quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Mitos Obscuros: Morte (Palavra Poibida)


No pensamento o homem vivencia
a presença da morte sem morrer.
Paradoxo que o diferencia
da besta, que morre sem saber.
(IAC,fev.2002)

Sumário

1. Não ao ceticismo e ao dogmatismo
2. A revolução copernicana que não aconteceu
3. Contra a infantilização
4. A criança e a pornografia da morte
5. Eros e Tanatos

1. Não ao ceticismo e ao dogmatismo

Pensar em certos assuntos que, de antemão, não se pode conhecer é uma atividade vã: esse é o velho e desgastado argumento-chave dos céticos e
dogmáticos contra aquele que se propõe a tratar do tema da morte. O ceticismo afirma ser vão falar da morte porque ela é um conceito sobre algo
que não se tem experiência ou não se conhece; o dogmatismo dirá que é vão falar daquilo que já é sabido por força da revelação. Não devemos
lhe dar ouvidos porque são vozes da insensatez. Falemos da morte, sim, mas antes afastemos o cético perguntando-lhe como chegou ele à
conclusão de que não se pode falar da morte, quais são as suas fontes, que caminhos trilhou, que conhecimento especial tem para atribuir o
adjetivo inexplicável a um objeto e ele não saberá responder e se tentar deixará de ser cético. Quanto aos dogmáticos saibamos simplesmente
evitá-los, não pelo medo do debate, mas pela economia de tempo e senso do ridículo. Marionetes não pensam e, se quisermos saber das origens
de seu conhecimento, basta atentar para os fios em que estão penduradas.
Ademais nosso objeto não é a morte como mero conceito abstrato, tampouco a descrição dos processos do morrer— isso um médico-legista ou
até mesmo um certo filme denominado Faces da morte faria melhor. A morte, entendemos, deve ser analisada sob a ótica de significante
humana, em outras palavras, qual o sentido dela para nós. Interessa-nos uma abordagem antropológica da morte à luz da filosofia, as
manifestações humanas diante dessa possibilidade sempre presente e a postura atual do Ocidente em relação ao tema.

2. A revolução copernicana que não aconteceu

Falar da morte abre verdadeiramente uma possibilidade de acesso à consciência do homem, ao conhecimento do si-mesmo, o que implica
necessariamente numa maior consciência do outro. O escritor Edgar Morin, autor do livro O homem e a morte, lembra que a ciência que pesou o
sol, calculou sua idade e enunciou seu fim "continuou como que intimidada e trêmula diante do outro sol, a morte." E adverte que
se quisermos sair da lengalenga da morte, do ardente suspiro que espera a doce revelação religiosa, do manual de serena sabedoria, do
ensaio patético, da meditação metafísica em que se exultam os benefícios transcendentes da morte, a menos que se lamentem seus
malefícios não menos transcendentes, se quisermos sair do mito, da falsa evidência, assim como do falso mistério, é preciso copernicizar
a morte.[1]
O conceito de copercinização da morte implicaria numa revolução semelhante à que consistiu numa nova consciência da nossa posição humana
no universo. De certa forma ainda acreditamos que somos o centro imóvel do cosmos e por isso o tema da morte tem sido abordado sobre os
mesmos prismas há séculos. Isso se dá simplesmente porque não percebemos que é a nossa posição em relação ao problema da morte que faz a
morte aparecer como tem sido até então.

3. Contra a infantilização

No livro Micropolítica, organizado por Suely Rolnik, Félix Guattari é citado como autor de uma fala sobre as três principais características das
sociedades capitalísticas: culpabilização, serialização e infantilização. Esta última seria a mais importante de todas e é assim por ele referida:
Pensam por nós, organizam por nós a produção e a vida social. Além disso, consideram que tudo o que tem a ver com coisas
extraordinárias - por exemplo, o fato de falar e viver, o fato de ter que envelhecer, de ter que morrer - não deve perturbar nossa harmonia
no local de trabalho e nos postos de controle social que ocupamos, a começar pelo controle social que exercemos sobre nós mesmos. A
infantilização - por exemplo, das mulheres, dos loucos, de certos setores sociais, ou de qualquer comportamento dissidente - consiste em
que tudo que se faz, se pensa ou se possa vir a fazer ou pensar seja mediado pelo Estado. Qualquer tipo de troca econômica, qualquer
tipo de produção cultural ou social tende a passar pela mediação do Estado. Essa relação de dependência do Estado é um dos elementos
essenciais da subjetividade capitalística.[2]
Segundo Guattari, crianças não são infantis, tornam-se infantis quando se evita sistematicamente lidar com elas franca e responsavelmente em
torno de temas como o da morte ou do sexo. Falar da morte é reagir ao processo contemporâneo da infantilização, cujo mal reside em tornar as
pessoas incapazes de lidar com as situações-limites de sua própria vida. No artigo Doença e diferença, de autoria do sociólogo R. Miskolci, há
uma observação exemplar desse fenômeno:
Quando um risco grave ameaça um membro da família, esta conspira para o privar da informação e da liberdade. O doente torna-se uma
espécie de criança ou débil mental que o esposo ou os pais tomam a seu cargo. Todos sabem melhor do que ele o que ele deve saber e
fazer, por isso ele é privado do seu direito, outrora essencial, de conhecer sua morte, de a preparar e organizar segundo seus desejos.[3]
Gorer toca num fenômeno histórico específico de inversão do objeto pornográfico, mas deixa-nos com um comichão intelectual que só passa
quando fazemos duas observações: haveria uma oposição entre Eros e Tanatos, ou seja, será que a psiquê humana é incapaz de lidar com o sexo e
a morte do mesmo jeito ao mesmo tempo? Tem o homem uma necessidade de conviver com o pornográfico de tal modo que, quando as coisas do
sexo deixam de ser pornográficas as coisas da morte assumem essa função?
Sem responder a essas perguntas, Philippe Ariès, em seu livro O homem diante da morte (1990), também percebeu e descreveu o moderno
fenômeno da pornografização das coisas da morte:
Desde o início do século XX, havia o dispositivo psicológico (grifo nosso) que retirava a morte da sociedade, roubava-lhe o caráter de
cerimônia pública, fazendo dela um ato privado, reservado principalmente aos próximos, de onde, com a continuidade, a própria família
foi afastada quando a hospitalização dos doentes em estado grave se tornou regra geral. [...] O segundo grande acontecimento na história
contemporânea da morte é a rejeição e a supressão do luto.[4]
No Brasil, um fenômeno parece convergir para as observações de Gores e Ariès. Na cidade do Salvador-BA, ano 2000, espaço de uma produção
musical e dançante que induz a crer na não-pornografia das coisas do sexo, a Câmara Legislativa Municipal aprovou uma lei que proíbe a
exposição de urnas mortuárias e adereços de velório na frente das lojas funerárias. O pudor em relação às coisas da morte está obviamente
presente nesse artigo da referida lei:
É obrigatório, nas lojas funerárias, o uso de portas de vidro na cor fumê ou em qualquer outra, exceto transparente, desde que diminua a
visibilidade, pelo lado de fora, dos objetos expostos em seu interior, devendo permanecer sempre fechadas (...).[5]
Enquanto isso, nos Estados Unidos
...existem cursos de nível universitário para embelezar os mortos, transformando-os em múmias modernas, maquiados como atores.
Profissionais especializados não só preparam o cadáver, pintando-o e aplicando-lhe às vezes um sorriso impróprio na face, como criam o
cenário para o funeral, combinando cores, móveis, música, comida, dando a ilusão de que o morto é apenas mais um convidado. Ou o
anfitrião.[6]

4. A criança e a pornografia da morte

O texto a seguir deveria estar no corpo do item anterior, mas preferimos destacá-lo com um título próprio por conta de sua importância enquanto
caráter de denúncia.
Pais equivocados acreditam que não devem tocar no assunto da morte com a criança. Denegam esse inevitável acontecimento. Esforçam-se em
proporcionar aos filhos pequenos somente imagens e assuntos que julgam agradáveis e otimistas. Essa visão unilateral e omissa da realidade é, no
mínimo, castradora.
O filósofo Peter Sloterdijk, observando a recusa paradigmática da dor e a falta de estímulo a pensar no sofrimento nos EUA, sentenciou que esta
sociedade produzirá indivíduos "frouxos". Ele denuncia o mal que psicólogos - em sua maioria formados sob a ideologia dos anos 70 - provocam
ao desestimular a criança a ir a velório sob o argumento de que "essa visita iria traumatizá-la". Sloterdijk contrargumenta: será que todas as
gerações anteriores que passaram por essa experiência ficaram traumatizadas? Haveria muita diferença em ir a um velório e assistir diariamente
a cenas violentíssimas de banalização da vida na televisão?
O psicólogo Raymundo de Lima apresenta o seguinte depoimento:
Faz um ano que os meus filhos pequenos, após uma emocionada conversa e choros sobre a recente morte da avó, conversamos sobre eles
irem ou não ao velório. Antes, preparei-os descrevendo o ambiente de pesar em que estava o corpo da vovó: caixão, flores, gente
chorando, etc. Preferiram ir. E lá fizeram suas despedidas, não se traumatizaram, nem caíram em depressão. Hoje, demonstram estarem
mais conscientes e realistas de que a avó não mais está entre nós. A partir desta singular experiência, demonstram que estão
cotidianamente elaborando a idéia de morte e suas metáforas, já que novas perdas e separações serão inevitáveis.[7]
O psicanalista B. Bettelheim aconselha colocar a criança desde cedo em contato com estórias de fadas que tratam do problema da morte, pois
isto prepararia melhor sua personalidade para enfrentar a realidade inevitável.
Outro psicanalista, Philipe Julien, lembra da necessidade do luto, que teria a função de "partir o pão da palavra que diz a dor da perda". Pessoas
autênticas, psiquicamente mais adequadas não podem propôr-se a esquecer e sim partir em busca de alguma substituição para continuarem bem
existindo.

5. Eros e Tanatos

Retomando à problemática anterior, estamos em condições de fazer uma consideração crítica final. Eros e Tanatos são deuses da mitologia grega.
O primeiro representa o amor erótico, a atração, a comunhão, a instabilidade, a junção, a criação, a tendência ao animado e, conseqüentemente, à
vida, pois quando há união algo além das partes que se uniram é criado. O segundo é a representação do oposto de Eros: a retração, a
descomunhão, a estabilidade, a separação, a destruição, a tendência ao inanimado e, conseqüentemente, à morte, pois quando as partes se
desunem algo morre, desaparece. As ciências psi têm insistido em defender a idéia de que Eros e Tanatos habitam dentro de nós ou, numa
linguagem técnica, seriam estruturas da nossa psiquê. Freud, por exemplo, chegou a dizer que Tanatos era a manifestação violenta da libido -
esta seria a energia que faz a pulsão erótica[8] funcionar, mas, percebendo que a destruição era uma aspecto tão marcante da personalidade,
acabou por concluir que Tanatos podia ser também entendido como outra pulsão originária. A união erótica forma a estrutura embrionária de um
novo ser, mas o nascimento do homem ao mundo é um rompimento, uma separação. A vida não seria possível sem Eros e Tanatos. As estruturas
inanimadas e estáveis são o começo e o fim dos processos animados e instáveis. A criação não seria possível sem a destruição. Em outras
palavras: ignorar a realidade da morte é, ao mesmo tempo, ignorar a vida.


Notas
[1] Edgar Morin. O Homem e a Morte. p. 19.
[2] Félix Guattari. In.: Micropolítica. p. 41-2.
[3] Richard Miskolci, http://www.richardmiskolci.slg.br/rdd.html.
[4] Philippe Ariès. O Homem diante da Morte. p. 628.
[5] Art. 2º da Lei n. 5.733/200, publicada no Diário Oficial do Município, em 15 de maio de 2000, p. 2.
[6] Júlio J. Chiavenato. A morte, uma abordagem sociocultural. p. 44-5
[7] Raymundo de Lima. Falar de morte com as crianças. Disponível em . Acesso em 15
ago.2001.
[8] De forma grosseira, poderíamos dizer que pulsão é o impulso básico da psique humana, devendo ser entendida de forma um tanto mais
complexa que a noção biológica de instituto.

Israel de Alexandria

Esse é o primeiro post da série em que pretendemos tratar das negações que o homem faz ao óbvio, transformando acontecimentos naturais em mitos quase insondáveis. A posteriori virão comentários de nossa lavra, todavia, deixamos por momento o pequeno texto de Israel de Alexandria que apresenta um enfoque acadêmico-filosófico para o evento morte, lançando algumas bases de nossa opinião (ainda que discordemos em muitos pontos). Nos próximos posts, voltaremos com um aprofundamento desse assunto para início de discussão. 

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