Meus amados estão mortos e o seu desaparecimento mergulhou a minha vida na desgraça.
Meus parentes estão mortos e as suas lágrimas e o seu sangue mancham os prados da minha terra e eu estou aqui, vivendo como vivia quando meus parentes e amados estavam sentados no trono da vida e a minha terra estava iluminada pelo sol.
Meus parentes morreram de fome e quem não morreu de fome, morreu pelo fio da espada e eu, vivo neste país longínquo, no meio de um povo alegre e satisfeito, que tem alimentos fartos e camas macias.
Meus parentes morreram de morte humilhante e eu vivo na paz e na abundância. Eis o drama que se desenrola no palco da minha alma.
Se estivesse esfomeado e perseguido, no meio da minha gente esfomeada e perseguida, os dias seriam menos pesados sobre o meu peito e as noites, menos escuras aos meus olhos, pois quem partilha do flagelo dos seus, sente o consolo que nasce do martírio e se orgulha de morrer inocente, entre os inocentes.
Mas não estou no meio do meu povo esfomeado, oprimido e martirizado. Estou aqui, além dos sete mares, protegido pela segurança, provido de todos os bens. Estou longe da tortura e dos torturadores e de nada posso me glorificar - nem mesmo das minhas lágrimas.
E o que pode o exilado distante fazer por seus parentes flagelados?
Sim, de que servem as elegias e o pranto do poeta?
Se eu fosse uma espiga de trigo no solo da minha pátria, o menino faminto me arrancaria e afastaria a sombra da morte com os meus grãos.
Se eu fosse um fruto maduro no jardim do meu país, a mulher prostrada me apanharia e me comeria para recuperar as suas forças.
Se eu fosse um passarinho, no céu da minha terra, o homem famélico me cacaria e com a minha carne, afastaria a invasão do túmulo em seu corpo.
Mas, ai! Não sou nem uma espiga de trigo, nem um fruto maduro na minha terra. E eis a minha infelicidade. Uma infelicidade muda, que me faz sentir pequeno, diante de mim mesmo e diante das sombras da noite.
Eis o drama doloroso que encadeia a minha língua e as minhas mãos e me deixa extenuado, vazio, sem vontade, sem iniciativa.
Dizem-me: "A desgraça da tua terra nada mais é do que um aspecto da desgraça universal e as lágrimas e o sangue que foram vertidos no teu país são apenas algumas gotas do rio de sangue e lágrimas que corre dia e noite nos vales e planícies da Terra".
Sim, mas a desgraça do meu povo é uma desgraça muda, preparada e executada por serpentes, nas trevas e no sigilo.
Se o meu povo se tivesse revoltado contra governantes tirânicos e tivesse perecido inteiramente na rebelião, diria eu que a morte pela liberdade é mais honrosa do que a vida na submissão. E quem penetra na eternidade de espada na mão, torna-se imortal - como a justiça é imortal.
Se o meu país tivesse tomado parte na luta das nações e perecido no campo de batalha, eu diria que a tempestade arranca na sua passagem os ramos verdes e os ramos secos e, que a morte na tempestade é mais honrosa que a morte na apatia da velhice.
Se um terremoto houvesse assolado a minha pátria e enterrado sob os seus escombros meus parentes e bem amados, eu diria que as leis ocultas obedecem a uma vontade superior 'a vontade humana e não devemos procurar penetrar nos seus mistérios.
Mas meus parentes não morreram numa rebelião, nem no campo de batalha, nem num terremoto.
Meus parentes morreram crucificados.
Morreram nas mãos estendidas para o Oriente, e o Ocidente, de olhos fitos na escuridão do espaço.
MORRERAM NO SILÊNCIO, POIS OS OUVIDOS DA HUMANIDADE SE FECHARAM PARA SEUS APELOS E GRITOS.
Morreram, porque não aceitaram aliar-se aos seus inimigos, como covardes; nem renegar seus amigos, como traidores.
Morreram porque não eram CRIMINOSOS.
Morreram porque eram pacíficos.
Morreram de fome na terra onde jorram o mel e o leite.
Morreram porque os demônios roubaram os produtos de seus campos e os rebanhos, de seus pastos.
Morreram porque as serpentes sopram o seu veneno na atmosfera, que antes era perfumada pelo hálito dos cedros e das rosas e do jasmin.
Meus e vossos parentes morreram, ó meus irmãos e compatriotas! Que podemos fazer por quem não morreu com eles?
Nossos lamentos não satisfarão a sua fome. Nossas lágrimas não aplacarão a sua sede. Deixá-los-emos perecer, sem fazermos uma tentativa para salvá-los?
Permaneceremos hesitantes, duvidosos, preguiçosos, distraídos do seu grande drama, pelas futilidades da vida?
O sentimento que nos leva a dar algo da nossa vida para salvar os que correm o risco de perder toda a sua é o único gesto que nos manterá dignos da luz do dia e da quietude da noite.
E o auxílio que colocamos na mão vazia que se estende para nós é o elo de ouro que ligará o que há de humano em nós, aos valores supra-humanos da vida.
*Khalil Gibran
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