quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Deleuze e o significado da filosofia

Talvez só se possa colocar a questão "o que é a filosofia" tarde, quando vem a velhice e a hora de falar concretamente. É uma questão que se coloca quando não se tem mais nada a perguntar, mas suas consequências podem ser consideráveis. Antigamente, ela era colocada, não se parava de colocá-la, mas era demasiado artificial, demasiado abstrata, ela era exposta, era dominada mais que dominava. Existem casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude, mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se goza de um momento de graça entre a vida e a morte e onde todas as peças da máquina se combinam para enviar ao futuro um traço que atravessa as idades: Turner, Monet, Matisse. Turner velho adquiriu ou conquistou o direito de levar a pintura por um caminho deserto e sem volta, que não se distingue mais de uma última questão. Assim também na filosofia, a "Crítica do Juízo", de Kant, é uma obra de velhice, uma obra desembestada, atrás e da qual não vão parar de correr seus descendentes.

Nós não podemos aspirar a um tal status. Simplesmente veio a hora de perguntar o que é a filosofia. Não tínhamos cessado de fazê-lo anteriormente, e já tínhamos chegado à resposta, que não variou: a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Mas não era suficiente que a resposta recolhesse a pergunta, era preciso que determinasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão. Era preciso poder colocá-la "entre amigos", como uma confidência ou uma confiança, ou então ante o inimigo, como um desafio, e de uma só vez alcançar essa hora, no lusco-fusco, em que se desconfia até mesmo do amigo.

É que os conceitos precisam de personagens conceituais que contribuam para a sua definição. "Amigo" é um desses personagens, e diz-se mesmo que ele testemunha a origem grega da "filo-sofia", as outras civilizações tinham sábios, mas os gregos apresentam esses "amigos", que não são apenas sábios mais modestos. Os gregos teriam enterrado de vez o sábio, substituindo-o pelos filósofos, os amigos da sabedoria, os que buscam a sabedoria, mas não a possuem formalmente. Poucos pensadores entretanto, se perguntaram o que significa "amigo", mesmo e sobretudo entre os gregos. Amigo designaria uma certa intimidade competente, uma espécie de gosto material ou uma potencialidade, como a do marceneiro com a madeira: o bom marceneiro tem a madeira em potencial, ele é o amigo da madeira? A questão é importante já que o amigo, tal como aparece na filosofia, não designa um personagem extrínseco ao pensamento, um exemplo ou uma circunstância empírica, mas uma presença intrínseca, uma condição de possibilidade do próprio pensamento, em suma, uma categoria viva, uma experiência transcendental, um elemento constituinte do pensamento. E de fato, desde o nascimento da filosofia, os gregos dobram o amigo, que não entra mais em relação com um outro, mas com uma "entidade", uma "objetividade", uma "essência". É o que exprime bem a fórmula tão frequentemente citada, que é preciso traduzir: sou o amigo de Pedro, de Paulo, ou mesmo do filósofo Platão, mas mais ainda amigo da "verdade", da "sabedoria" ou do "conceito". O filósofo está por dentro dos conceitos, e da falta deles, sabe quais são inviáveis, arbitrários ou inconsistentes, não se sustentam um único instante, quais ao contrário são bem feitos, resultado de uma criação, mesmo inquietante ou perigosa (...).

O filósofo é o amigo do conceito, ele tem o conceito em potencial. Isso quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, inventar ou fabricar conceitos, pois esses não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. O amigo seria o amigo de suas próprias criações? Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo, como àquele que o tem em potencial, ou que guarda a sua potência e competência. Não se pode objetar que a criação seja atribuída antes ao sensível e às artes, já que a arte dá existência a entidades espirituais e que os conceitos filosóficos são também "sensibilia". Na verdade, as ciências, as artes, as filosofias são igualmente criadoras, embora caiba somente à filosofia criar conceitos em sentido estrito. Os conceitos não nos esperam já prontos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados, ou melhor criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: "Os filósofos não devem se contentar em aceitar os conceitos que lhes são dados, apenas para limpá-los e lustrá-los, mas é preciso que comecem fabricando-os, criando-os colocando-os e persuadindo os homens a recorrer a eles. Até hoje, em suma, cada um confiava em seus conceitos, como num dote milagroso vindo de um mundo qualquer, igualmente milagroso", mas é preciso substituir a confiança pela desconfiança, e é dos conceitos que o filósofo deve desconfiar mais, já que não foi ele mesmo que os criou (Platão o sabia bem, embora tenha ensinado o contrário...). De que valeira um filósofo de quem se poderia dizer: ele não criou conceito? Vemos ao mesmo o que a filosofia não é: ela não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação, mesmo se às vezes acreditou ser uma coisa, às vezes outra, em razão da capacidade de toda disciplina de engendrar sua próprias ilusões e se esconder por trás de uma névoa que emite especialmente. Ela não é contemplação, pois as contemplações são as próprias coisas vistas na criação de seus próprios conceitos. Ela não é reflexão, porque ninguém precisa da filosofia para refletir sobre o que quer que seja: acreditamos estar dando muito à filosofia ao fazer dela a arte de reflexão, mas estamos lhe tirando tudo, pois os matemáticos nunca esperaram os filósofos para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre a pintura ou a música; dizer que eles se tornam então filósofos é uma brincadeira de mau gosto, já que a reflexão deles pertence à sua criação respectiva. E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação, que só trabalha com opiniões em potencial, para criar "consensus" e não conceito.
*Gilles Deleuze

2 comentários:

Anônimo disse...

Creio que com o tempo a vida vem se tornando mais rápida, desde muito tempo atrás, e, por isso, tem feito mais sucesso a idéia de que o possuir o saber é muito, para ser prática, chato. Com a vida que tomamos, principalmente na contemporaneidade, o precisar sempre descobrir e pensar torna a vida menos sugada pela correria que exigem de todos nós e mais interessante. Claro que muito dessá opinião é a influência do sistema que crê ser melhor a produção de novidades que a posse de "velharias".

Rodrigo Cavalcanti disse...

o que vc quiz dizer com "contemplações são as próprias coisas vistas na criação de seus próprios conceitos" ? Me intriga a questão do que é contemplação para Deleuze. Se são as coisas "vistas na criação", quem às vê? o próprio criador tem a capacidade de contemplar no mesmo momento em que cria? se filosofar é criar, contemplar é o que? está em qual âmbito? do hábito? que hábito? Abs