quarta-feira, 17 de setembro de 2008

DELEUZE E AS SOCIEDADES DE CONTROLE


I. HISTÓRICO

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seuapogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios deconfinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada umcom suas leis: primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"),depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em quando ohospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É aprisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, ao veroperários, "pensei estar vendo condenados...". Foucault analisou muito bem o projetoideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuirno espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeitodeve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia erada brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo efunções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção,decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, eNapoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas asdisciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças quese instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial:sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão,hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior ", em crise como qualqueroutro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param deanunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, ohospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas,num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar aspessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades decontrole que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome queBurroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nossofuturo próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultrarápidas decontrole ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração deum sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias,formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervirno novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o maistolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Porexemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitaisdia,o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas tambémpassaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais durosconfinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

II. LÓGICA

Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo sãovariáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagemcomum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modosde controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema degeometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamentebinária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são umamodulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cadainstante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se vêclaramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forçasinternas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixopossível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu afábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema deprêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação paracada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios,concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têmtanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábricaconstituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato quevigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa deresistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sãemulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cadaum, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do "salário por mérito" tenta aprópria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a
formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui oexame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, dacaserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, aempresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de umamesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava nocruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicasmais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre doisconfinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variaçãocontínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, elemesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. Associedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o númerode matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viramincompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante eindividuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e moldaa individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado
no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil,por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros meios). Nas sociedades decontrole, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, masuma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladaspor palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). Alinguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, oua rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se"dividuais", divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou "bancos".É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que adisciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - que servia de medida padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervircomo cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira
monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de
controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em quevivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. Ohomem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controleé antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf jásubstituiu os antigos esportes.É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as
máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes delhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavammáquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinaresrecentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo daentropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinasde uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo éa interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evoluçãotecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutaçãojá bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é deconcentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica comomeio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mastambém eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casafamiliar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora porespecialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Masatualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequênciaà periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgiaou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima ejá não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas.O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é umcapitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para omercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A
família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos queconvergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figurascifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes.Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. Asconquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação dedisciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, portransformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupçãoganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a "alma" daempresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notíciamais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, eforma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotaçãorápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longaduração, infinita edescontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas ohomem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extremamiséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demaispara o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras,mas também a explosão dos guetos e favelas.

III. PROGRAMA

Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle quedê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva,homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade ondecada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartãoeletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusadoem tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador quedetecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveriaser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios deconfinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos,tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, masdevidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. Noregime das prisões: a busca de penas "substitutivas", ao menos para a pequenadelinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar emcasa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliaçãocontínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondentede qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da "empresa" em todos os níveis deescolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina "sem médico nem doente", queresgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra umprogresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ounumérico pela cifra de uma matéria "dividual" a ser controlada. No regime da empresa:as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pelaantiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor oque se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de
um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito àinaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nosmeios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas deresistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboçosdessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovenspedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formaçãopermanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seusantecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de umaserpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.


*DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-
226.

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