segunda-feira, 20 de abril de 2009

As tarefas da inteligência: Um convite à ação intelectual

(...) Provàvelmente, o sr. Astrojildo Pereira, que não desconhece os outros aspectos da questão, dá maior importância êsse papel ativo e restrito dos intelectuais. Por motivos de preferências pessoais, por causa das condições históricas e culturais do Brasil e do mundo e ainda devido à situação mesmo da "inteligência" brasileira.

Em todo caso, parece-me que não devemos afastar os intelectuais assim, por qualquer causa, por mais "nítida" que ela seja. A campanha contra o analfabetismo é um dos elos de uma grande corrente; um dos aspectos de uma imensa tarefa. A contribuição dos intelectuais não pode e não deve ser de forma alguma específica - caso contrário estaremos numa modalidade nova de traição da inteligência: a de participação intencionalmente restrita, mínima. Os intelectuais compreendendo a impossibilidade do abstencionismo, procurando limitar o quanto possível suas atividades e sua participação. É uma forma de fugir à luta, aceitando-a; é também um meio de a "inteligência" conservar-se a serviço das classes dominantes, calcando suas mãos na balança dos dominadores e oprimidos. Jôgo duplo, amoral e perigoso, que poderia culminar no esmagamento da "inteligência" novamente.

Não. Parece-me que os intelectuais brasileiros não se devem iludir muito com as especificidades de suas funções. Sem trair a causa da "cultura" e sem deixar de fazer sua grande e histórica campanha contra o analfabetismo, em favor do povo - se é que de fato se preocupam com o povo brasileiro - é preciso que caiam de rijo? sôbre o corpo da questão. Quem pensa os fatos não pode fazer uma separação assim brutal nas atividades da "inteligência", uma limitação tão violenta nas tarefas dos intelectuais e acreditar na eficiência de uma ruptura dêsse gênero exatamente no momento em que é necessário colocar as fôrças do pensamento e de ação no campo aberto da luta contra as fôrças da reação, do aproveitamento e da opressão. É inconcebível, mesmo, que os intelectuais cheguem a fazer isso; e seria uma enormidade se o fizerem, justificando-se com a causa da cultura e a causa do povo. A causa da cultura e a causa do povo sob certos aspectos são uma só. Não é possível dissociar uma da outra. Ou, mais precisamente, a causa do povo implica a causa da cultura. Os intelectuais têm que considerar isto, se quiserem evitar a definição errada de posições. E se querem de fato defender a causa do povo, é lógico que não poderão dar uma importância desequilibradora à causa da cultura; situá-la, isto sim, no conjunto das outras causas e reivindicações do povo. Só assim conseguirão algo sólido para o povo e para a causa da cultura.

De nenhuma forma é conveniente, pois, a atribuição de uma tarefa exclusiva ou preponderante à inteligência brasileira, em nosso momento histórico. Ninguém desconhece a gravidade da situação educacional do povo brasileiro e ninguém ignora as consequências que um melhoramento sólido traria a todos nós. Ninguém pode desdenhar o alcance econômico, social e político do elemento do nível educacional de nossas populações do campo e da cidade e o significado de sua participação maior na "cultura". Entretanto, êsse admirável objetivo será alcançado com uma condição: que se atue sôbre os vários fatôres e condições do atual estado de fato. Aí as tarefas da "inteligência" são múltiplas. Ela deve começar por assumir várias posições de luta e de ação - pois que a definição da "posição" dos intelectuais só vale à medida que ela indica o preenchimento efetivo das diversas posições e a realização das tarefas correspondentes - e teríamos, para a "inteligência" brasileira, uma posição econômica, uma política, outra social etc., tôdas intimamente relacionadas e interdependentes.

O intelectual não deve deixar as massas abandonadas às manobras que aqui e no estrangeiro estão se fazendo, visando desviar a atenção do povo do aproveitamento da guerra e do próprio massacre de seus interêsses e reivindicações, facilitado às vêzes por certos escritores. Os intelectuais não podem deixar de discutir concretamente as condições de vida do povo brasileiro, se quiserem conseguir qualquer coisa prática. A situação de nossas populações das zonas rurais e urbanas do trabalhador do campo e da cidade, seu nível de vida e seus recursos econômicos, comparando-o os nossos escritores com o nível de vida e recursos econômicos dos que aqui passam por privilegiados: verificarão que o "cultural lag", a decalagem cultural, tem causas sociais econômicas, demográficas, políticas etc., precisas. É necessário atuar sôbre as causas quando se pretende eliminar ou agir sôbre os efeitos. A mesma coisa pode-se falar de outros problemas característicos de nosso povo. Isso tudo quer dizer como também reconhece o sr. Astrojildo Pereira, que a questão tem três lados: a democratização da cultura, que é o coroamento, o fim e o resultado; a "democratização política" e a "democracia econômica". O escritor nunca chegará à "democracia cultural" diretamente saltando seus princípios políticos e suas bases econômicas. O salto seria além de perigoso, inócuo. É indispensável que a "inteligência" brasileira compreendendo isso, não se negue a realizar suas tarefas em todos os três setores, integralmente, como o mundo moderno necessita. E não ficar imobilizada pelo fantasma do mêdo e do comodismo comprometida por uma pseudo-campanha, unilateral e por isso condenada de início.

*Florestan Fernandes

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