quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Para que Filosofia? (1)



1 - As evidências do cotidiano 

Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ourecusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”, ou “que dia é hoje?”. Dizemos frases como “ele está sonhando ”, ou “ela ficou maluca”. Fazemos afirmações como “onde há fumaça, há fogo ”, ou “não saia na chuva para não se resfriar”. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, “esta casa é mais bonita do que a outra” e “Maria está mais jovem do que Glorinha”. Numa disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: “Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu”, e alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: “Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender”. 

Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Freqüentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos q ue essa pessoa “é legal ”. Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano. Quando pergunto “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós. 
Quando digo “ele está sonhando”, referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, etambém que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente. Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão (...)

Na briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendoos fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa crença de que hádiferença entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como são,enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade. No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erroporque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto omentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos. Com isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentesporque somente na mentira há a decisão de falsear. 
Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou umengano involuntários e a segunda uma decisão voluntária, manifestamossilenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira. Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisaruim: não gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E nãosão mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que estámentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira “no duro”, “pra valer”(...)

Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.
 


*Marilena Chaui - Convite à filosofia

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