabe em desgraça plena Que o mundo floresça como uma primavera. Alcalóides são mais eficazes que confissões, Não há uma forma adequada de se pedir perdão.
E esse mar sou todos os Eus Desmedido, tormentoso, sem termo. O desabrigo é um estado essencialmente líquido, Extemporaneamente em qualquer lugar vazio Onde existir possa ser regresso e memória. Evade, invade, flutua na canção do vento Traga despojos a contra gosto do dono, Serve a mesa como quem conta um segredo No próximo piscar de olhos tudo será cinzas.
Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses entre os quais se encontrava também o filho da Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar, os restos do festim, a Pobreza, e ficou na porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar, penetrou no jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Foi então que Pobreza o avistou e observando o jovem ali desavisado imaginou imediatamente remediar sua penúria concebendo um filho de Recurso. Deitou-se ao lado do deus e, enlaçando-o, a ele, que mal percebia o que se passava, conseguiu. Pobreza, seu intento e pouco depois deu à luz o filho dessa conjunção fortuita o qual foi chamado Amor. Eis porque ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado no natalício da deusa da beleza, tornou-se amante do belo; e por ser filho de Recurso e Pobreza foi esta a condição, contraditória, que caracteriza sua essência.
Primeiramente, é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de truques; e sua natureza não nem mortal nem imortal. No mesmo dia, ora germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância.
O Manifesto Futurista escrito por Fillippo Marinetti e publicado em "Lo Figaro" no dia 20 de fevereiro de 1909, foi o grito de independência e marco inicial de um dos movimentos artísticos mais importantes doi século XX. A urgência e a fúria com que as palavras de Marinetti foram colocadas leva a pensar se o fim é mesmo inevitável. Se a vida num sentido de contemplação se perdeu para sempre. É acaso irremediável que o antigo feneça para que haja o nascimento do novo? O futuro é o laudo necopsial de um estupro do passado? Abaixo segue o texto em comento:
1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade.
2. A coragem, a audácia, a rebelião, serão elementos essenciais da nossa poesia.
3. Até hoje, a literatura exaltou a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, o passo de corrida, o salto mortal, a bofetada e o sopapo.
4. Declaramos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida com a carroçaria enfeitada por grandes tubos de escape como serpentes de respiração explosiva… um carro tonitruante que parece correr entre a metralha é mais belo do que a Vitória de Samotrácia.
5. Queremos cantar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada, por sua vez, em corrida no circuito da sua órbita.
6. O poeta terá de se prodigar, com ardor, refulgência e prodigalidade, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
7. Não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um carácter agressivo pode ser considerada obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas, para reduzi-las a prostrar-se perante o homem.
8. Estamos no promontório extremo dos séculos!… Porque deveremos olhar para detrás das costas se queremos arrombar as misteriosas portas do impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já no absoluto, pois já criámos a eterna velocidade.
9. Nós queremos glorificar a guerra, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias por que se morre e o desprezo da mulher.
10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo o tipo e combater o moralismo, o feminismo e todas as vilezas oportunistas ou utilitárias.
11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; cantaremos o vibrante fervor nocturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas eléctricas; as gulosas estações de caminho-de-ferro engolindo serpentes fumegantes; as fábricas suspensas das nuvens pelas fitas do seu fumo; as pontes que saltam como atletas por sobre a diabólica cutelaria dos rios ensolarados; os aventureiros navios a vapor que farejam o horizonte; as locomotivas de vasto peito, galgando os carris como grandes cavalos de ferro curvados por longos tubos e o deslizante voo dos aviões cujos motores drapejam ao vento como o aplauso de uma multidão entusiástica.
É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários.
(...)
Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao longo de suas paredes!
Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério no dos dos mortos, tudo bem. (...) Mas não admitimos passear diariamente pelos museus nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos nos envenenar? Por que devemos apodrecer?
E que se pode ver num velho quadro senão a fatigante contorção do artista que se empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projetá-la para longe, em violentos arremessos de criação e de ação.
Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados?
(...)
Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com seus dedos carbonizados! Ei-los!... Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!
(...)
Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em putrefação, já prometidas às catacumbas das bibliotecas.
Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - em campo aberto, sob um triste galpão tamborilado por monótona chuva, e nos verão agachados junto aos nossos aeroplanos trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje flamejando sob o vôo das nossas imagens.
Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais mais implacável quanto seus corações estiverem ébrios de amor e admiração por nós.
A forte e sã Injustiça explodirá radiosa em seus olhos - A arte, de fato, não pode ser senão violência, crueldade e injustiça.
Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! Nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de ter vivido! Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas!
Vós nos opondes objeções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... Nossa bela e mendaz inteligência nos afirma que somos o resultado e o prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!...
Cabeça erguida!...
Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas."
Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder tão firme e silencioso como só houve no tempo mais antigo. Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer, sorrindo com ironia e doçura no fundo de um alto segredo que os restitui à lama. De doces mãos irreprimíveis. - Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas, as casas encontram seu inocente jeito de durar contra a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.
Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta do gosto, o entusiasmo do mundo. Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio admirável das fontes – pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste como fogo exemplar. Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores tenebrosas, e temos memória e absorvente melancolia e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.
Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos, espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos que não viram as torrentes infindáveis das rosas, ou as águas permanentes, ou um sinal de eternidade espalhado nos corações rápidos. - Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam pelos muitos sentidos dos meses, dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra, para que se faça uma ordem, uma duração, uma beleza contra a força divina?
Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha. Alguém viera do mar. Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó. Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos, inspirações. - Estas casas serão destruídas. Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente no seu casamento solar, assim se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo, vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos da terra onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos múltiplas, as caras ardendo nas velozes iluminações.
Falemos de casas. É verão, outono, nome profuso entre as paisagens inclinadas Traziam o sal, os construtores da alma, comportavam em si restituidores deslumbramentos em presença da suspensão de animais e estrelas, imaginavam bem a pureza com homens e mulheres ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente, tocando uns nos outros – comovidos, difíceis, dadivosos, ardendo devagar.
Só um instante em cada primavera se encontravam com o junquilho original, arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres da inspiração. - E as casas levantavam-se sobre as águas ao comprido do céu. Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne doce e obsessiva - tudo isso está longe da canção que era preciso escrever.
- E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.
Falemos de casas, da morte. Casas são rosas Para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança Nos abandona para sempre. Casas são rios diuturnos, nocturnos rios Celestes que fulguram lentamente Até uma baía fria – que talvez não exista, como uma secreta eternidade.
Falemos de casas como quem fala da sua alma, Entre um incêndio, Junto ao modelo das searas, na aprendizagem da paciência de vê-las erguer e morrer com um pouco, um pouco de beleza. *Herberto Helder
Ouvi dizer que há um veleiro que saiu do quadro é ele que vem talvez na nuvem perigosa esse veleiro desaparecido que somos todos nós. Da minha janela vejo-o passar no vento sul outras vezes sentado olhando o ângulo mágico sinto a sua presença logarítmica vem num alexandrino de Cesário Verde traz a ferragem e a maresia traz o teu corpo irrepetível o teu ventre subitamente perpendicular à recta do horizonte e dos presságios ou simplesmente a outra margem o enigma cintilante a florir no cedro em frente qual é esse país pergunto eu qual é esse país onde tudo existe e não existe qual é esse país de onde chega este perfume este sabor a alga e despedida esta lágrima só de o pensar e de o sentir. Não é apenas um lugar físico algures no mapa é talvez o adjectivo ocidental o verbo ocidentir o advérbio ocidentalmente quem sabe se o substantivo ocidentimento. Está na palma da mão no nervo no destino e também no teu corpo aberto ao vento do nordeste é talvez o teu rosto alegre e triste - esse país que existe e não existe.
Eu não sei de que cor são os navios sei que por vezes no mais recôndito recanto no simples agitar de uma cortina numa corrente de ar num ritmo há um brilho súbito de estrela e bússola uma agulha magnética no pulso um mar por dentro um mar de dentro um mar no pensamento.
Há um eu errante e mareante não mais que um signo um batimento um coração polar algo que tem a cor do gelo e do antárctico e sabe a sul a medo a tentação uma irremediável navegação interior um navio fantasma amor fantástico *Manuel Alegre
Aos parceiros do "Duelos Literários" os gestos do meu mais profundo agradecimento.
Friedrich Nietzsche
"Aquele que não quer ver o que é elevado num ser humano olha com tanto maior acuidade para o que é nele baixo e superficial - e com isso denuncia a si mesmo."
Porto Firme - MG
Uma cidade não é grande por seu tamanho, riqueza ou história, a medida das cidades é a do espaço que conseguem ocupar em nossos corações...
Neruda
"Yo me voy. Estoy triste; pero siempre estoy triste. Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy. Desde tu corazón me dice adiós un niño. Y yo le digo adiós..."