Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, em 3 de maio de 1469, sendo o terceiro dos quatro filhos (dois homens, duas mulheres) de Bernardo Machiavelli e Bartolomeu Nelli. Pertencia a uma família tradicional, que não chegava a ser abastada, com pelo menos dois séculos de existência em Florença. Em seu livro Para Conhecer o Pensamento de Maquiavel, Duvernoy afirma que a família Machiavelli era “honorável ideologicamente, à vontade nesta Florença comunal onde vivem como cidadãos de artes subalternas”.
Seu pai era advogado e também estudioso em humanidades, influenciado pelos ventos da Renascença que há tempos sopravam na Itália. Bernardo Machiavelli se empenhou para proporcionar ao pequeno Nicolau uma educação dentro dos melhores padrões de seu tempo. Aos sete anos, Nicolau começou a estudar matemática e latim e, aos oito, entrou na escola de Battista de Poppi. Aos doze anos, começou a estudar com o latinista Paolo de Ronciglione e, segundo o testemunho de seu pai, redigia muito bem em latim.
A infância e a juventude de Maquiavel correspondem também ao desabrochar de uma nova era, a Idade Moderna, que soterra as antigas instituições medievais em um vendaval de transformações. É uma época de efervescência, particularmente rica e conflituosa, o epicentro de grandes crises e, ao mesmo tempo, geradora de grandes soluções. Para se ter uma idéia de como esse período foi marcante, basta assinalar que Maquiavel conviveu e foi marcante protagonista do Renascimento intelectual, que é, sem dúvida, um dos mais significativos momentos da cultura humana. Foi contemporâneo dos grandes descobrimentos marítimos e da Reforma protestante.foi espectador e agente do processo de gestação de um novo tipo de Estado, o Estado moderno centralizado, que aboliu os particularismos políticos feudais e instalou o absolutismo monárquico, cuja forma de governo prevaleceu até o início da Idade Contemporânea.
Todo esse cenário grandiloqüente pode ser resumido em apenas uma palavra: transição. As mudanças de instituições e de valores em uma velocidade alucinante, em um ritmo nunca vivido antes pela civilização ocidental cristã, caracterizam uma situação verdadeiramente revolucionária. Nenhum setor da vida e da sociedade estava livre do alcance do vendaval transformador que tudo atingia, tudo desestabilizava.
A vida de Maquiavel corresponde a um tempo de indefinições estruturais: aa ordem feudal fora devastada pelo crescimento das cidades e pelo fortalecimento crescente de atividades mercantis, artesanais e financeiras, que a cada dia se incompatibilizavam mais e mais com a economia agrária, então baseada no feudo auto-suficiente e na exploração servil do trabalho. Embora o feudalismo resistisse, como tentou continuar ainda nos séculos seguintes, era forçado a abrir um espaço cada vez maior para novos conceitos e padrões.
Os dois fundamentos básicos sobre os quais se apoiava a estrutura medieval de poder, o clero e a nobreza, já não conseguiam manter sozinhos a hegemonia política. A trama de dominação do feudo erguia-se em um complexo escalonamento de poder até chegar ao rei, substituída por uma outra composição que incluía os burgueses ligados às corporações de ofício e de comércio e os grandes financistas.
O Estado feudal, marcado pela descentralização política, pela qual cada nobre era detentor de parte da soberania e tinha direito ao seu próprio exército, sua justiça, sua moeda e seu sistema tributário, cedia lugar ao Estado moderno, centralizado e unificado. Agora, a idéia de governo absoluto, totalmente estranha aos padrões medievais era a palavra de ordem.
Na Idade Média, o poder era sempre limitado. O poder do rei limitado pelos grandes nobres, os dos nobres pelas imposições do costume, da tradição ou da “vontade de Deus”, que compunham uma “constituição invisível”, o que assegurava garantias contra o arbítrio dos poderosos até ao mais humilde servo de gleba.
Tudo isso se passava sob as bênçãos e a rígida fiscalização da Igreja Católica. No quadro de parcelamento de poder do feudalismo, a Igreja constituía um verdadeiro superestado, territorialmente apoiado nas possessões pontifícias, localizadas no centro da Itália, e também sobre amplos domínios territoriais espalhados por toda a Europa ocidental. O poder da Igreja medieval era reforçado por um vasto arsenal ideológico, um código severo de leis canônicas, além de tribunais eclesiásticos quase sempre dispostos a antecipar para este mundo o julgamento e as penas que as almas deveriam sofrer apenas no além-túmulo.
A reação contra a Idade Média, injustamente chamada pelos humanistas do Renascimento de “Idade das Trevas”, alcança todos os valores e instituições, sobretudo a Igreja. A burguesia invocava novos valores cosmopolitas, ridicularizava a nobreza e seus atributos e transformava a Igreja em alvo das mais severas críticas.
Os conflitos do mundo
Maquiavel foi educado em meio ao ambiente humanista do Renascimento. O teocentrismo medieval era substituído pela idéia de que o homem está em primeiro lugar, constituindo o centro de todas as preocupações. A crítica era um exercício cotidiano que se contrapunha à aceitação passiva de verdades absolutas, patrocinada pela Igreja durante séculos. Os homens cultos voltavam-se para os padrões clássicos, buscando inspiração e modelos na Grécia e Roma antigas.
No tempo de Maquiavel, a Igreja fora alvo da maior bateria de ataques de toda a sua história. A ignorância do clero, a vida dissoluta dos grandes prelados, a comercialização de indulgências e relíquias eram criticadas. Os homens de negócios investiam contra as doutrinas arcaicas do justo preço e da condenação da usura. Pregadores fanáticos pediam a volta do cristianismo à pureza primitiva e a abolição da burocracia eclesiástica, que dificultava o acesso dos homens a Deus.
O espírito crítico do Renascimento atingia, a um só tempo, os valores feudais, a nobreza e seu estilo de vida, a Igreja e sua concepção de mundo e poder. Maquiavel reflete tudo isso. Cada passo de sua obra é balizado pelos padrões do seu tempo. O Estado moderno, centralizado, tendo o governo concentrado nas mãos de um rei com poderes absolutos, constituirá um dos seus fascínios. Desse Estado moderno, Maquiavel será um dos principais ideólogos.
Esse novo Estado em formação se constrói sobre uma base nacional, pois com o apoio dos homens de negócios, o monarca desempenha uma atividade unificadora, como na França, na Espanha, em Portugal, processos que Maquiavel acompanhou de perto.
Entretanto, na Itália a tendência centralizadora esbarra em um obstáculo irremovível: os Estados pontifícios, plantados no centro da península, impedem a unificação. Alguém disse que a Igreja não tinha forças para unificar a Itália sob a sua égide, mas era forte o suficiente para impedir essa unificação. Essa unidade seria o grande sonho da vida de Maquiavel e é com base nesse sentido que ele direciona O Príncipe.
Quando Maquiavel nasceu, e ao longo de sua vida, a península italiana era um verdadeiro quebra-cabeças político, composto por Estados soberanos de dimensões territoriais, regimes políticos e diversos estágios de desenvolvimento. Os principais eram o Reino de Nápoles, controlado pela família Aragão; os Estados pontifícios, que estavam nas mãos da Igreja; o Estado florentino, por muito tempo controlado pela família Medici; o Ducado de Milão e a República de Veneza.
Em torno dessas unidades principais gravitavam outros estados menores que, embora fossem teoricamente independentes e soberanos, na prática eram levados a alinhamentos subservientes com os mais fortes para garantir sua sobrevivência. A ausência de um poder centralizador capaz de representar o interesse nacional, acrescida das rivalidades e dos conflitos internos, faria da Itália uma presa fácil à ambição de outros Estados já constituídos em monarquias e em plena fase de expansão, como foi o caso da Espanha, França e, um pouco mais tarde, do Império Germânico.
Nos últimos anos do século XV, um verdadeiro terremoto político assolou a península, trazendo desordem e instabilidade. Os condottieri, mercenários contratados pelas famílias burguesas para constituir seus “braços armados” nas disputas políticas locais a controlar o poder. As disputas internas nas cidades chegam ao auge do acirramento. As rivalidades entre os principais Estados facilitam a invasão de franceses e espanhóis, que vão deixando suas marcas em todos os lugares. O espanhol Rodrigo Bórgia transformou-se no papa Alexandre VI, que marcou seu pontificado pela corrupção e pela violência. A partir de 1494, sob a liderança de Carlos VIII, os franceses impuseram sua presença de norte a sul. Naquele ano, em Florença, Maquiavel assiste à entrada de Carlos VIII e a conseqüente expulsão de Pedro de Medici da cidade, acusado pela população de ter sido fraco ante o invasor.
Segundo Paul Larivaille, em seu trabalho A Itália no tempo de Maquiavel, a presença dos estrangeiros seria irreversível após 1494. presença constate, crescente e finalmente determinante em praticamente todos os conflitos da península. As repúblicas italianas passam a cumprir o papel de coadjuvantes no jogo político de seu próprio país.
Maquiavel faz política
A Florença de Maquiavel tinha cerca de cinqüenta mil habitantes e ocupava um território aproximado de quinze mil quilômetros quadrados. Sua economia baseava-se no artesanato, especialmente no setor têxtil, no comércio e na atividade bancária, sendo essa última uma garantia para a cidade à posição de um dos mais importantes centros financeiros de toda a Europa. Não é por acaso que os seus banqueiros mais célebres, os Medici, desempenham um papel tão importante na política de seu tempo e na vida de Maquiavel.
O poder dos Medici, príncipes modernos, que fundamentaram sua força não em atividades feudais, mas sim na dinâmica artesanal, mercantil e financeira, era exercido respeitando instituições comunais e republicanas seculares. A concentração de poder da família era – podemos dizer – informal e decorria do papel preponderante que ela exercia nos da administração de Florença.
A deposição dos Medice proporcionou o domínio político de Florença por um pregador fanático, Girolano Savonarola, responsável pela instalação de uma república teocrática onde o poder era atribuído a Cristo. Era, de certo modo, uma antecipação radical da Reforma protestante que Lutero e Calvino conduziriam alguns anos depois. A experiência de Savonarola, o “profeta desarmado”, como Maquiavel o denomina, terminou na fogueira, em 1498.
A queda de Savonarola deixou muitos cargos públicos vagos, e foi neste espaço que Maquiavel iniciou sua carreira de homem público. Depois do expurgo, comandou o cargo de secretário da segunda chancelaria do governo florentino, que já havia reivindicado anteriormente, sem sucesso. Logo em seguida, tornou-se secretário dos “Dez do Poder”, conselho cuja atribuição era administrar as relações de Florença com outros Estados.
A república democrática florentina, liderada por Piero Soderini, atribuiu muitas missões diplomáticas importantes a Maquiavel, cujos objetivos eram aumentar sua vivência política. Em 1500 vai para a França, em missão diplomática. Em 1502 está em Pistóia. No ano seguinte acompanha de perto a trajetória de César Bórgia, o Duca o militares na rota da unificação italiana. César, citado e exaltado por Maquiavel, é um exemplo de político cujas ações desconheciam os limites éticos na busca de um objetivo maior.
A morte do papa, seu pai e patrocinador, apaga a estrela de César Bórgia que, aliás, faleceu pouco depois. Em Roma, Maquiavel acompanha a sucessão papal, e nos anos seguintes limitou-se a desempenhar missões diplomáticas na Itália e no exterior.
Em 1505 recebeu a incumbência de constituir uma milícia para a República. Assim, recrutou, organizou e treinou tropas que, por fim, não alcançaram o objetivo de oferecer garantias às instituições republicanas.
Em 1510, Maquiavel atuou como mediador entre o papa e o rei da França. O agravamento do conflito entre ambos os levou à guerra. Os franceses venceram as tropas pontifícias, e Florença é ameaçada pela Santa Liga, entidade criada pelo papa Júlio II para lutar contra a França. O governo republicano de Soderini caiu em 1512, e os Medici voltaram ao poder. A partis daí, começou o ostracismo de Maquiavel.
Exonerado de suas funções, proibido de ter acesso ao prédios públicos de Florença, o ex-secretário amargaria dias ainda mais difíceis. Em fevereiro de 1513 foi descoberto um complô contra os Médici, e Maquiavel figurava entre os suspeitos. Preso e torturado, foi multado e condenado à prisão.
Enquanto isso, ampliava-se o poder dos Medici. Neste mesmo ano de 1513 o cardeal Giovani de Medici transforma-se no papa Leão X. É o primeiro florentino a alcançar o papado.
Indultado por intervenção direta de Juliano de Medici, com quem mantivera um bom relacionamento na juventude, Maquiavel tenta, sem êxito, retornar à vida pública. Impedido de trabalhar, recolheu-se ao exílio na propriedade da família, de San Andréa in Percussina, perto de San Casciano, a cerca de quarenta quilômetros de Florença.
O Príncipe começava a nascer, embalado pelas agruras do exílio.
Mãos à obra
Quem tentou, até hoje, enquadrar O Príncipe como tratado filosófico ou científico teve, no mínimo, de se exceder em malabarismos teóricos para sustentar suas posições. Muita tinta foi gasta para tentar explicar supostas intenções científicas escondidas nas entrelinhas do livro, muitos raciocínios foram elaborados para captar sentidos imaginários mais profundos escondidos nos desvãos do trabalho.
Como O Príncipe é uma obra muito rica, tem o poder de inspirar interpretações, recriações e ampliações de idéias. Mas, ao acompanharmos o seu nascimento, percebemos que o pragmatismo foi a sua marca registrada, desde os primeiros momentos. A intenção do autor não era outra senão produzir um manual do que hoje denominamos “marketing político”. Um manual que ajudasse na unificação da Itália, fortalecesse o poder absoluto e o auxiliasse na recuperação dos cargos públicos que ocupara durante a fase republicana da política florentina.
Maquiavel, que vivia a angústia e a solidão do exílio, cultivava a vontade decidida de recuperar seu emprego e sua posição. A melhor idéia que temos do seu dia-a-dia foi fornecida por ele mesmo, em uma carta célebre que escreveu ao seu amigo Francesco de Vettori, embaixador em Roma e homem ligado aos Medici:
“Pela manhã, eu acordo com o sol e vou para o bosque fazer lenha; ali permaneço por duas horas verificando o trabalho do dia anterior e ocupo o meu tempo com os lenhadores, que sempre têm desavenças, seja entre si, seja com os vizinhos[...]Deixando o bosque, vou à fonte e de lá para a caça.
Trago um livro comigo, ou Dante, ou Petrarca, ou um destes poetas menores, como Tibulo, Ovídio ou outros: leio suas paixões, seus amores e recordo-me dos meus, delicio-me nesse pensamento.Depois, vou à hospedaria, na estrada, converso com os que passam, indago sobre as notícias de seus países, ouço uma porção de coisa e observo a variedade de gostos e de características humanas. Enquanto isso, aproxima-se a hora do almoço e, com os meus, como aquilo que me permitem meu pobre sítio e meu pequeno patrimônio. Finda a refeição, retorno à hospedaria [...] lá me entretenho jogando cartas ou tric-trac [...]
Assim desafogo a malignidade de meu destino [...] Chegando a noite, volto à minha casa e entro no meu gabinete de trabalho. Tiro as minhas roupas cobertas de sujeira e pó, e visto as minhas vestes dignas das cortes reais e pontifícias. Assim, convenientemente trajado, visto as cortes principescas dos gregos e romanos antigos. Sou afetuosamente recebido por eles e me nutro do único alimento a mim apropriado e para o qual nasci. Não me acanho ao falar-lhes e pergunto das razões de suas ações; e eles, com toda a sua humanidade, me respondem. Então, durante quatro horas não sinto sofrimento, esqueço todos os desgostos, não me lembro da pobreza, e nem a morte me atemoriza [...]”
Denominar O Príncipe de obra de marketing político não significa qualquer intenção de releitura da obra ou de reinvenção de Maquiavel. Trata-se apenas de repor o trabalho no seu contexto primitivo, no seu sentido primordial, desde a concepção do roteiro até o resultado final. Maquiavel usou o livro tentando sensibilizar os Medici para a situação. Quando foi escrito, estava destinado a Juliano de Medici. Mas com sua morte, acabou dirigido a Lorenzo de Medici. Outro trecho da mesma carta a Vettori nos mostra bem uma idéia do estado de espírito e da disposição do autor:
“O que me leva a dedicar o meu opúsculoa Juliano é a necessidade que me aflige, porque me consumo e não posso continuar por muito tempo assim sem que a pobreza faça de mim indivíduo desprezível; e depois, eu gostaria que os Medici me dessem um emprego, mesmo que começassem por me mandar empurrar um rochedo;pois, se mais tarde eu não conseguisse ganhar os seus favores, eu só teria de culpar a mim mesmo. Quanto ao meu tratado, se for lido perceber-se-á que os quinze anos que passei aprendendo a arte da política, não os passei nem dormindo nem brincando; e deveria haver grande interesse em se servir de um homem cheio de experiência adquirida à custa de outrem. Não se deveria, além disso, duvidar de minha lealdade, pois, tendo sido sempre fiel aos meus compromissos, não é agora que vou aprender a não cumpri-los; e não é ao fim de quarenta e três anos – esta é a minha idade – de bons e leais serviços que podemos mudar a nossa natureza. Da minha bondade e da minha lealdade, aliás, dá testemunho a minha pobreza atual.”
No oferecimento do livro, Maquiavel roga a Lorenzo que o receba como um testemunho da sua submissão, afirmando que o maior presente que podia oferecer ao governante era a lealdade de, em pouco tempo, com a leitura do pequeno volume, “compreender aquilo que em tantos anos e com tantos incômodos e perigos vim a conhecer”. E concluicom um apelo:
“E se Vossa Magnificência, das culminâncias em que se encontra, alguma vez volver os olhos para baixo, notará quão imerecidamente suporto um grande e contínuo infortúnio”.
Maria Tereza Sadek, no texto Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù assinala que, depois da redação de O Príncipe,a vida do autor é marcada por uma contínua alternância de esperanças e decepções.Maquiavel busca incessantemente, sem sucesso, durante vários anos, retomar suas funções públicas. Lorenzo de Medici, a quem oferece o livro, pelo que se sabe, jamais sequer irá abri-lo. Somente após a morte de Lorenzo, em 1519, Maquiavel volta a ser ouvido pelos governantes de Florença: o cardeal Júlio de Medici pede-lhe sugestões sobre a organização política do Estado. No ano seguinte, a Universidade de Florença encomendou-lhe a história da cidade, nascendo daí as Istorie Fiorentine, obra inacabada e também motivo de sua última frustração política.
Em 1527, os Medici caem mais uma vez. Agora é a Nova República que vê Maquiavel com maus olhos. Para os republicanos, ele simplesmente se transformou em um inimigo. Os esforços para agradar aos Medici e a contratação como historiador oficial foram suficientes para leva-lo de novo ao ostracismo.
Profundamente abatido, Maquiavel adoece e morre em junho de 1527, aos 58 anos.
Destino cumprido
Maquiavel não conseguia viver longe do poder, mas a sua condição social era um obstáculo quase intransponível para uma carreira política mais ambiciosa. Dificilmente conseguiria ser príncipe. Sua trajetória de burocrata foi cumprida, podemos dizer, no limite de suas possibilidades.
Como intelectual do seu tempo, era praticamente impossível que ele conseguisse uma independência pessoal e financeira. Todos os grandes nomes do Renascimento italiano, das letras ou das artes, dependeram dos mecenas, ricos burgueses que financiavam as atividades intelectuais e artísticas como forma de diferenciação dos antigos valores cultivados pela nobreza.
Burocrata, diplomata, pensador, historiador, teatrólogo, Maquiavel é um marco no pensamento universal. Entre as obras que produziu, algumas se destacam de sua época e integram o patrimônio da humanidade.
A Mandrágora, peça de sua autoria, é apontada como a melhor comédia do Renascimento. Histórias Florentinas, livro encomendado pelos Medici, depois de sua reabilitação, é também considerado pelos críticos como o melhor livro sobre a história do Renascimento italiano. Discurso Sobre a Primeira Década de Tito Lívio é retratado como um dos grandes livros de história e doutrina política de todos os tempos.
Homem múltiplo e talentoso, Maquiavel é um dos expoentes de uma época fértil em grandes personagens. No entanto, nada do que produziu se compara a II Príncipe, cujo sucesso não chegou a saborear e que só foi publicado pela primeira vez cinco anos depois de sua morte.
Se foi a reabilitação tão desejada junto aos Medici ou a necessidade de unificação de sua pátria que transformaram um republicano convicto como era Maquiavel em ardente defensor da monarquia absoluta, não podemos avaliar. Aliás, nem interessa saber se a sua conversão foi sincera ou apenas conveniente. Não temos a menor intenção de julgar Maquiavel, nem o homem nem o político. E também não queremos, do mesmo modo, julgar O Príncipe. Pretendemos apenas analisar a obra pelo prisma do marketing político, buscando e apresentando a verdade maquiaveliana nos fatos e nos escritos do autor, não na fantasia.
É a ação dos grandes homens, cujo conhecimento apreendeu “por meio de uma grande experiência das coisas modernas e de uma contínua lição das antigas”, que orienta Maquiavel. E é com o espírito desses grandes homens que ele dialoga imaginariamente em suas solitárias noites de reflexão. Sua visão da História e da política não é dialética, não se baseia na mudança, mas na estabilidade. Ele acredita em valores perenes, da mesma família das idéias estáveis e universalmente válidas do pensamento socrático. Em uma época de mutação, ele busca valores estáveis, a fim de oferecer alicerces a um novo tempo.
Assim, embora leve em consideração as mudanças no cenário político e se preocupe em refletir sobre esse assunto, está em busca dos valores duradouros que orientam a prática política. Temendo ser mal interpretado pelos poderosos em sua ousada pretensão de dizer-lhes o que fazer, Maquiavel adverte, logo no oferecimento do livro, que para conhecer o caráter do povo é preciso ser príncipe e para conhecer o caráter do príncipe é preciso ser povo. Assume, assim, com relação ao poder, a aproximação solidária e o distanciamento profissional que caracterizaram os profissionais do marketing político do século XX.
Em carta datada de 13 de março de 1513, enviada ao mesmo amigo Vettori, Maquiavel parecia antecipar sua trajetória:
“O destino determinou que eu não saiba discutir sobre a seda nem sobre a lã; tampouco sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar sobre o Estado. Será preciso submeter-me à promessa de emudecer, ou terei de falar sobre ele”.
No túmulo de Maquiavel, em Florença – aliás vizinho ao de Michelangelo – há uma lápide com a inscrição latina Tanto nomini nullum por elogium, ou seja, “Tão grande nome nenhum elogio alcança-o”.
*Texto extraído do livro Maquiavel O Poder. Editora Martin Claret. São Paulo. de José Nivaldo Júnior.
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