UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas, Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas; E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo. Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo, Gosta do colibri, como gosta do verme, E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme; E caminha na terra imperturbável, como Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo Vem a folha, que lento e lento se desdobra, Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra: Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto; E é nesse destruir que as forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto; Começa e recomeça uma perpétua lida, E sorrindo obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a vida.
*Machado de Assis (Ocidentais, in Obras completas, 1901.)
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