quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Anti-Édipo - Deleuze e Guattari


(…)
Freud fez a descoberta mais profunda: a da essência subjetiva do desejo, a Libido. (…) – só podia pensar que a essência da vida era uma forma voltada contra si própria, que a essência da vida tinha a forma da própria morte. (…)
É o Édipo, terra pantanosa que exala um profundo cheiro a podridão e morte, e é a castração a piedosa ferida ascética, o significante, que faz desta morte um conservatório da vida edipiana. O desejo em si mesmo é, não desejo de amar, mas força de amar, virtude que dá e que produz, que maquina (como é que aquele que vive podia ainda desejar a vida? como é que se pode chamar DESEJO a isso?). (…) A espera de melhores dias? É preciso – mas quem é que fala assim? que abjeção? – que se torne desejo de ser amado e, pior ainda, desejo choramingas de ser amado, desejo que renasce da sua própria frustração: não, o papá-mamã não me amou que chegasse… O desejo doente deita-se em cima do divã, pântano artificial, terrazinha, mãezinha. Repare: você não pode andar, vacila, já não se sabe servir das pernas… e a única causa disso é o desejo de ser amado, um desejo sentimental e choramingas que tira toda a firmeza aos seus joelhos (48). (…)
Estenda-se no divã, em cima do confortável sofá que o analista lhe oferece, e tente mas é pensar noutra coisa… Se perceber que o analista é um ser humano como você, com as mesmas chatices, os mesmos defeitos, as mesmas ambições, os mesmos fracos e tudo, que não é depositário de uma sabedoria universal (=código) mas um vagabundo como você (desterritorializado), talvez deixe de vomitar essa água de esgoto, por muito bem que lhe soe aos ouvidos: talvez então você se consiga endireitar nas duas patas e se ponha a cantar com a voz que Deus (numen) lhe deu. Sai-lhe sempre caro confessar-se, esconder-se, lamuriar-se, lamentar-se.
Cantar é grátis. E não apenas grátis – enriquecem-se os outros (em vez de os infectar). O mundo dos fantasmas é aquele que nunca acabamos de conquistar. É um mundo do passado, não do futuro. Caminhar agarrado ao passado é arrastar as grilhetas de forçado… Não há ninguém entre nós que não seja culpado pelo menos de um crime: o crime enorme de não viver plenamente a vida (49).
Você não nasceu Édipo, fez mas foi crescer o Édipo em si; e pensa que se há de livrar-se dele com o fantasma, com a castração, que também são coisas que você fez crescer no Édipo, ou seja em si – horrível círculo.
Merda para todo esse teatro mortífero, no imaginário ou simbólico. (…) E exigimos o direito de uma ligeireza e de uma incompetência radicais, o direito de entrar no consultório do analista e dizer que lá cheira mal. Cheira a morte e a euzinho.
(…)
(48) D.H.Lawrence, La Verge D’Aaron, p.99
(49) Henry Miller,
Sexus (o que está entre parêntesis é dos autores). Remetemos para os exercícios de psicanálise cómica no Sexus

*GILLES DELEUZE e FÉLIX GUATTARI
ANTI-ÉDIPO – CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA
Assírio & Alvim, 2004
pgs. 348, 349 e 350

 

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