sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O homem que queria eliminar a memória

Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião. Disse que era caso de vida e morte. Não se sabe como, o melhor neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos são imprevisíveis. Precisa-se muito e eles falham; subitamente, estão ali, salvando nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar-comum.

Estava na sala diante do doutor. Uma sala branca, anônima. Por que são sempre assim, derrotando a gente logo de entrada?

O médico:

– Sim?

– Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu cérebro.

– Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu cérebro?

– Porque eu quero.

– Sim, mas precisa me explicar. Justificar.

– Não basta eu querer?

– Claro que não.

– Não sou dono do meu corpo?

– Em termos.

– Como em termos?

– Bem, o senhor é e não é. Há certas coisas que o senhor está impedido de fazer. Ou melhor; eu é que estou impedido de fazer no senhor.

– Quem impede?

– A ética, a lei.

– A sua ética manda também no meu corpo? Se pago, se quero, é porque quero fazer do meu corpo aquilo que desejo. E se acabou.

– Olha, a gente vai ficar o dia inteiro nesta discussão boba. E não tenho tempo a perder. Por que o senhor quer cortar um pedaço do cérebro?

– Quero eliminar a minha memória.

– Para quê?

– Gozado, as pessoas só sabem perguntar: o quê? por quê? para quê? Falei com dezenas de pessoas e todos me perguntaram: por quê? Não podem aceitar pura e simplesmente alguém que deseja eliminar a memória.

– Já que o senhor veio a mim para fazer esta operação, tenho ao menos o direito dessa informação.

– Não quero mais lembrar de nada. Só isso. As coisas passaram, passaram. Fim!

– Não é tão simples assim. Na vida diária, o senhor precisa da memória. Para lembrar pequenas coisas. Ou grandes. Compromissos, encontros, coisas a pagar.

– É tudo isso que vou eliminar. Marco numa agenda, olho ali e pronto.

– Não dá para fazer isso, de qualquer modo. A medicina não está tão adiantada assim.

– Em lugar nenhum posso eliminar a minha memória?

– Que eu saiba não.

– Seria muito melhor para os homens. O dia a dia. O dia de hoje para a frente. Entende o que eu quero dizer? Nenhuma lembrança ruim ou boa, nenhuma neurose. O passado fechado, encerrado. Definitivamente bloqueado. Não seria engraçado? Não se lembrar sequer do que se tomou no café da manhã? E para que quero me lembrar do que tomei no café da manhã?

– Se todo mundo fizesse isso, acabaria a história.

– E quem quer saber de história?

– Imaginou o mundo?

– Feliz, tranquilo. Só de futuro. O dia em vez de se transformar em passado de hoje, mudando-se em futuro. Cada instante projetado para a frente.

– Não seria bem assim. Teríamos apenas uma soma de instantes perdidos. Nada mais. Cada segundo eliminado. A sua existência comprovada através de quê?

– Quem quer comprovar a existência?

– A gente precisa.

– Para quê?

O médico pensou. Não conseguiu responder. O homem tinha-o deixado totalmente confuso. Pediu ao homem que voltasse outro dia. Despediram-se. O médico subiu para os brancos corredores do hospital, passou pela sala de operações. Chamou um amigo.

– Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérbro. Eliminar a memória. O que você acha?

– Muito boa idéia. Por que não pensamos nisto antes? Opero você e depois você me opera. Também quero.
*Ignácio de Loyola Brandão

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