PRECEITOS CENTRAIS DO DARWINISMO TORNARAM-SE O EIXO DE TODA A PESQUISA BIOMÉDICA MODERNA
Diz-se que, ao ouvir sobre a teoria de Darwin, uma senhora da sociedade vitoriana resumiu assim seu desconforto: “Vamos torcer para que o Sr. Darwin esteja errado. Mas, se estiver certo, vamos torcer para que essas idéias não se espalhem muito”.
Darwin, mais do que ninguém, entendia as implicações desalentadoras de sua teoria para a noção de que os humanos ocupam uma posição especial na natureza. “É como confessar um crime” dizia.
Foram necessários 70 anos para provar que Darwin estivera certo desde o início.Vários remendos foram necessários à teoria evolutiva original. O mais importante deles foi o reconhecimento de outras forças evolutivas além da seleção natural. No que é conhecido como “deriva genética”, é amplamente aceito que várias características genéticas podem se disseminar em uma população puramente ao acaso, sem que a seleção natural precise ficar “escrutinando dia e noite cada variação”, como escreveu Darwin na “Origem das Espécies”.
Curiosamente, há um recente clamor, especialmente nas ciências sociais, de que uma mudança radical nas nossas idéias sobre hereditariedade e evolução se faz mister, frente a supostas descobertas bombásticas na biologia molecular que traem os preceitos “genocêntricos” do darwinismo.
Entre estas, a descrição de que certos traços podem ser herdados de uma geração para outra sem correspondente variação no DNA -fenômeno chamado de “epigenética”-, ou que modificações ou surgimento de certos traços às vezes precedem variação genética nessas populações, violando o preceito de que evolução se dá exclusivamente em variações genéticas preexistentes, randômicas. Acredita-se, por exemplo, que variações genéticas que tornaram humanos adultos tolerantes à lactose podem ter aparecido somente depois de estes terem instituído o consumo de leite, há cerca de 10 mil anos.
Se esses são os melhores argumentos justificando tal revolução conceitual, a cruzada é quixotesca, e o exército, maltrapilho. Esses novos mecanismos e conceitos vêm simplesmente agregar-se a um sem número de outras descobertas, que se tornaram possíveis nas últimas quatro décadas com o advento da biologia molecular.
O verdadeiro testemunho da herança de Charles Darwin pode ser aferido ao andar-se pelos corredores de qualquer departamento de biologia moderno.
Rapidamente se verá que o anseio da senhora inglesa de abafar as idéias sobre evolução não se concretizou. Os preceitos centrais de teoria evolutiva tornaram-se o eixo de virtualmente toda a pesquisa biomédica.
Graças às teorias de genética e evolução de populações, uma nova forma de medicina, chamada farmacogenética ou “medicina individualizada”, tem rapidamente se desenvolvido nos últimos anos. Hoje já é possível analisar diferenças genéticas entre pessoas e usar essa informação para escolher que remédios serão mais eficazes e terão menos efeitos colaterais para cada paciente em uma série de doenças.
Evolução e seleção natural são o motivo pelo qual ainda não existe uma cura para a Aids e pelo qual estamos perdendo a guerra contra bactérias resistentes a antibióticos. Mas são também os conceitos que têm nos permitido procurar novas formas de combater essas doenças -por exemplo, tentando entender o que na genética faz com que algumas pessoas que são verdadeiras cartilhas ambulantes de fatores de risco nunca adoecem. Desvendados esses mecanismos, novas estratégias terapêuticas poderão ser desenvolvidas.
A procura das causas genéticas de doenças é hoje pesquisada usando os genomas de múltiplas espécies e procurando trechos de DNA que foram mantidos intactos durante longos períodos evolutivos.
O entendimento de como as proteínas -os produtos dos genes- interagem em redes complexas para desenvolver uma função biológica é também amplamente sustentado pela teoria evolutiva. São novos rearranjos e interações entre proteínas que promovem o aparecimento de “novidades” evolutivas em espécies. Assim, uma esponja-do-mar já tem a maioria dos genes que são responsáveis pela organização do plano corporal humano. Os genes que são usados para formar dentes em peixes foram recrutados para funções diferentes quando nossos ancestrais saíram da água. Esses mesmos genes hoje coordenam a formação de estruturas aparentemente distintas como pele, glândulas mamárias e penas em aves.
Tentar descrever qualquer fenômeno biológico fora da esfera conceitual de evolução de Darwin equivale a conceber personagens sem um enredo que os contextualize e una.
*por MARCELO NÓBREGA, professor-assistente do Departamento de Genética Humana da Universidade de Chicago, EUA
Nenhum comentário:
Postar um comentário