sábado, 13 de dezembro de 2008

Autopsicografia


O poeta é um fingidor. 
Finge tão completamente 
Que chega a fingir que é dor 
A dor que deveras sente. 

E os que lêem o que escreve, 
Na dor lida sentem bem, 
Não as duas que ele teve, 
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda 
Gira, a entreter a razão, 
Esse comboio de corda 
Que se chama coração.

.

Nesta vida, em que sou meu sono, 
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu,
E só me encontro quando de mim fujo.

Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhasse
A Presença Real sob disfarce
Da minha alma presente sem intento.

 

Pousa um momento, 
Um só momento em mim, 
Não só o olhar, também o pensamento. 
Que a vida tenha fim 
Nesse momento!

No olhar a alma também 
Olhando-me, e eu a ver 
Tudo quanto de ti teu olhar tem. 
A ver até esquecer 
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu 
Só o teu pensamento 
E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou 
Ficou com o momento 
E o momento parou.


*F. Pessoa

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