É realmente surpreendente que Nietzsche tenha sabido não só adivinhar em Sócrates um decadente, quer dizer, um homem caído, como também (como se estivesse comprometido a ilustrar com o exemplo de Sócrates a narrativa bíblica) tivesse compreendido que um homem caído é incapaz de salvar-se com as suas próprias forças. Tudo o que o decadente empreende para salvar-se, diz Nietzsche, não faz mais que aumentar a sua perdição. Poderá lutar e vencer-se a si mesmo tudo o que puder; os seus intentos de salvação não são mais que a expressão da sua queda. Tudo o que faz, fá-lo como homem caído, quer dizer como um homem que perdeu a liberdade de escolha e foi condenado por força hostil a ver a sua salvação precisamente no mesmo lugar onde está a causa da sua perda.
Quando Kierkegaard disse que o maior génio é também o maior pecador, não nomeia Sócrates, mas evidentemente teve que pensar nele. Sócrates personificava para ele, essa tentação de que a Bíblia fala. E, com efeito, pode haver máxima mais tentadora do que a do oráculo de Delfos - "Conhece-te a ti mesmo" - ou que o prudente conselho de Sócrates - discorrer o dia inteiro sobre a virtude? Mas é justamente nisto que consiste a tentação da serpente bíblica. E tentou tão bem o primeiro homem, que hoje todavia vemos ali mesmo a verdade onde se oculta um fatal engano. Todos os homens, os místicos inclusive, aspiram ao conhecimento. No que toca a Kierkegaard, põe simplesmente de parte a serpente, e isto por razões, que como todo o mundo, lhe parecem surgir das profundezas do espírito que despertou da "modorra da ignorância". Há que buscar aqui, provavelmente, a origem dessa convicção Socrática segundo a qual o homem que "sabe" não pode fazer o mal e, por consequência, também a origem da nossa segurança de que o pecado não pode proceder da árvore da Ciência. Se queremos prosseguir utilizando imagens bíblicas teremos que dizer, ao contrário, que o pecado procede da árvore da vida e que, em suma, todo o mal que existe sobre a terra procede da mesma árvore.
Leon Chestov, Kierkegaard y la filosofia existencial, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1951
Título original em francês: Kierkegaard et la Philosophie Existentielle
Tradução para o espanhol de José Ferrater Mora
Tradução do espanhol: Helena Serrão
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