4. Unidade relativa da idéia de ser. - A noção de ser, não sendo senão relativamente una, é confusa. Com efeito:
a) A noção de ser, na sua mais alta generalidade, compreende todas as formas, reais ou possíveis, em que o ser pode existir. (Diz-se, em termos técnicos, que a noção de ser conota a existência, quer dizer, que ela não pode ser pensada senão quando se refira à variada multidão de modos de existência.) Deste ponto-de-vista, a noção de ser é essencialmente diversa, porque o ser é essencialmente diverso: como o ser pode ser realizado e de fato é realizado de múltiplas maneiras, a noção de ser deve conter esta diversidade.
b) Mas, de outra parte, ela contém apenas confusamente esta diversidade, neste sentido de que envolve a universalidade dos seres, sem representar a nenhum em particular. Deste ponto-de-vista, a noção de ser tem uma certa unidade, a saber, enquanto que retendo em si, vagamente, a idéia da diversidade dos seres, disto faz, de uma certa maneira, abstração. Esta unidade, como se vê, é imperfeita e informe. E daí advém o sentimento de confusão que esta noção traz e, em geral, a noção analógica.
c
) Esta noção de ser pertence necessariamente a todos os homens, desde que comecem a pensar. Mas tem, para o não-filósofo, um caráter de confusão que não resulta de uma tomada de consciência refletida da complexidade da noção. É, ao contrário, o que chega a adquirir o filósofo refletindo sobre a noção de ser. Ele não suprime a confusão, que lhe é essencial; mas descobre as razões desta confusão; é uma grande clareza saber por que a noção de ser é necessariamente confusa.
ART. III. AS PROPRIEDADES TRANSCENDENTAIS DO SER
§ 1. Noções Gerais
1. As três propriedades transcendentais. – Tudo que existe ou pode existir é uno, verdadeiro e bom. Estas três propriedades acompanham inseparavelmente o ser e são um só com ele. É isto o que exprime o axioma: “o uno, o verdadeiro e o bom são convertíveis com o ser”. Eis porque são chamados transcendentais, enquanto se identificam realmente com o ser, que é transcendente.
2. Relação do ser e de suas propriedades. – Dissemos que os transcendentais coincidem realmente com o ser. Com efeito, como o ser não é um gênero, não é suscetível de receber um atributo que o determine “de fora” (da mesma forma que a diferença específica vem do exterior ao gênero, que não a compreende). Todas as suas determinações lhe vêm então “de dentro”, por via de explicitação. Neste sentido, as propriedades do uno, do verdadeiro, do bom não acrescentam nada de real ao ser, já que por sua vez elas são do ser. O ser necessariamente as contém. Elas não fazem mais do que esclarecer os diferentes aspectos do ser: sob este aspecto, não são, tampouco, simples tautologias.
3. Dedução das propriedades transcendentais. – O ser pode ser considerado quer em si mesmo, quer relativamente:
a) Considerando-o em si, absolutamente, nada se pode dizer dele senão que é o ser.
b) Considerando-o ainda em si mesmo, mas agora negativamente, não se pode senão assinalar que ele é indiviso em si mesmo, quer dizer, uno.
c) Pondo-o em relação com a inteligência, descobre-se que o ser é verdadeiro; - pondo-o em relação com a vontade, o ser aparece como bom. O mal, sendo o contrário do bem, é por isso mesmo o contrário do ser, quer dizer que é não-ser, ou, em outros termos, privação de um bem devido a uma natureza.
§ 2. O UNO
1. A unidade exclui a divisão em ato. – Todo ser é uno por essência. Com efeito, o ser pode ser simples ou composto. Ora, o que é simples só pode ser indiviso, pela própria definição. O que é composto não forma ser (quer dizer, não existe), senão enquanto suas partes estão reunidas e constituem o próprio composto.
2. A noção de unidade é analógica. – O ser não é uno univocamente, mas analògicamente (190). A analogia do uno resulta, com efeito, da analogia do ser, uma vez que o ser e o uno são convertíveis, ou, em outros termos, se todos os seres são unos (ou indivisos), pelo próprio fato de que são seres, cada tipo de ser é uno, de uma unidade que lhe é própria.
É, de resto, o que a experiência mostra claramente, porque vemos que a unidade interna dos seres comporta graus muito diversos, desde o todo essencial (um homem, uma árvore), até o todo acidental (uma casa, uma máquina). Abaixo, ainda, desta unidade acidental, há toda uma gama de unidades de continuidade (o vôo do pássaro, a trajetória do obus), que são obra da inteligência. A unidade está, pois, em toda parte em que existe ser, mas encerra a mesma flexibilidade analógica do ser, do qual esposa a necessária transcendência.
3. Divisão da unidade transcendental. – A unidade transcendental compreende:
a) A unidade de simplicidade. Esta unidade é a do ser que não tem partes. Apenas Deus exclui absolutamente qualquer espécie de composição; quer dizer que o Ser divino é absolutamente simples e perfeitamente uno.
b) A unidade de composição. Esta unidade é a do ser que se compõe de partes.
Devem-se distinguir aqui diversas categorias, a saber:
1) a unidade essencial, ou unidade daquilo que tem apenas uma essência, por exemplo, a unidade de um corpo orgânico, de um carvalho, de um homem, e;
2) a unidade acidental ou unidade daquilo que tem várias essências: esta unidade acidental pode resultar quer de uma união extrínseca, ou por fora, dos elementos componentes: um monte de seixos, uma mesa, um aparelho de T.S.F. – quer de uma união intrínseca, ou por dentro, dos elementos: por exemplo, a união de Pedro com a ciência que adquiriu.
4. A multiplicidade transcendental. – A unidade transcendental, como vimos, é princípio da multiplicidade transcendental, quer dizer, da pluralidade dos seres de que cada um é uno (de uma unidade mais ou menos perfeita). Esta pluralidade não forma um número (um cavalo, um carvalho, um homem, uma estrela não somam quatro). Não se forma um número senão das partes de um todo quantitativo ou dos seres considerados como partes de um todo: é assim que se falará das dez peças de uma casa, ou ainda de dez homens, considerados como dez partes da espécie humana. Poder-se-ia também dizer (mas impropriamente) que um cavalo, um homem, um carvalho, uma estrela formam quatro coisas ou seres, considerando-os, desta vez, como partes do ser.
§ 3. O VERDADEIRO
1. A verdade transcendental. – Já indicamos (30) a distinção a fazer entre verdade transcendental e verdade lógica. Esta, como dizíamos, exprime a conformidade da inteligência com aquilo que é. Ela é, então, uma qualidade ou uma propriedade da inteligência. A verdade transcendental é uma propriedade dos seres, pois é o próprio ser das coisas enquanto inteligíveis, quer dizer, cognoscíveis pela inteligência.
2. A inteligibilidade. – Vê-se daí que a inteligibilidade (ou cognoscibilidade) é uma propriedade transcendental que acompanha o ser inseparavelmente, mas segundo graus diversos, em todas as suas determinações. O ser, colocado em presença de uma inteligência, é inteligível tal qual é. Reciprocamente, a inteligência é, por sua própria natureza, aberta à universalidade do ser, uma vez que, como acabamos de ver, o ser, como tal, é inteligível. Diremos então que a inteligibilidade, indo de par com o ser, as coisas são inteligíveis na proporção do ser que têm.
A inteligência em nós, todavia, está submetida a condições que lhe limitam a extensão e o alcance. Como já notamos mais acima (187), ela está, enquanto inteligência humana, ordenada ao ser da experiência sensível. Daí resulta que tudo o que está acima do sensível, se bem que inteligível em si (já que quanto mais imaterial um ser mais ele é acessível à inteligência), é de fato para nós, menos inteligível. – Da mesma forma, o que está abaixo do ser propriamente dito, quer dizer, o que é potencialidade e virtualidade não nos é senão imperfeitamente inteligível. Nosso conhecimento se desenvolve então entre duas zonas obscuras: uma tem luz demais para a nossa inteligência e nos cega; a outra tem luz de menos para a nossa capacidade intelectual finita.
§ 4. O BEM
1. A relação com a tendência. – A bondade exprime de princípio uma relação com uma tendência: o ser é bom enquanto pode atender a uma necessidade ou aplacar um desejo. A bondade, propriedade transcendental, não faz mais do que exprimir sob forma explícita a relação de conveniência existente entre o ser e a tendência.
2. O bem transcendental. – O bem, sendo o termo da tendência e do desejo, aparece então como sendo, por si, ser e perfeição, pois todos os seres desejam a perfeição do seu ser. Assim, o fim e o bem coincidem: todo fim é um bem e todo bem é ou pode ser um fim.
O fim pode apresentar-se de alguma maneira em graus, como desejado por aqueles que não o atingiram, ou como deleitável e objeto de amor por aqueles que o possuem. Ora, aí estão precisamente os caracteres do ser, que é a um tempo objeto de desejo e fonte de deleite e de alegria. É, então, como tal, um bem, e daí se segue que o bem e o ser são convertíveis: tudo o que é ser é bom enquanto e na medida em que é ser.
3. As três espécies do bem. – Pode-se dividir o bem em bem útil, deleitável e honesto.
a) O útil. O bem útil é o que serve de meio tendo em vista um bem. Todo o seu valor de bem, enquanto útil, consiste então na sua capacidade de procurar um outro bem; em si mesmo, pode não ter nada de atraente (o remédio ou a operação cirúrgica para o doente).
b) O deleitável. O bem deleitável é o que proporciona alegria e satisfação: tais como uma obra de arte, o esporte ou o jogo.
c) O honesto. O bem honesto é o que nos atrai, não pela utilidade ou gozo que proporciona, mas antes de tudo em razão da perfeição que traz.
Vê-se daí que o bem primeiro e propriamente dito é o que responde ao fim essencial do ser (que é o de dar a perfeição): é o bem honesto. – O bem deleitável é verdadeiramente, enquanto mesmo que deleitável, um fim da tendência, mas não seu fim último, porque o gozo não é a totalidade do bem, mas somente um aspecto do fim. – Enfim, o útil está evidentemente no último grau do bem, já que não é fim, mas meio.
4. O mal. – O mal, que é o contrário do bem transcendental, consiste, para um ser, na privação de um bem que lhe toca. É uma falta ou uma deficiência de ser. Estes termos de privação, falta e deficiência, servem para marcar que se trata, não da ausência pura e simples de uma perfeição qualquer, mas da ausência de um bem necessário à integridade de um dado ser. Assim, a cegueira não é um mal senão para o que vê (privação), mas não para a pedra, a que não compete ver (negação).
*Régis Jolivet