Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.
E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).
Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
*João Cabral de Melo Neto
Ao lado de Manuel Bandeira (1886-1968) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), João Cabral de Melo Neto (1920-1999) forma a santíssima trindade da moderna poesia brasileira. Além da estatura poética, os três têm um fio que os une: Bandeira foi mestre de Drummond e este, por sua vez, também serviu de referência para Cabral. Ao lado, um trecho de "O Cão sem Plumas", poema publicado em 1950. Anterior à peça em versos Morte e Vida Severina (escrita em 1954-55), esse cão despossuído de adornos representa um dos momentos mais altos da criação cabralina. O cão desemplumado é a metáfora de Cabral para o rio Capibaribe e sua cinzenta convivência com os homens-caranguejos, que também são cães sem plumas. "Difícil é saber/ se aquele homem/ já não está/ mais aquém do homem". Poema soberbo, "O Cão sem Plumas" é a descrição das condições subumanas nas palafitas e mocambos do Recife. A dicção é dura, como convém ao tema, mas nunca resvala para o panfleto. “Só mesmo um grande artista poderia assumir ecos de um discurso social sem ser panfletário, romântico ou esteticista”, escreve o colunista Daniel Piza (Gazeta Mercantil, 18/10/1999).
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