A defesa do realismo indireto contra a acusação de que apenas ele nos ameaça com o ceticismo deixa em aberto a questão principal que é, lembremos, a de saber se há um modo de responder ao ceticismo e de justificar a crença de que há realmente um mundo físico externo, para além das nossas experiências. Descartes respondeu ao ceticismo apelando à ideia de Deus, uma ideia que podemos encontrar no interior da nossa mente, tenha esta última algum contato com uma realidade física externa ou não. Descartes adotou a perspectiva de que a existência de Deus pode ser provada através dos argumentos teístas tradicionais. Provar que Deus existe é provar que um ser totalmente bom existe e que esse ser, embora possa permitir que cometamos erros de quando em vez (para podermos aprender com eles), não permitiria que vivêssemos em geral enganados, pois isso seria contrário à sua bondade. Daí se segue que Deus não permitiria que estivéssemos sempre a sonhar, a ser enganados por um espírito malévolo ou outra coisa do género. Logo, se os nossos sentidos nos levam a acreditar na realidade de um mundo externo, num mundo físico, esse mundo terá de existir.
(…) é claro que seria mais satisfatório filosoficamente se conseguíssemos responder ao cepticismo sem ter de apelar à existência de Deus, porque isso nos faria evitar pelo menos um assunto que pode ser tão controverso como o cepticismo e o realismo indirecto. Na perspectiva de muitos filósofos, podemos fazê-lo argumentando que a crença comum de que há objectos externos que correspondem às nossas experiências perceptivas é um género de hipótese quase científica que encerra a melhor explicação dessas experiências; uma explanação que é constantemente confirmada por predições com êxito que fazemos nessa base. Como [Michael] Lockwood argumentou, este tipo de defesa imita exactamente a justificação dos cientistas para hipóteses acerca de entidades não observáveis como os electrões. Se a nossa crença na existência dos electrões pode ser racionalmente justificada em virtude dela ser assumida por uma teoria científica bem confirmada, então também a nossa crença em objectos físicos externos pode sê-lo, não obstante estes não serem directamente observáveis.
Um princípio bem conhecido da explicação científica é a Navalha de Ockham, que defende que as hipóteses mais simples e económicas são preferíveis às desnecessariamente mais complexas, porque aquelas levantam menos mistérios subsequentes e, assim, permitem que nos mantenhamos o mais perto possível da evidência de que dispomos. (…) Uma resposta à sugestão de Lockwood é que ela viola a Navalha de Ockham, pois um céptico poderia argumentar que a hipótese do ‘espírito malévolo’ é mais simples e económica do que a perspectiva comum e que é, por isso, preferível. Na verdade, ao contrário da visão comum, que assume um enorme número e variedade de objectos físicos externos governados por leis complicadas, a hipótese do demónio postula a existência de um único objecto, o próprio demónio, operando de acordo com o princípio simples de querer enganar.
No entanto, como argumentou o físico David Deutsch, as hipóteses cépticas, como os cenários do cérebro na cuba e do espírito malévolo, são na verdade mais complicadas do que a crença comum num mundo físico externo, pois são parasitas desta. Para formar a hipótese de um espírito malévolo enganador, temos primeiro de formar a hipótese comum da existência do mundo de objectos físicos externos governados por leis físicas e depois imaginar que o demónio nos faz acreditar que esta hipótese é verdadeira. Isso requer que o demónio seja suficientemente complexo para desempenhar esta tarefa com êxito, o que significa que é suficientemente complexo para interagir connosco, imitando exactamente aquilo que seria um mundo realmente composto por objectos físicos externos. Mas isso significa que o espírito malévolo teria de ser ele próprio pelo menos tão complexo como um mundo de objectos físicos externos; com efeito, significa que esse espírito teria de ser mais complexo, pois teria não apenas de imitar esse género de mundo, como também de se aperceber conscientemente de que estaria a fazer tudo isto (consciência que um mundo de objectos físicos externos não teria). Assim, seria uma coisa pensante, o que levantaria mais questões: acerca dos motivos subjacentes ao que faz, etc.; questões que a perspectiva comum não levantaria. Portanto, afinal de contas, a hipótese do espírito malévolo não é realmente tão simples ou econômica quanto a hipótese do senso comum e a Navalha de Ockham deve levar-nos a rejeitar a primeira em favor da última das hipóteses.
*Edward Feser, Philosophy of mind. A beginner’s guide. (Oxford, 2006). Trad. Carlos Marques.
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