Em menção ao Natal e todo esse "espírito religioso" que aflora dentro sociedade ocidental nesse período do ano posto uma série de Helder Macedo da qual gosto muito. Espero que apreciem...
OS TRABALHOS DE MARIA E O LAMENTO DE JOSE
ANUNCIAÇÃO
Espada dúctil de fogo
negro sol latejando vertical
ave branca explodia no meu ventre
é sem partilha
o amor que me anuncias
nem é humana
ou tua
a sombra que cresceu sobre o meu corpo
e me alongou num fundo mar
sem esperança
pois não há esperança no mistério revelado
e o que a carne concebe
é já divino
porque sem comando.
NATIVIDADE
Latejar intervalado de orgasmo já em ferida.
Rotura. Espanto. Irreversível dor.
Um ventre inchado golfa a expectativa de si próprio.
Porém já fui pequena
já fui também pequena
e me nasceram seios
e me cresceram pelos
e o sexo me floriu
no afago quente
do primeiro sangue.
Um grito rouco. Um ventre rasgado de dentro.
Viscoso, um novo corpo
tomba
e limita a eternidade.
Fiquei então sozinha
no corpo que era meu
para que o desse.
E dei-o
e mo romperam
com amor.
Não tem olhos nem dentes, não tem nome,
digere, vage, suga,
é calvo, é mole, é outrem,
só fúria sem contornos de crescer.
E agora
por mim própria violada
me castrei.
O amor que existe
Começa e acaba em mim.
Como negar-me
Se eu fui quem me devora:
Mas fui pequena
mas fui também pequena.
O DESERTO
Agora o vazio
agora o deserto
agora o vazio
porque estou sem mim
agora o deserto
porque a vida que gerei
negou a vida
chorai chorai comigo
ou tapai-me a boca
com pedras e com estrume
chorai chorai chorai
porque aquele que tinha em si
a morte e a vida
escolheu a morte
essas vozes que ouvias
meu menino
essas vozes que ouviste
e chamavam por ti
não era a morte não
que a morte é muda
e quando a morte fala
é porque a vida
era a voz do que tu és
e não conheces
a chamar-te por ti
a chamar o seu dono
para lhe mostrar
que toda a eternidade
está contida
no teu corpo
que podes conhecer
a eternidade
pois não há outra
além de conhecê-la
no prazo temporário
do teu ser
e só ai
só em ti
porque ela é tão finita
como tu
é tão mutável
e tudo o que o não seja
é só o nada
nada
nada
ah chorai comigo
ou então matai-me
recusaste
ser tudo quanto és
recusaste
encontrar-te
face a face
com o segredo de ti
ou cegaste
quando o viste
e guardaste só nos olhos
a visão
que projectaste no vazio
e então morreste
antes de ser
pois és profeta
de mundos que não há
e não do mundo
e morreste
e morreste
e morreste antes de seres
e não deste o teu nome
à tua vida
e eu choro
choro
choro
sobre o teu pavor
de não teres alma
de não seres tu
a alma do teu corpo
e choro sobre mim
que te gerei
e pari morte
porque negaste
a vida que em mim tinha
e que te dei
e fiquei só
e estou sem nada
e o meu ventre está oco
é o vazio
e sequei
e sequei
como o deserto
CRUCIFICAÇÃO
O que ofereces não chega.
Tua vontade tem o teu tamanho]
e o corpo que lhe dás é o teu corpo
meu corpo anterior que me usurpaste.
Nem o reino que anuncias pode abrir-se
para ti
mais que os lábios rasgados do meu sexo.
Um parto é sem regresso.
E é já dos outros
a fé que rege o mundo
e que os teus braços breves esticou
num abraço maior do que podias.
Não o teu verbo
mas o teu corpo
eu quero
que nele se transformou o meu poder.
Morre sozinho
Se não crês em ti.
Meu ventre bifurcando lembra ainda
a forma imaculada do teu crânio.
RESSURREIÇÃO
E agora há morte
porque tu morreste
e agora já sou eu quem vai morrer
quando eu morrer
tu foste o sangue
mas eu sou a carne
devolveste-me a vida
quando acabaste a vida que te dei
e tenho medo agora
e já não sei
em que sonhos de ti me hei-de ocultar
teu cadáver não foi meu impunemente
pois desceste de ti
não ao teu ventre
mas ao ventre amorfo
e triturante
da terra
que te despojará da tua forma
corroendo de ti todo o meu ser
para ressuscitares
em nada
para sempre.
O LAMENTO DE JOSÉ
Amei. Não fui amado. Sem paixão.
O mundo que inventaste não permite
nem que o rancor defina o meu amor.
Teu corpo fecundei
inchou de mim
mas como um estupro do que te ofereci
recusaste a verdade do meu corpo
no filho que pariste
em vez do meu.
Meu destino cumpri em não ter sido.
Estou velho e só.
Que venha a morte
Mas que seja minha.
(De Poesia – 1957-1968)
*Helder Macedo - Poeta, romancista, ensaísta, crítico e investigador literário, nasce em 1935, em Krugersdorp, perto de Joanesburgo, África do Sul. Passa a infância em Moçambique até 1948, ano em que vem para Lisboa. Entre 1955 e 1959 frequenta a Faculdade de Direito de Lisboa. No ano seguinte, Helder Macedo instala-se em Londres, onde se licencia em Estudos Portugueses e Brasileiros e História. Em 1971, inicia a sua carreira académica no King’s College, em Londres — onde obtém o doutoramento na área de Letras, em 1974 —, passando, entre outras universidades, por Harvard (E.U.A.), pela EHECS (França) e pela Universidade de São Paulo (Brasil). Especializou-se nas obras de Camões, Bernardim Ribeiro e Cesário Verde, detendo, desde 1982, a cátedra Camões no King’s College. Colaborou na organização de várias antologias poéticas e assinou artigos ensaísticos em diversos jornais e revistas nacionais e internacionais.
O seu primeiro livro de poesia, Vesperal, foi publicado em 1957, marcando o início da sua obra poética.
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