domingo, 23 de maio de 2010

O Dilema da Caridade

Então o dilema é esse, o homem veio até você vestido pelas agruras da mais austera humildade, pediu por piedade auxílio na nutrição de seu filho, repartiu entre palavras e gestos a tragédia cotidiana de uma mulher doente, uma criança “idem” e um desempregado que em acidente de trabalho acabou por perder além do sustento o respeito de chefe de família.

A situação era flagrantemente periclitante. A esse ponto, alguma coisa na sua alma pediu que o ajudasse mas, seus sentidos foram entorpecidos por aquele hálito de tons etílicos que o homem fazia rescender no ar. E seria o hálito deveras etílico? Agora, é tarde demais... A velocidade das circunstâncias não mostram complacência ao que duvida. E o homem partiu com um não a mais pesando por sobre seus ombros. Partiu resignado de que o mundo era mau e as pessoas piores ainda.


Foi-se corporalmente, sem todavia deixar o recinto como idéia. Ele passou a habitar
o imaginário. Tal aninhamento afunilou-se na sua consciência e em seu mergulho invadiu concentração e sono...


....


(no meio da noite)


...


...é lícito a um homem incapacitado entorpecer-se até a morte! Afinal, que mais pode um desgraçado senão beber em honra à sua desgraça? A cachaça custa menos que a rebelião!


Mas você não pôde, não quis entender. O dinheiro em suas mãos irá esvaecer muito facilmente, seduzido pelo prazer vulgar de um chocolate, um bombom ou outro capricho qualquer, enquanto a gordura vai multiplicando os domínios em seu corpo aquela criança continua chorando, sem comida e sem esperança. O pai prostituirá os últimos resquícios da dignidade de um arrimo de família em nome da mendicância pela subsistência dos seus. A mãe já doente se curará, ou adoecerá ainda mais, ou morrerá quem sabe. Não importa, no conforto de sua casa os outros são no máximo aquele pensamento tacanho que ocupa um pouco do ócio. Nada de agenciamentos, seu dia tem outras prioridades.


Por quê se importar? Cada um é dono de sua história, não ha razões de envolvimento. Pessoas nascem, morrem, vivem, sobrevivem. O mundo é indiferente ao pasmo de existir. Só você pode consertar os próprios desvios. Mas algo, ainda assim goteja na alma. Talvez o pensamento vá um pouco turbado pela imagem de um deus mendigo, talvez compartilhar a dor alheia seja o prazer mais sublime; ou não.


Fato é que a caridade, pelo menos essa aos moldes do ocidentalismo clássico é mesmo uma construção social mas, talvez possa representar um algo mais. Não há como não viver certas situações e não se perguntar, por exemplo, se o impulso que leva o homem à compaixão é ou não empresa exclusiva do arcabouço de costumes da comunidade em que se vive? Essa é uma problemática controversa. Há em verdade uma essência de bem, ou só um ajustamento entre homens para pra que a vida seja tolerável? Toda filosofia, toda religião, todo o humanismo se preocuparam com isso ao longo dos séculos e muito embora as conclusões sejam divergentes em essência, isso não te isenta da ação. Ou isenta?


Aquele homem do mercado continua vagando, sua mulher cada vez mais debilitada, seu filho cada vez mais faminto. Disso, dois juízos:


1 - É uma tragédia! Se fartar enquanto outros nada tem. A conexão invisível entre os seres impede a saúde da alma enquanto há irmãos doentes do corpo, o pão não tem sabor enquanto alguns não puderem comê-lo, as roupas não embelezarão enquanto muitos ainda se vestirem de farrapos. Não é possível o bem onde reside a injustiça. A virtude não habita átrios corrompidos, fazer algo é preciso. Irremediavelmente imperioso.


2 – A vida é assim, uns tem de estar por baixo pra outros se apoiarem e ficarem por cima. É uma conseqüência intrínseca à evolução, alguns exemplares desde sempre tem de serem sacrificados em nome da sublimação da espécie. O dinamismo do mundo é esse. Não há que se lamentar por quem não alcançou instâncias mais pacíficas da vida. Chorar por esses é desonrar o que te foi ofertado. Que importa que la estejam os miseráveis, desvalidos e pobres de toda a espécie, o importante é que você esta vencendo, caminhando à margem da desgraça cotidiana.


Agora é decidir, sempre existe mais de uma resposta ao problema. Sempre existe mais de um demônio a te culpar por não ter feito o que deveria ou por fazer exatamente o que era cabido. Quem pode julgar uma ação, eu não sei.

*Leandro M. de Oliveira

Um comentário:

Monica disse...

Agora é decidir, sempre existe mais de uma resposta ao problema. Sempre existe mais de um demônio a te culpar por não ter feito o que deveria ou por fazer exatamente o que era cabido. Quem pode julgar uma ação, eu não sei.

A gente sempre sabe!