quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Brasil (um conto de letargia)

Parece ficção mas, não é. O texto abaixo rendeu à Tatiana Merlino o 1º lugar no 31º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na categoria revista, aparentemente é sobre o judiciário nacional e seu descaso para com os menos afortunados. Todavia, se buscarmos além, uma pergunta habita as entrelinhas; Por quê o brasileiro é tão alheio às privações a ele infligidas? A cada dia passado mais e mais “josés” e “Marias” são tolhidos em seus direitos tendo que assistir indefesos o massacre de sua cidadania. A justiça não é cega, longe disso, ela tem olho clínico para selecionar seus bodes expiatórios, esses em geral, pessoas desvalidas de dinheiro, estrutura e amparo. Pessoas comuns, que poderiam muito bem serem eu ou você, subtraídas de sua vida extremamente comum para uma viagem sem volta ao reino obscuro das frias estatísticas. Sem dignidade, sem perspectiva, sem direitos.
Como é possível ter nostalgia por um tempo em que não se viveu? Ouço ecos de movimentos estudantis, passeatas sindicais, sociedade civil pró-anistia... Pra onde foi todo mundo? Quem nos roubou a capacidade de revolta? “A internet? Ah, a internet! No Orkut eu consigo parecer tão descolado... O carnaval? Ah, o deliciosamente pecaminoso carnaval! Tantas bundas, tantos peitos, orgia gratuita, produto de exportação... A TV? Ah, a TV! O Big Brother me deixa tão confortado, é como estar sedado frente a um pelotão de fuzilamento...” O Brasil é o país do futuro, sim. A grande questão é que os tempos vindouros nascerão das escolhas do agora. Façam suas apostas.

“Maria Aparecida evita olhar para sua imagem refletida no espelho. Faz quatro anos que a jovem paulistana saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria esquecer o que sofreu durante um ano de detenção. Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar um xampu e um condicionador que, juntos, valiam 24 reais. Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por seu “crime”: ficou cega do olho direito.

Portadora de “retardo mental moderado”, a ex-empregada doméstica foi detida em flagrante em abril de 2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada diretamente para a prisão, onde passou a dividir uma cela com outras 25 mulheres. Em surto, a jovem não dormia durante a noite, comia o que encontrava pelo chão, urinava na roupa.
Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto, a carceragem lançou uma bomba de gás lacrimogêneo na área das detentas. Uma delas resolveu jogar água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura do gás com o líquido fez com que seu olho fosse sendo queimado pouco a pouco. “Parecia que tinha um bicho me comendo lá dentro”, conta.
A pedido das colegas de pavilhão, que não agüentavam mais os gritos de dor e os barulhos provocados pela moça, ela foi transferida para o “seguro”, onde ficam as presas ameaçadas de morte. Maria Aparecida passou a apanhar dia e noite. “Eu chorava muito de dor no olho, e elas começaram a me bater com cabo de vassoura”, relembra, emocionada. Somente quando compareceu à audiência do seu caso, sete meses depois de ter sido detida, sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada. Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do olho direito.
Foi nessa época que sua irmã Gisleine procurou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para a advogada Sônia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Sônia entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado. Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido presa por causa de 24 reais.
A advogada também entrou com um pedido de extinção da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”, aplicado quando o valor do patrimônio furtado é tão baixo que não vale a pena a justiça dar continuidade ao caso. No entanto, até hoje, o processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua em liberdade provisória.
A situação indigna Gisleine. “É um descaso muito grande. Já era para esse julgamento ter acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse xampu que não chegou a utilizar”, critica. “Tem gente que não precisa estar na cadeia. Existem penas alternativas e o caso dela não seria de prisão, mas sim de internação, já que desde os 14 anos ela toma medicação controlada”, afirma.

Justiça seletiva

O mesmo recurso jurídico – o habeas corpus – pedido pela advogada Sônia Drigo para que Maria Aparecida respondesse ao processo em liberdade foi solicitado e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas um “pouco” mais rica: a empresária Eliana Tranchesi, proprietária da butique de luxo Daslu, em São Paulo, condenada em primeira instância a uma pena de 94.5 anos de prisão. Três pelo crime de formação de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica”.

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E enquanto isso na avenida, tudo vai bem...
*Tatiana Merlin
**Leandro M. de Oliveira

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