Manhã de um sábado de carnaval, num sobrado antigo, não muito longe da Igreja do Monte, em Olinda.
Um passante esfarrapado anuncia no meio da rua:
- Quem quer comprar vassoura de piaçava para deixar a casa bem limpinha depois da folia?
Dona Filósofa vai até a janela do sobrado:
- O Sr. não teria, por acaso, uma vassoura voadora? Preciso de uma para completar a minha fantasia de Platônica Perplexa!
- Quer dizer que a senhora quer alçar vôo até as transcendências? Mas em que plano pretende chegar - ao das entidades matemáticas, ao das Formas ideais, ou pretende mesmo contemplar o Bem em si?
- E o Sr. poderia me arranjar uma vassoura para vôos tão elevados?
- Só depende de suas reservas de pão espiritual e do vinho da alma.
- Ah, meu Sr., lamento muito, mas o meu forno e a minha adega estão quase vazios...
- Antes estivessem, minha cara Dona Filósofa; de fato, eles estão repletos, plenos de seus apetites e de sua preguiça.
- Ora bolas, mas o que posso fazer contra a minha fome e o meu cansaço?
- Nada, minha senhora, nada. A questão é essa: aprender a querer e a fazer como se fosse nada, simplesmente nada!
- E o que responder a meus desejos?
- Ora bolas, agora digo eu, minha cara, a senhora é surda? Nada, nada mesmo, e sobretudo não ousar sequer tentar escapar do estado de desejar! Seus estudos não lhe ensinaram que esse é o estigma da condição humana? Porventura, não aprendeu, depois de tantos anos, uma lição tão elementar?
- Como é possível, então, desejar sem preencher de objetos meus desejos?
- Com mais coragem e humildade a senhora aprenderia. Compreenderia que não está a seu alcance saber de que vinho e de que pão deve se alimentar! E, nesse caso, só lhe restaria desejar, desejar à toa, em vão... Desejar com intensidade, pensar com atenção, operar com diligência, mas sem se deixar enredar por quaisquer objetos ou objetivos. Lembre-se das palavras do Pater: Seja feita a Vossa vontade... Por acaso, a senhora pretende saber qual é a vontade que vem das transcendências? Já não viveu tantas vezes a experiência do desencanto, até quando julgava saber o melhor para si? Não tente pois, minha senhora, preencher a sua fome com toda a pretensão de sua imaginação. Limite-se a reconhecê-la e, creia-me, isto não seria pouco, seria o limiar da plenitude possível...
- O Sr. sabe se existe algum Fundo de Reservas Espirituais (uma espécie de avesso do FMI) que permitisse acesso a algum crédito sobrenatural, algum empréstimo dessa sabedoria, sem juros existenciais ou outros encargos?
- A senhora quer crédito maior do que a Vida mesma - a chance de, a cada dia, poder contemplar o Sol e recomeçar?
Antes de tudo, é preciso aprender que as melhores vassouras não servem para juntar ou acumular; servem para limpar e esvaziar. Por enquanto, Dona Filósofa, o melhor mesmo é a senhora começar aprendendo a lição mais simples e eficaz desta colorida vassoura de piaçava. Ela servirá também para complementar o faz de conta da sua fantasia. Contente-se com isso; cuide-se bem e brinque um alegre carnaval; não menospreze, sem conhecimento de causa e sem a devida iniciação, as cores e as luzes deste mundo a seu alcance. No próximo ano, quem sabe... Estou sempre passando pelas ruas como os melhores e mais antigos blocos de folia...
*Emília Maria M. de Morais
Um passante esfarrapado anuncia no meio da rua:
- Quem quer comprar vassoura de piaçava para deixar a casa bem limpinha depois da folia?
Dona Filósofa vai até a janela do sobrado:
- O Sr. não teria, por acaso, uma vassoura voadora? Preciso de uma para completar a minha fantasia de Platônica Perplexa!
- Quer dizer que a senhora quer alçar vôo até as transcendências? Mas em que plano pretende chegar - ao das entidades matemáticas, ao das Formas ideais, ou pretende mesmo contemplar o Bem em si?
- E o Sr. poderia me arranjar uma vassoura para vôos tão elevados?
- Só depende de suas reservas de pão espiritual e do vinho da alma.
- Ah, meu Sr., lamento muito, mas o meu forno e a minha adega estão quase vazios...
- Antes estivessem, minha cara Dona Filósofa; de fato, eles estão repletos, plenos de seus apetites e de sua preguiça.
- Ora bolas, mas o que posso fazer contra a minha fome e o meu cansaço?
- Nada, minha senhora, nada. A questão é essa: aprender a querer e a fazer como se fosse nada, simplesmente nada!
- E o que responder a meus desejos?
- Ora bolas, agora digo eu, minha cara, a senhora é surda? Nada, nada mesmo, e sobretudo não ousar sequer tentar escapar do estado de desejar! Seus estudos não lhe ensinaram que esse é o estigma da condição humana? Porventura, não aprendeu, depois de tantos anos, uma lição tão elementar?
- Como é possível, então, desejar sem preencher de objetos meus desejos?
- Com mais coragem e humildade a senhora aprenderia. Compreenderia que não está a seu alcance saber de que vinho e de que pão deve se alimentar! E, nesse caso, só lhe restaria desejar, desejar à toa, em vão... Desejar com intensidade, pensar com atenção, operar com diligência, mas sem se deixar enredar por quaisquer objetos ou objetivos. Lembre-se das palavras do Pater: Seja feita a Vossa vontade... Por acaso, a senhora pretende saber qual é a vontade que vem das transcendências? Já não viveu tantas vezes a experiência do desencanto, até quando julgava saber o melhor para si? Não tente pois, minha senhora, preencher a sua fome com toda a pretensão de sua imaginação. Limite-se a reconhecê-la e, creia-me, isto não seria pouco, seria o limiar da plenitude possível...
- O Sr. sabe se existe algum Fundo de Reservas Espirituais (uma espécie de avesso do FMI) que permitisse acesso a algum crédito sobrenatural, algum empréstimo dessa sabedoria, sem juros existenciais ou outros encargos?
- A senhora quer crédito maior do que a Vida mesma - a chance de, a cada dia, poder contemplar o Sol e recomeçar?
Antes de tudo, é preciso aprender que as melhores vassouras não servem para juntar ou acumular; servem para limpar e esvaziar. Por enquanto, Dona Filósofa, o melhor mesmo é a senhora começar aprendendo a lição mais simples e eficaz desta colorida vassoura de piaçava. Ela servirá também para complementar o faz de conta da sua fantasia. Contente-se com isso; cuide-se bem e brinque um alegre carnaval; não menospreze, sem conhecimento de causa e sem a devida iniciação, as cores e as luzes deste mundo a seu alcance. No próximo ano, quem sabe... Estou sempre passando pelas ruas como os melhores e mais antigos blocos de folia...
3 comentários:
cade a moral que eu não vir
ficou bom mais cade a moral
ficou bom
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