Como ao homem primitivo, também ao nosso inconsciente se apresenta um caso em que as duas atitudes opostas, em face da morte, chocam e entram em con?ito; uma, que a reconhece como aniquilação da vida, e outra que a nega como irreal. E este caso é o mesmo que na época primitiva: a morte ou o perigo da morte de um ente querido, do pai ou da mãe, de um irmão, de um ?lho ou de um amigo dilecto. Estas pessoas amadas são para nós, por um lado, um patrimônio íntimo, componentes do nosso próprio Eu; por outro, porém, são em parte estranhos, e até inimigos. Todas as nossas relações amorosas, mesmo as mais íntimas e ternas, implicam, salvo em raríssimas situações, um fragmento de hostilidade que pode estimular o desejo inconsciente de morte. Desta ambivalência já não nascem, como outrora, o animismo e a ética, mas a neurose, a qual nos faculta vistas profundas sobre o psiquismo normal. Os médicos que praticam o tratamento psicanalítico depararam, muitas vezes, com o sintoma de uma preocupação exacerbada pelo bem-estar dos familiares ou com autocensuras totalmente in- fundadas após amorte de uma pessoa amada. O estudo destes casos não lhes deixou dúvida alguma sobre a difusão e a importância dos desejos inconscientes de morte. O leigo horroriza-se com a possibilidade deste sentimento e atribui a tal repugnância o valor de um motivo legítimo para aceitar com incredulidade as a?rmações da psicanálise. Na minha opinião, sem fundamento algum. Não se intenta qualquer depreciação da vida afetiva, e não tem também semelhante consequência. Tanto a nossa inteligência como o nosso sentimento resiste, decerto, a juntar assim o amor e o ódio; mas a natureza, ao trabalhar com este par antitético, consegue conservar sempre desperto e fresco o amor, para o resguardar do ódio que, por detrás dele, está à espreita. Pode dizer-se que devemos as mais belas ?orações da nossa vida amorosa à reação contra o impulso hostil, que percebemos no nosso peito. Em resumo: o nosso inconsciente é tão inacessível à representação da morte própria, tão sanguinário contra os estranhos e tão ambivalente quanto à pessoa amada como o homem da Pré-história. Mas quanto nos afastamos deste estado primitivo na nossa atitude cultural e convencional frente à morte!
*Sigmund Freud
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
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