quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O Poeta e a Modernidade


Baudelaire caracteriza do modo seguinte o rosto da modernidade, não negando o sinal de Caim na sua fronte: "A maior parte dos poetas que se ocuparam de assuntos verdadeiramente modernos contentou-se com os reconhecidos e oficiais - as nossas vitórias e o nosso heroísmo político. Mesmo assim, fazem-no de mau grado, só porque o governo lhes faz a encomenda e lhes paga os honorários. E no entanto há assuntos da vida privada que são muito mais heróicos. O espectáculo da vida mundana e das milhares de existências sem saída que habitam os subterrâneos de uma grande cidade- as dos criminosos e das mulheres amancebadas - a Gazette des Tribunaux e o Moniteur, mostram que só precisamos de abrir os olhos para descobrir o nosso próprio heroísmo." Aqui surge o apache, o delinquente urbano, na imagem do herói, nele convergem os caracteres que Bounoure assinala na solidão de Baudelaire - "um noli me tangere, um enclausuramento do indivíduo na sua diferença." O apache rejeita as virtudes e as leis. Denuncia de uma vez por todas o Contrat Social, e acha que todo o mundo o separa do burguês. (...) Antes de Baudelaire, o apache, que durante toda a vida se vê remetido à periferia da sociedade como da grande cidade, não tem lugar na literatura.(...) Os poetas encontram o lixo da sociedade nas suas ruas, e é também ele que lhes fornece a sua matéria heróica. Assim, no tipo ilustre do poeta transparece um outro, vulgar de que ele é cópia. O poeta é penetrado pelos traços do trapeiro, que tantas vezes ocupou Baudelaire. (...) " Eis um homem cuja função é recolher o lixo de mais um dia na vida da capital. Tudo o que a grande cidade rejeitou, perdeu, partiu, é catalogado e colecionado por ele. Vai compulsando os anais da devassidão, o cafarnaun da escória. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; procede como um avarento com o seu tesouro, juntando o entulho que, entre as maxilas da deusa da indústria, voltaram a ganhar forma de objetos úteis ou agradáveis.".Esta descrição é apenas uma metáfora ampliada do trabalho do poeta segundo o sentimento de Baudelaire. Trapeiro ou poeta - a escória interessa a ambos; ambos exercem solitários, a sua profissão, a horas em que os burgueses se entregam ao sono; até o gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala da passada brusca de Baudelaire; é o passo do poeta saqueando a cidade nas suas deambulações em busca de rimas.


*Walter Benjamim, A modernidade

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