quarta-feira, 26 de maio de 2010

Da desobediência Civil

No final das contas, o motivo prático pelo qual se permite o governo da maioria e a sua continuidade - uma vez passado o poder para as mãos do povo - não é a sua maior tendência a emitir bons juízos, nem porque possa parecer o mais justo aos olhos da minoria, mas sim porque ela (a maioria) é fisicamente a mais forte. Mas um governo no qual prevalece o mando da maioria em todas as questões não pode ser baseado na justiça, mesmo nos limites da avaliação dos homens. Não será possível um governo em que a maioria não decida virtualmente o que é certo ou errado? No qual a maioria decida apenas aquelas questões às quais seja aplicável a norma da conveniência? Deve o cidadão desistir da sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então estará cada homem dotado de uma consciência?

Na minha opinião devemos ser em primeiro lugar homens, e só então súditos. Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo. Costuma-se dizer, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com consciência. A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça. Um resultado comum e natural de um respeito indevido pela lei é a visão de uma coluna de soldados - coronel, capitão, cabos, combatentes e outros - marchando para a guerra numa ordem impecável, cruzando morros e vales, contra a sua vontade, e como sempre contra o seu senso comum e a sua consciência; por isso essa marcha é muito pesada e faz o coração bater forte. Eles sabem perfeitamente que estão envolvidos numa iniciativa maldita; eles têm tendências pacíficas. O que são eles, então? Chegarão a ser homens? Ou pequenos fortes e paióis móveis, a serviço de algum inescrupuloso detentor do poder?

As massas são acéfalas, fràgeis em sua vontade e perseverança, dependentes e, frequentemente, mal intencionadas. Não podem prescindir de um governo forte e autoritário, que exerça por direito seu jus imperii, mas tal governo torna-se desnecessário aos homens de consciência. A medida que o povo tomar consciência de sua vontade os governos terão seu freio e seu lugar.
*Henry David Thoreau

Um diálogo

BURQUIO– Portanto, cheguei à conclusão rapidamente.

FRACASTORIO– O que desejo concluir é isto:que a famosa e vulgar ordem dos elementos e corpos do mundo são um sonho e vã fantasia, porque nem na natureza se verifica e nem na razão se prova e demonstra, nem por lógica deve nem por potência pode ser de tal maneira. Resta, pois, compreendida a existência de um infinito campo e espaço nele contido, no qual abarca e penetra o todo. Nele há infinitos corpos semelhantes a este, dos quais um não esta mais no meio do universo que o outro, porque o dito universo é infinito e, portanto, sem centro e sem limite, já que tais coisas ( o centro e o limite) correspondem exatamente a cada um dos mundo que estão no universo, de modo que já foi dito, particularmente quando demontramos que existem certos, demontrados e definidos meios, quais são os sóis, em torno dos quais giram todos os planetas, as terras e águas, assim como vemos girar ao redor do nosso sol estes sete corpos errantes, e quando demonstramos igualmente que cada um desses astros ou mundos, dando voltas ao redor do proprio centro, produz a aparência de um mundo sólido e contínuo que arranta a todos os astros que vemos, existem e giram em torno de si como se fosse o centro do universo. De maneira que não há um só mundo, uma só terra, um só sol, mas sim tantos mundos como quantas estrelas vemos em torno de nós, as quais estão em um unico céu, lugar e ambiente, tanto como este mundo, no qual nós existimos, está em um unico ambiente, lugar e céu. De modo que o céu, o éter infinito e imenso, tambem faz parte do universo infinito, não é, sem duvida, mundo ou uma parte de mundo, mas receptáculo e campo em que eles estão, se movem, vivem, se nutrem e levam a cabo suas transformções, produzem, alimentam, voltam a alimentar e mantêm seus habitantes e animais, e com certas disposições e ordenamentos servem evidências de uma natureza superior, trasmutando a face de um só ser superior em inumeraveis sujeitos. De modo que em cada um desses mundos são um meio em que todas as suas partes concorrem e onde se reúnem todas as coisas semelhantes, assim como as coisas deste mundo se voltam para sí de qualque parte de suas proximidades. Por isso, não havendo nada que saia do planeta que não volte de novo a ele, se não me engano. Mas disto falarei em outra ocasião detalhadamente.

BURQUIO– Assim, pois, os outros mundos estão habitados como este?

FRACASTORIO– SE NÃO ASSIM E DE MELHOR MODO, PELO MENOS IGUALMENTE, PORQUE É IMPOSSIVEL QUE UM ESPÍRITO RACIONAL E UM TANTO DESPERTO POSSA IMAGINAR QUE NÃO SEJA PARECIDOS E MELHORES HABITADOS OS INUMERÁVEIS MUNDOS QUE SE REVELAM TÃO MAGINÍFICOS OU MAIS QUE ESTE, OS QUAIS SÃO SÓIS OU NÃO RECEBEM MENOS QUE NÓS, OS DIVINÍSSIMOS E FECUNDOS RAIOS QUE RECEBEMOS QUE TANTO NOS REVELAM A FELICIDADE DE SEU PROPRIO SUJEITO, E FONTE COMO SÃO, DITOSOS A TODOS OS CIRCUNDANTES QUE PARTICIPAM DE TAL FORÇA EMANADA. SÃO, POIS, INFINITOS OS INUMERÁVEIS E PRINCIPAIS MEMBROS DO UNIVERSO, QUE TÊM IGUAL ASPECTO, ROSTO, PRERROGATIVAS, FORÇAS E EFEITOS.
*Giordano Bruno, 1584

Brecht e a beatificação de Galileu

Galileu Galilei foi sem dúvida um homem de gênio. Bertolt Brecht, que o celebrou no teatro, foi no mínimo um talento extraordinário. Também é fato que ambos foram levados a interrogatório, o primeiro pela Inquisição, o segundo por uma CPI do Congresso americano. Mas sua verdadeira afinidade de personagem e autor não está nisso.

Na época do iluminismo, o físico rebelde da Renascença foi consagrado como mártir da ciência, vítima da tirania obscurantista. Mas não foi nada disso. Galileu não sofreu processo por suas idéias, mas por ter insultado o Papa. O pontífice não podia suportar calado a ofensa nem queria castigar o insolente, que era seu afilhado de batismo. Montou então um arremedo de processo, uma “pizza”: seu protegido se submeteria por uns instantes à humilhação de desdizer-se em público e em seguida seria liberado para continuar lecionando o que bem entendesse, sem voltar a ser perturbado pelos inquisidores.

É muito pouco para fazer um mártir, dirá o leitor. Mas o senso das proporções nunca foi o ponto forte da modernidade. Tanto que ela inaugurou a época dos direitos humanos condenando à morte, no prazo de um ano, dez vezes mais gente do que a Inquisição havia matado em quatro séculos. Lembrar essa diferença substantiva entre as trevas medievais e as luzes modernas é, porém, considerado sintoma de mau gosto e prova de reacionarismo. Também não é coisa de pessoa educada lembrar que o próprio termo “iluminismo” não significa só o esclarecimento das idéias, como o pretendia Kant — inventor da “coisa em si”, a doutrina mais obscura e impenetrável que alguém já concebeu —, mas também o culto do “magnetismo animal”, do hipnotismo, do sonambulismo, das sociedades secretas que proliferavam no subsolo como ratazanas alucinadas, bem como de todas as formas de ocultismo, magia negra e satanismo, sem contar o sucesso livreiro das narrativas do marquês de Sade sobre virgens acorrentadas em porões, surradas, estupradas e obrigadas a beber sangue humano. Iluminismo significa, ademais, o amor à eletricidade, energia recém-descoberta que o poeta-filósofo Percy B. Shelley, iluminista retardatário (além de teórico e praticante do incesto, nas horas vagas), viria a celebrar como uma grande esperança para o controle estatal do comportamento: se, como pretendia o iluminista Helvétius, o homem era apenas uma máquina elétrica, deveria ser possível ajeitar-lhe os fios de modo a eliminar as condutas indesejáveis, como por exemplo o cristianismo. Baseado em Helvétius, Shelley fez mil e uma experiências esquisitas que, cientificamente, não deram em nada, mas literariamente inspiraram à sua esposa Mary Shelley os personagens do dr. Viktor Frankenstein e de seu monstro eletricamente controlado. O iluminismo é a filosofia do dr. Frankenstein. A única diferença é que o desventurado médico — formado pela Universidade de Ingolstadt, a mesma onde lecionara Adam Weishaupt, fundador da sinistríssima irmandade secreta dos “Iluminados” — criou um ser estéril, ao passo que aqueles inventados pelos Helvétius, Weishaupts e Shelleys foram tremendamente férteis, gerando o positivismo, o anarquismo, o fascismo, o comunismo, a “New Age”, o abortismo indiscriminado e o império mundial das drogas. A democracia propriamente dita, que nossos manuais escolares celebram como criatura do iluminismo, só vingou então na Inglaterra, onde os discursos iluministas foram rejeitados com vigor e onde o maior sucesso de livraria, na época, foi a “História do jacobinismo”, do abade Barruel, horripilante relato dos crimes iluministas. Foi lendo Barruel que Mary Shelley percebeu a verdadeira natureza dos experimentos de seu marido.

Assim, pois, não espanta que essa época iluminada às avessas tivesse celebrado um peixinho do Papa como mártir da liberdade, ao mesmo tempo que condenava ao esquecimento, como inimigos dessa mesma liberdade, os milhares de padres e freiras decapitados por recusar-se a jurar fidelidade à nova religião estatal de Robespierre.
Mas ainda há pessoas que acreditam na “época das luzes”, e essas pessoas são as que fazem os programas escolares para as nossas crianças e redigem as notícias para gente grande nos jornais e na TV.

Por isso, quando crianças e adultos assistem à peça de Bertolt Brecht sobre Galileu, acreditam estar conhecendo uma versão aproximadamente exata da verdade histórica. Fugitivo do nazismo e vítima de perseguição macartista nos EUA, Brecht estaria especialmente qualificado para compreender a situação existencial de um mártir da ciência.

Mas Brecht não foi propriamente um fugitivo. Muito menos um perseguido. Ele era membro do mesmo partido que ajudara a destruir a social-democracia para entregar a Alemanha aos nazistas que, segundo Stálin, seriam o “navio quebra-gelo da revolução”, a vanguarda do caos que levaria os comunistas ao poder. Desde 1933, a URSS, fingindo hostilidade ao nazismo, colaborava intensamente com o governo de Hitler mediante o intercâmbio de informações entre seus serviços secretos, para a liquidação violenta de suas respectivas oposições internas, bem como emprestando território soviético para o treinamento militar alemão em troca de ajuda técnica para o Exército Vermelho. Brecht não foi para os EUA como refugiado: foi a serviço de Stálin, que tinha planos especiais para o Partido Comunista Americano. Sendo muito difícil coordenar uma revolução desde o outro lado do oceano, o ditador soviético concluíra que o PCA não devia perder tempo tentando organizar o proletariado. Deveria, isto sim, arrebanhar “companheiros de viagem” entre as celebridades das letras e das artes, para dar respaldo moral “neutro” às iniciativas comunistas, assim como entre os milionários de Nova York e de Hollywood, para subsidiar a revolução em outros países. Dois dos principais agentes da operação foram os irmãos Gerhart e Hans Eisler, este último um compositor, autor da “Marcha do Comintern”. Outro foi Grigory Kheifetz, comprovadamente um espião.

Hoje sabemos que Brecht foi estreito colaborador de Kheifetz e dos Eisler. Mas, quando compareceu ao Comitê de Atividades Anti-Americanas, foi apenas como testemunha, não como suspeito. Deu um show de evasivas, recebeu os agradecimentos dos parlamentares e prosseguiu tranqüilamente suas atividades em prol do Comintern, sempre rodeado das atenções do beautiful people de Hollywood. Mais tarde foi para a Alemanha Oriental, onde se tornou dramaturgo oficial do regime, desfrutou das mais gordas verbas teatrais do governo, assinou com notável cara de pau peças escritas por sua mulher, aplaudiu a matança de seus compatriotas pelas tropas russas que sufocaram a rebelião anti-stalinista de 1953 e levou enfim às últimas conseqüências a lógica de sua própria vida, que pode ser resumida em duas de suas frases imortais: “Para um comunista, a verdade ou a mentira são igualmente boas, quando servem ao comunismo” e “Primeiro, o meu estômago; depois, a vossa moral”.

Em Brecht, Galileu veio a encontrar, pois, um dramaturgo à altura do espírito da modernidade que o beatificou.
*Olavo de Carvalho

domingo, 23 de maio de 2010

O Dilema da Caridade

Então o dilema é esse, o homem veio até você vestido pelas agruras da mais austera humildade, pediu por piedade auxílio na nutrição de seu filho, repartiu entre palavras e gestos a tragédia cotidiana de uma mulher doente, uma criança “idem” e um desempregado que em acidente de trabalho acabou por perder além do sustento o respeito de chefe de família.

A situação era flagrantemente periclitante. A esse ponto, alguma coisa na sua alma pediu que o ajudasse mas, seus sentidos foram entorpecidos por aquele hálito de tons etílicos que o homem fazia rescender no ar. E seria o hálito deveras etílico? Agora, é tarde demais... A velocidade das circunstâncias não mostram complacência ao que duvida. E o homem partiu com um não a mais pesando por sobre seus ombros. Partiu resignado de que o mundo era mau e as pessoas piores ainda.


Foi-se corporalmente, sem todavia deixar o recinto como idéia. Ele passou a habitar
o imaginário. Tal aninhamento afunilou-se na sua consciência e em seu mergulho invadiu concentração e sono...


....


(no meio da noite)


...


...é lícito a um homem incapacitado entorpecer-se até a morte! Afinal, que mais pode um desgraçado senão beber em honra à sua desgraça? A cachaça custa menos que a rebelião!


Mas você não pôde, não quis entender. O dinheiro em suas mãos irá esvaecer muito facilmente, seduzido pelo prazer vulgar de um chocolate, um bombom ou outro capricho qualquer, enquanto a gordura vai multiplicando os domínios em seu corpo aquela criança continua chorando, sem comida e sem esperança. O pai prostituirá os últimos resquícios da dignidade de um arrimo de família em nome da mendicância pela subsistência dos seus. A mãe já doente se curará, ou adoecerá ainda mais, ou morrerá quem sabe. Não importa, no conforto de sua casa os outros são no máximo aquele pensamento tacanho que ocupa um pouco do ócio. Nada de agenciamentos, seu dia tem outras prioridades.


Por quê se importar? Cada um é dono de sua história, não ha razões de envolvimento. Pessoas nascem, morrem, vivem, sobrevivem. O mundo é indiferente ao pasmo de existir. Só você pode consertar os próprios desvios. Mas algo, ainda assim goteja na alma. Talvez o pensamento vá um pouco turbado pela imagem de um deus mendigo, talvez compartilhar a dor alheia seja o prazer mais sublime; ou não.


Fato é que a caridade, pelo menos essa aos moldes do ocidentalismo clássico é mesmo uma construção social mas, talvez possa representar um algo mais. Não há como não viver certas situações e não se perguntar, por exemplo, se o impulso que leva o homem à compaixão é ou não empresa exclusiva do arcabouço de costumes da comunidade em que se vive? Essa é uma problemática controversa. Há em verdade uma essência de bem, ou só um ajustamento entre homens para pra que a vida seja tolerável? Toda filosofia, toda religião, todo o humanismo se preocuparam com isso ao longo dos séculos e muito embora as conclusões sejam divergentes em essência, isso não te isenta da ação. Ou isenta?


Aquele homem do mercado continua vagando, sua mulher cada vez mais debilitada, seu filho cada vez mais faminto. Disso, dois juízos:


1 - É uma tragédia! Se fartar enquanto outros nada tem. A conexão invisível entre os seres impede a saúde da alma enquanto há irmãos doentes do corpo, o pão não tem sabor enquanto alguns não puderem comê-lo, as roupas não embelezarão enquanto muitos ainda se vestirem de farrapos. Não é possível o bem onde reside a injustiça. A virtude não habita átrios corrompidos, fazer algo é preciso. Irremediavelmente imperioso.


2 – A vida é assim, uns tem de estar por baixo pra outros se apoiarem e ficarem por cima. É uma conseqüência intrínseca à evolução, alguns exemplares desde sempre tem de serem sacrificados em nome da sublimação da espécie. O dinamismo do mundo é esse. Não há que se lamentar por quem não alcançou instâncias mais pacíficas da vida. Chorar por esses é desonrar o que te foi ofertado. Que importa que la estejam os miseráveis, desvalidos e pobres de toda a espécie, o importante é que você esta vencendo, caminhando à margem da desgraça cotidiana.


Agora é decidir, sempre existe mais de uma resposta ao problema. Sempre existe mais de um demônio a te culpar por não ter feito o que deveria ou por fazer exatamente o que era cabido. Quem pode julgar uma ação, eu não sei.

*Leandro M. de Oliveira

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Das impossibilidades do desejo

Voltando à temática do desejo e do ímpeto “amoroso”, façamos uma pequena reflexão acerca das impossibilidades de um projeto de amor que se coloque inalterado através do tempo. O que se conclui é mesmo que não existe em verdade um estado paralítico de desejo (impulso amoroso) constante, o que se sofre são flashes, mais ou menos duradouros de acordo com circunstâncias, pessoas envolvidas e o que elas carregam de repressão e fetiche por exemplo. Essa virulência da paixão, o querer em estado bruto, não diz respeito exatamente ao outro mas, a si mesmo. O que se deseja não é a companhia, antes estar desejando. O ser humano é rebelde em essência, objetiva sempre o que não está ao alcance imediato. Não consegue se aprazer na imanência de sua vida, precisa transcender a todo instante, encontrar fora a justificativa para o que existe dentro. Essa necessidade para o além há de explicar em boa parte os que traem mesmo “amando”, ou melhor, os que buscam uma jornada conjunta por serem conscientes de que determinada relação é positiva para um determinado projeto de vida.

Fato é que a melancolia é uma constante dos que “amam” sem medidas. Faz-se ao mesmo tempo negação em face à instantaneidade do amor e sentimento de derrota ou impotência diante dessa natureza efêmera. O ser amada sempre nos escapa, como nós mesmos dela escapamos do seu domínio, já que é um fardo ser objeto exclusivo do amor de uma pessoa, sufoca e oprime.O amor erotizado sobre todos os outros é deveras um lampejo fugidio não sendo isso exatamente algo triste ou ruim, tem haver apenas com a desse momento natureza.

É preciso ter cuidado com o que se deseja, o fardo do vencedor não é leve. Uma vez tendo conseguido tudo o que se quis já não existe mais um álibi, já não é mais possível se queixar: “a vida me traiu”, “por que não eu?”... E o homem que nada sabe de gerir o próprio triunfo se torna tirano, e passa a outro objeto de desejo fazendo perecer o anterior e se puder a esse também na busca de novas empresas. E tempos mais tarde fatalmente é atacado de saudosismo idealizando que aquilo que ficou pra trás era o melhor que havia, ora, se assim o fosse, as coisas teriam se processado de outra maneira. Mas esse estado de melancolia constante é de extrema importância, principalmente numa sociedade como a ocidental-cristã onde se aprende que o martírio é o passaporte da sublimação, da imortalidade. Do homem é exigido o coração de uma galinha mesmo tendo nascido com os olhos de uma águia. Todavia, como já dito, a melancolia tem uma fase positiva, Jacques Lacan o grande reformador da obra freudiana considerava a angústia, geralmente uma filha do melancolismo como a única fonte da criação.

Muitos acreditam que o motivo das mulheres chorarem quando têm um orgasmo com o objeto amoroso, é que nesse esse exato momento ocorre uma condensação física e psicológica de toda busca amorosa. Assim é ao mesmo tempo a sensação de vitória e derrota, como se a busca não apresentasse mais surpresas, como se tudo já tivesse sido revelado... Então, depois daquele momento silencioso e iluminado, as pessoas voltam às próprias sombras, desestruturadas e despedaçadas à espreita de um novo lampejo do que pode ser a relação amorosa, é preciso novamente buscar o além. Falta a percepção capital de que na verdade todo o desejo é um fim em si mesmo, o vazio tende a nos deixar mais alertas.

A esse pensamento, some-se o da necessidade imanente que se impõe ao homem de transcender e pense o quanto é realmente produtivo. Dante não teria conseguido sem sua Beatrice, e quantos outros pintores, músicos e poetas nunca teriam despertado sem uma madona inatingível. Talvez a beleza seja forjada do sofrimento, talvez seja preciso estar privado de tudo pra saber o quanto vale cada pequena coisa. E quando se conquista já não há mais valor, porque se torna lugar comum, e ca estamos miseráveis e perdidos, bem-aventurados e altaneiros. Mas se essa conexão com o inatingível for cortada, voltaremos à condição ideal do ego animal, iguais, previsíveis e biológicos. O que é por excelência humano em cada homem é a faculdade de ser um mundo em si mesmo.

Voltando à questão mais importante, do desejo enquanto projeção. Deixamos por fim um pequeno trecho de Lacan, onde o autor comenta essa relação de eterna fome e eterno recomeço que existe em nós. Talvez a história do homem seja a história de seus desencontros com o que realmente lhe é caro.

“O que foi que tentei fazer entender com o estádio do espelho? Que aquilo que existe no homem de desvinculado, de despedaçado, de anárquico, estabelece sua relação com suas percepções no plano de uma tensão totalmente original. É a imagem de seu corpo que é o princípio de toda unidade que ele percebe nos objetos. Ora, desta própria imagem ele só percebe a unidade do lado de fora e de maneira antecipada. Devido a esta relação dupla que tem consigo mesmo, é sempre ao redor da sombra errante do seu próprio eu que vão se estruturando todos os objetos do seu mundo. Terão todos um caráter antropomórfico, podemos até dizer egomórfico.

É nesta percepção que é evocada para o homem, a todo instante, sua unidade ideal, que como tal nunca é atingida e que a todo instante lhe escapa. O objeto, para ele, nunca é definitivamente o derradeiro objeto, a não ser em certas experiências excepcionais. Mas este se apresenta, então como um objeto do qual o homem está irremediavelmente separado, e que lhe mostra a figura mesma de sua deiscência dentro do mundo – objeto que por essência o destrói, o angustia, que não pode alcançar, no qual não pode verdadeiramente encontrar sua reconciliação, sua aderência no mundo, sua complementaridade perfeita no plano do desejo.

O desejo tem um caráter radicalmente rasgado. A própria imagem do homem fornece uma mediação, sempre imaginária, sempre problemática que não se acha, pois nunca é completamente efetivada. Ela se mantém através de uma sucessão de experiência instantâneas, e esta experiência ou bem aliena o homem de si próprio ou bem vai dar numa destruição numa negação do objeto (…)”
*Leandro M. de Oliveira
**Jacques Lacan

Giordano Bruno

"O Cosmo... é eterno, infinito. A Terra é um dos mundos, e nós, que estamos sobre ele, giramos ao redor do Sol sem perceber. Os astros estão ligados às pequenas coisas da Terra. A Lua às marés, à menstruação das mulheres, o sol dá vida às plantas, a nós seres humanos... Se isto é verdade, e é verdade, Deus não está no alto, fora do mundo, mas em cada partícula de matéria, inerte ou viva. Deus é a própria matéria."


"Uma nova concepção do Universo deve corresponder a uma nova concepção do Homem."


''Que ingenuidade, pedir aos que têm poder para que mudem o poder.''


"Se eu, ilustríssimo Cavaleiro, manejasse o arado, apascentasse um rebanho, cultivasse uma horta, remendasse um fato, ninguém faria caso de mim, raros me observariam, poucos me censurariam, e facilmente poderia agradar a todos. Mas, por eu ser delineador do campo da natureza, atento ao alimento da alma, ansioso da cultura do espírito e estudioso da actividade do intelecto, eis que me ameaça quem se sente visado, me assalta quem se vê observado, me morde quem é atingido, me devora quem se sente descoberto.

E não é só um, não são poucos, são muitos, são quase todos. Se quiserdes saber porque isto acontece, digo-vos que a razão é que tudo me desagrada, que detesto o vulgo, a multidão não me contenta, e só uma coisa me fascina: aquela, em virtude da qual me sinto livre em sujeição, contente em pena, rico na indigência e vivo na morte; em virtude da qual não invejo aqueles que são servos na liberdade, que sentem pena no prazer, são pobres na riqueza e mortos em vida, pois que têm no próprio corpo a cadeia que os acorrenta, no espírito o inferno que os oprime, na alma o error que os adoenta, na mente o letargo que os mata, não havendo magnanimidade que os redima, nem longanimidade que os eleve, nem esplendor que os abrilhante, nem ciência que os avive.

Daí, sucede que não arredo o pé do árduo caminho, por cansado; nem retiro as mãos da obra que se me apresenta, por indolente; nem qual desesperado, viro as costas ao inimigo que se me opõe, nem como deslumbrado, desvio os olhos do divino objeto: no entanto, sinto-me geralmente reputado a um sofista, que mais procura parecer subtil do que ser verídico; um ambicioso, que mais se esforça por suscitar nova e falsa seita do que por consolidar a antiga e verdadeira; um trapaceiro que procura o resplendor da glória impingindo as trevas dos erros; um espírito inquieto que subverte os edifícios da boa disciplina.

Oxalá, Senhor, que os santos numes afastem de mim todos aqueles que injustamente me odeiam; oxalá que me seja sempre propício o meu Deus; oxalá que me sejam favoráveis todos os governantes do nosso mundo; oxalá que os astros me tratem tal como à semente, de maneira que apareça no mundo algum fruto útil e glorioso do meu labor, acordando o espírito e abrindo o sentimento àqueles que não têm luz e intelecto; pois, em verdade, eu não me entrego a fantasias, e se erro, julgo não errar intencionalmente; falando e escrevendo, não disputo por amor da vitória em si mesma (pois que todas as reputações e vitórias considero inimigas de Deus, abjectas e sem sombra de honra, se não assentarem na verdade), mas por amor da verdadeira sapiência e fervor da verdadeira especulação me afadigo, me apoquento, me atormento.

É isto que irão comprovar os argumentos de demonstração, baseados em raciocínios válidos que procedem de um juízo recto, informado por imagens não falsas, que, como verdadeiras embaixadoras, àqueles que as procuram, patentes àqueles que as miram, claras para todo aquele que as aprende, certas para todo aquele que as compreende. Apresento-vos agora a minha especulação acerca do infinito, do universo e dos mundos inumeráveis."Ao ouvir sua sentença de morte, Giordano Bruno, aos 17 de fevereiro de 1600, disse aos seus algozes: "Maiori forsan cum timore sententiam in me fertis, quam ego accipiam", ou seja, Talvez sintam maior temor em sacrificar-me, sentenciando-me, do que eu, em aceitar"


*Giordano Bruno

Sábio e cientista; o papel da escola

As diferenças entre um sábio e um cientista? São muitas e não posso dizer todas. Só algumas. O sábio conhece com a boca, o cientista, com a cabeça. Aquilo que o sábio conhece tem sabor, é comida,conhecimento corporal. O corpo gosta. A palavra "sapio", em latim, quer dizer "eu degusto"... O sábio é um cozinheiro que faz pratos saborosos com o que a vida oferece. O saber do sábio dá alegria, razões paraviver. Já o que o cientista oferece não tem gosto, nãomexe com o corpo, não dá razões para viver. O cientista retruca: "Não tem gosto, mas tem poder"... É verdade.

O sábio ensina coisas do amor. O cientista, do poder. Para o cientista, o silêncio é o espaço da ignorância.Nele não mora saber algum; é um vazio que nada diz. Para o sábio o silêncio é o tempo da escuta, quando se ouve uma melodia que faz chorar, como disse Fernando Pessoa num dos seus poemas. Roland Barthes, já velho,confessou que abandonara os saberes faláveis e se dedicava, no seu momento crepuscular, aos sabores inefáveis. Outra diferença é que para ser cientista há de se estudar muito, enquanto para ser sábio não é preciso estudar. Um dos aforismos do Tao-Te-Ching diz o seguinte: "Na busca dos saberes, cada dia alguma coisa é acrescentada. Na busca da sabedoria, cada dia alguma coisa é abandonada".

O cientista soma. O sábio subtrai. Riobaldo, ao que me consta, não tinha diploma. E, não obstante, era sábio. Vejam só o que ele disse: "O senhor mire e veja: o mais importante e bonito do mun­do é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando..." É só por causa dessa sabedoria que há educadores. A educação acontece enquanto as pessoas vão mudando, para que não deixem de mudar. Se as pessoas estivessem prontas não haveria lugar para a educação. O educador ajuda os outros a irem mudando no tempo. Eu mesmo já mudei nem sei quantas vezes. As pessoas da minha geração são as que viveram mais tempo, não pelo número de anos contados pelos relógios e calendários, mas pela infinidade de mundos por que passamos num tempo tão curto.

Nos meus 74 anos, meu corpo e minha cabeça viajaram do mundo da pedra lascada e da madeira- monjolo, pi­lão, lamparina - até o mundo dos computadores e da internet. Os animais e plantas também mudam, mas tão devagar que não percebemos. Estão prontos. Abelhas, vespas, cobras, formigas, pássaros, aranhas são o que são e fazem o que fazem há milhões de anos. Porque estão prontos, não precisam pensar e não podem ser educados. Sua programação, o tal de DNA, já nasce pronta. Seus corpos já nascem sabendo o que precisam saber paraviver.

Conosco aconteceu diferente. Parece que, ao nos criar,o Criador cometeu um erro (ou nos pregou uma peça!): deu-nos um DNA incompleto. E porque nosso DNA é incompleto somos condenados a pensar. Pensar para quê? Para inventar a vida! É por isso, porque nosso DNA é incompleto, que inventamos poesia, culinária, música, ciência, arquitetura, jardins, religiões, esses mundos a que se dá o nome de cultura. Pra isso existem os educadores: para cumprir o dito do Riobaldo... Uma escola é um caldeirão de bruxas que o educador vai mexendo para "desigualizar" as pessoas e fazer outros mundos nascerem...
*Rubem Alves

A Filosofia

Toda filosofia nasce de um impulso originário – infantil, se quiserem -- de entender a realidade da experiência. Mas, entre esse impulso e a “filosofia” como atividade curricular acadêmica, a distância é às vezes tão grande que ele desaparece por completo.

As desculpas para isso são sempre as mais respeitáveis. Antes de responder às perguntas da infância é preciso adquirir os instrumentos intelectuais do saber adulto, o que inclui o estudo das obras dos filósofos; este estudo supõe o domínio da interpretação de textos; e a interpretação de textos pode ser tão interessante que se torna um pólo de atração independente. Eis-nos então nos píncaros do saber filosófico acadêmico, ao menos no sentido franco-uspiano do termo, e imunizados para sempre às perguntas que nos levaram, pela primeira vez, ao estudo da filosofia.

Na USP dos anos 60, que não parece ter mudado muito desde então, qualquer tentativa de enfrentar essas perguntas em vez de ocupar-se da nobre tarefa da análise de textos era desprezada como amadorismo, beletrismo, ensaísmo. Quando o prof. José Arthur Gianotti, no auge da sua maturidade intelectual, define a filosofia como uma ocupação com textos, ele não faz senão expressar sua experiência de algo que, no ambiente da sua formação, recebia o nome de “filosofia”, mas que jamais seria reconhecido como tal por Sócrates e Platão.

Platão - ou Sócrates - mostrava um caminho para a filosofia que jamais poderia ser encontrado num texto. Ele falava de uma anamnesis, de um mergulho na memória pessoal em busca do instante do nascimento da consciência filosófica. A consciência filosófica era a antevisão das formas universais eternas. Essas formas transcendiam infinitamente a esfera da experiência corporal, portanto também da memória sensível, mas, em algum momento esquecido do tempo, haviam se entremostrado nela e despertado, na alma do indivíduo carnal, a aspiração do Bem supremo. No curso posterior da vida, a maioria dos homens se esquecia desse momento para sempre. Em outros, a ocultação era parcial. Se o objeto experienciado desaparecia da consciência, a aspiração a que ele dera nascimento permanecia viva. Viva, mas buscando satisfação a esmo em objetos impróprios, errando entre símbolos e simulacros até atinar - ou não - com o caminho de volta.

O encontro do aprendiz com o filósofo maduro era um momento decisivo dessa busca. O filósofo atraía os discípulos porque algo, nele, evocava o Bem supremo. O filósofo era um símbolo. O discípulo podia agarrar-se a ele como a qualquer outro símbolo, adorando-o ao ponto de desejar possuí-lo carnalmente. É o que Alcebíades, após a noitada do Banquete, confessa a Sócrates. Mas Sócrates lhe explica que ele está buscando na direção errada. O que move a alma do discípulo é o desejo de um bem espiritual esquecido, que a carne de Sócrates não pode satisfazer. O filósofo é um símbolo do Bem e não o próprio Bem. Nesse sentido, ele não é diferente de qualquer outro símbolo. Mas ele não é apenas símbolo. Ele não se limita a representar exteriormente o Bem, como a beleza material o representa sem saber o que faz. Ele é um registro consciente daquele Bem que ele próprio simboliza.

Ele é o homem que realizou a anamnesis e descobriu na própria alma a abertura para o Bem. Por isso ele pode ensinar a Alcebíades o caminho de volta, mostrar que esse caminho não se encontra no corpo de Sócrates, e sim na alma de Alcebíades. Ele convida o discípulo à metanóia, ao giro da direção da atenção desde fora para dentro, desde a atualidade dos sinais sensíveis para a escuridão da memória, em cujo fundo brilha, escondida, a recordação da abertura primordial para a experiência do Bem e das formas eternas.

A análise infindável de textos é uma longa deleitação viciosa no corpo dos símbolos, um derivativo carnal que afasta para sempre da recordação do Bem ao mesmo tempo que crê piamente “fazer filosofia”. Foi isso que ensinaram ao prof. Gianotti com o nome de “filosofia”. Mas não era isso o que Sócrates e Platão ensinavam.
*Olavo de Carvalho

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Visões de Deus (Conjeturas, cismas e delírios em geral)

Em última instância deve-se concluir que Deus tal qual foi historicamente representado é além de um símbolo, fundamentalmente uma idéia. E assim como qualquer idéia produzida num mundo alicerçado em antagonismos, pode apresentar traços positivos ou negativos de acordo com sua utilização.

Por exemplo, o Deus de Israel que deu origem à tradição judaico-cristã do ocidente, conta-se que fez as tribos judias conquistarem muitas batalhas, e com sua fúria dizimou cidades inteiras como Sodoma, tudo em nome da dignidade, glória e exaltação do modo de vida judeu. Para esses, tais intervenções divinas foram um êxtase incomensurável mas, e para o povos conquistados?

O que pode haver de bom ou belo (atributos da divindade) no fato de ser massacrado em todas as formas imagináveis? Poderiam eles, as vítimas, encontrar nisso algo que os apetecesse?
Como sempre, é mister recordar que a história é escrita pelos vencedores, visto isso não pretendo me ater aqui à questão judaica isoladamente, busquemos então enfoques mais genéricos. À questão da divindade enquanto idéia, avancemos ao braço político de Deus, as religiões. Todas acreditam grosso modo num ser supremo, dotado de onipotência, onisciência, misericórdia, etc...

Entretanto a forma com que essa entidade dialoga com os homens varia radicalmente de uma seita (partido) para outra. Nesse sentido, em observância à oscilação conceitual, há que se especular que o fator Deus é antes mais uma projeção de dentro pra fora no homem que um dinamismo inalterado que rege o universo com equidade e temperança e assim nos atinge com seus infinitos raios de sapiência atemporal como tentam nos vender os pastores, padres, médiuns, beatos e quase toda a sorte de homens santos.

Ou a existência é um fenômeno geral ou particular à percepção de cada um, a primeira hipótese é levantada por todos os religiosos, mas no campo do pragmatismo estranhamente destoa de tudo quanto é pregado. Se houvesse uma generalidade palpável (unicidade do divino, coerência de suas ações...) poder-se-ia dizer que há uma força sábia em operação, todavia não há. Cada comunidade recebe a mensagem do divino de maneira diferente, isso gera etnocentrismo, arrogância e muitas vezes cenas da estupidez mais boçal.

Pense no dilema do selvagem que nasceu afastado de tudo, ou do hindu que mora na aldeia mais longínqua do norte da Índia, ambos sequer ouviram falar sobre o nome de Jesus. Segundo a bíblia, o livro que é a base da nossa civilização, só quem morre em cristo será salvo. Então a pergunta: pra que Deus criaria seres pra deixar sua alma entregue à danação desde o início? Não creio que isso seja algo exatamente compatível com a visão do divino, todavia isso é o que mostra um raciocínio frio acerca da questão. Mais tarde, os melhores teóricos e doutores da igreja hipotetizaram largamente no sentido de que a essas pessoas do exemplo acima poderiam contar com a bondade divina que os perdoaria pela ignorância. Meu amigo isso cheira mau.

Ignorância? Que condição eles tiveram de saber? Presos na miséria ou na abundância de suas realidades. Nesse exemplo nota-se além da incoerência do agir divino quando se põe a baila idéias como igualdade ao nascimento que estariam intimamente ligadas à igualdade de condições materiais, a incoerência dos seus intérpretes, esse teólogos que subvertem os códigos de acordo com a conveniência e muitas vezes a boa publicidade da instituição.

Assim o pensamento lógico é que se há um Deus, ele não elegeu ninguém, se o tivesse feito não haveriam tantas visões em conflito, pois, a força desse ser já teria operado mostrando sua vontade imperiosa. Deve-se concluir que, ou Deus brinca fazendo discursos demagógicos todos os quais nele acreditam, ou ele não diz nada e os homens criam as suas próprias visões, ou ele sequer existe. A primeira hipótese que é a do senso comum, às vezes me agride, a segunda e a terceira parecem mais dignas de análise. Contudo, voltando à questão inicial, em tese, o mesmo ser (já que praticamente todas as religiões afirmam a unidade de Deus) que manda um árabe explodir o próprio corpo pra matar americanos inocentes é o que manda americanos fartarem-se do sangue de árabes inocentes, e por aí vai. No fim tudo é política, hipocrisia e ressentimento. E como a genealogia do divino parte da imaginação frente a necessidade das circunstâncias, pode ser que o melhor Deus seja mesmo aquele que é mudo. Se é lícito criar Deuses, acho que é esse o meu modelo ideal.
*Leandro M. de Oliveira

Do egoísmo psicológico

A moralidade requer que sejamos altruístas. Até que ponto devemos ser altruístas? Talvez não tenhamos de ser heróicos, mas espera-se ainda assim, que estejamos atentos às necessidades dos outros pelo menos até certo ponto.

E as pessoas ajudam-se, de fato, entre si, de formas mais ou menos significativas. Fazem favores umas às outras. Constroem abrigos para os deserdados. Fazem voluntariado em hospitais. Doam órgãos e oferecem sangue. Mães sacrificam-se pelos filhos. Bombeiros arriscam a vida para salvar pessoas. Freiras passam a sua vida a trabalhar entre os pobres. A lista poderia continuar sem parar. Muitas pessoas oferecem dinheiro para apoiar causas nobres quando podiam guardá-lo para si. Mas há filósofos que defendem que ninguém é jamais verdadeiramente altruísta.

Para o egoísmo psicológico todas as ações humanas são motivadas pelo egoísmo. Podemos acreditar que somos nobres e abnegados, mas isso é apenas uma ilusão. Na verdade importamo-nos apenas conosco mesmos.

O comportamento “altruísta” está na realidade ligado a coisas como o desejo de ter uma vida mais significativa, o desejo de reconhecimento público, sentimentos de satisfação pessoal e a esperança de uma recompensa divina. Por cada ato de aparente altruísmo podemos encontrar uma maneira de justificá-lo e substituí-lo por uma explicação em termos de motivos mais egocêntricos.

Thomas Hobbes (1588-1679) pensava que o egoísmo psicológico estava provavelmente correto. O se método consistiu em catalogar os tipos gerais de motivos, concentrando-se especialmente nos “altruístas”, e mostrando como todos podiam ser compreendidos em ternos egoístas. Uma vez completado este projeto, teria eliminado sistematicamente o altruísmo do nosso entendimento da natureza humana.

1- Caridade. É definida como amor ao próximo. Mas, se esse amor ao próximo não existe, o comportamento caritativo tem de ser entendido de uma forma radicalmente diferente. A caridade é, assim, o prazer de cada um na demonstração dos seus próprios poderes. Um homem caridoso está a provar a si mesmo, e ao mundo, que possui mais recursos que os outros: não é só capaz de cuidar de si mesmo, tem ainda o suficiente para ajudar quantos não têm a mesma capacidade que ele. Por outras palavras, está apenas a exibir a sua superioridade.
Hobbes sabia, naturalmente, que um homem caridoso pode não pensar estar a fazer isso. Mas nós não somos os melhores juízes das nossas próprias motivações. É perfeitamente natural que interpretemos as nossas ações de um modo lisonjeiro para nós, e é lisonjeiro pensar que somos “altruístas”.

2- Piedade. O que é ter piedade dos outros? Poderíamos pensar que é compadecermo-nos deles, sentirmo-nos infelizes com os seus infortúnios. E, agindo em função deste pesar, poderíamos tentar ajudá-los. Hobbes pensa que tudo isto está muito bem, até onde pode estar, mas não vai suficientemente fundo. A razão pela qual nos sentimos incomodados com os infortúnios dos outros é pensarmos que a mesma coisa nos poderia acontecer a nós. A “piedade”, afirma “consiste em imaginar ou fantasiar as nossas próprias calamidades futuras, partindo da consciência das calamidades de outrem”.

Isto pode explicar, por exemplo, por que sentimos mais piedade quando uma pessoa boa sofre do que quando sofre uma pessoa má. Na descrição de Hobbes, a piedade requer um sentido de identificação com a pessoa que sofre – sinto piedade de alguém quando me imagino no seu lugar. Mas uma vez que cada um de nós pensa ser uma boa pessoa, não nos identificamos com os que pensamos serem maus. Por conseguinte, não nos apiedamos dos malévolos da mesma forma que nos apiedamos dos bons.
*James Rachels

Don Quixote Pas de Deux


Um pouco de Beleza...

A dialética do desígnio divino (parte 1)

As razões para acreditarmos que há um Deus existem desde que existem pessoas que sustentam esta crença; e os filósofos tentaram transformar estas razões em 'argumentos' com uma forma mais rigorosa desde que existem filósofos. O meu ponto de vista é o de que quando estes argumentos são articulados da forma correcta (de uma forma análoga à dos argumentos da ciência ou da história) e tomados em conjunto, constituem um caso poderoso e cumulativo a favor da existência de Deus.

Parece-me que entre os argumentos mais fortes a favor da existência de Deus, estão duas formas do argumento do desígnio ? a que chamarei o argumento da ordem temporal e o argumento da ordem espacial. O argumento da ordem temporal começa por chamar a atenção para o facto de que em todo o tempo e espaço possivelmente infinitos, os objectos materiais comportam-se da forma simples codificada pelas leis científicas.

Podemos ainda não saber o que são exatamente as leis mais fundamentais da natureza ? talvez sejam as equações de campo da Teoria da Relatividade Geral, ou talvez as leis da Teoria da Grande Unificação ou de uma teoria ainda maior a ser formulada. Dizer que essas leis governam a matéria é precisamente dizer que todo o pedaço de matéria, todo o neutrão, protão e electrão em todo o espaço e tempo infinitos comportam-se exactamente da mesma maneira (de acordo com exatamente as mesmas leis fundamentais). Isto é extraordinário!

É claro que isto não poderá ser sempre explicado cientificamente ? porque a explicação científica da operação de uma lei natural consiste em mostrar que é uma consequência de algumas leis ainda mais fundamentais ? explicamos a operação das leis da queda de Galileu mostrando que são uma consequência, para as circunstâncias particulares da Terra, das leis do movimento de Newton; e poderemos vir a ser capazes de explicar a operação das leis de Einstein pelas da Teoria da Grande Unificação. Mas o meu interesse é pela operação das leis mais fundamentais de todas. Ou a existência de tais leis é um facto bruto e inexplicável, ou tem de ser explicada por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.

A segunda forma de argumento ? o argumento da ordem espacial ? chama a nossa atenção para a complexa construção das plantas, dos animais e dos seres humanos. Eles estão organizados para apanhá-los, a criarem-se e a reproduzirem-se ? eles são como máquinas muito complicadas. Ora, como é óbvio, há uma explicação bem conhecida de tudo isto em termos de evolução por Selecção Natural. Há muito tempo, diz a história, existiram organismos muito simples, e eles tiveram descendentes que diferiram dos progenitores de várias formas (alguns sendo maiores, outros mais pequenos, alguns mais simples e alguns mais complexos do que os seus progenitores).

Os melhor adaptados à sobrevivência (e muitas vezes a complexidade de organização fornece uma vantagem selectiva) fizeram-no e por sua vez produziram descendentes com características que diferem ligeiramente das suas em direcções aleatórias; e foi assim que as plantas, os animais e os seres humanos complexos evoluíram. Esta história é de certeza basicamente correcta. Mas por que é que começaram a existir organismos simples? Presumivelmente porque a matéria-energia na altura do 'Big Bang' quando o Universo (ou de alguma forma o seu estado actual) começou há 15 bilhões de anos tinha precisamente a quantidade, densidade e velocidade inicial para conduzir com o tempo à evolução de organismos. E porque há no Universo leis da evolução? Isto é, leis que provocam a mutação aleatória dos genes dos animais, que levam a que os animais produzam muitos descendentes, etc.? Presumivelmente porque estas leis derivam da leis fundamentais da natureza. Apenas um determinado tipo de disposição crítica da matéria e determinados géneros de leis da natureza darão origem a tais organismos. Recente trabalho científico sobre a 'afinação' do Universo mostrou que a matéria inicial e as leis da natureza tiveram de ter de facto características muito, muito especiais para que os organismos pudessem evoluir.

Por exemplo, o Big Bang teve de ser exatamente do tamanho certo ? se tivesse sido ligeiramente maior, os quanta de energia ter-se-iam afastado uns dos outros demasiado depressa para que a matéria se pudesse condensar nas galáxias, estrelas e planetas e assim permitir que os organismos evoluam. Se o Bang tivesse sido ligeiramente menor, o Universo teria colapsado antes de ser suficientemente frio para que a química dos elementos se formasse e assim permitir que os organismos evoluam. Se as leis da natureza tivessem a forma atual, mas as constantes físicas que entram nelas tivessem valores ligeiramente diferentes dos actuais (ou se elas tivessem tido uma das muitas outras formas diferentes), também não teria havido evolução. É, assim, extraordinário que as condições iniciais e as leis estivessem tão 'afinadas' que permitissem a produção das plantas, dos animais e dos seres humanos! Uma vez mais, isto não só não é, como, devido à própria natureza da ciência, nunca poderá ser explicável cientificamente.

A ciência não poderá explicar por que razão as leis básicas da natureza são como são, nem porque na altura do Big Bang (ou perpetuamente, se não houve começo) tinham as características que tinham. Tudo isto é donde a ciência começa, o que explica outras coisas em termos de. Daí que, uma vez mais, ou estes são fatos brutos e inexplicáveis, ou têm de ser explicados por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.
*Richard Swinburne

Sobre o sentido da vida (proposições)

O sentido da vida é um tema obscuro, e no entanto central para a filosofia. Frequentemente associada à questão de os seres humanos fazerem parte de um desígnio mais vasto ou divino, a pergunta «qual é o sentido da vida?» parece pedir uma resposta religiosa. No entanto, grande parte das discussões filosóficas questiona a necessidade desta associação. A atenção dedicada à inevitabilidade da morte parece muitas vezes tornar a questão do sentido da vida problemática, mas não é óbvio que a imortalidade pudesse fazer a diferença entre o sentido e a sua ausência.

O tema do absurdo é recorrente nas discussões entre quem pensa que o universo é indiferente aos nossos destinos. Embora as nossas vidas não tenham sentido, defendem que devemos viver como se tivessem. Perante este absurdo, alguns propõem o suicídio, outros a rebelião, outros ainda a ironia. Também é possível virar as costas à questão do sentido cósmico e procurar um sentido para a vida noutro lugar.

O que significa "o sentido da vida"?

A pergunta "qual é o sentido da vida?" é provavelmente a que causa ao mesmo tempo mais desprezo e mais respeito pela filosofia. Por um lado é uma pergunta notoriamente vaga e deu azo a muitos disparates pomposos. Por outro, a necessidade de compreender o sentido da nossa existência é profunda e universal, apontando qualidades da mente que são possivelmente centrais para a existência humana.

Uma dificuldade significativa que rodeia este tópico é a falta de clareza do próprio tema, e as comparações que podemos fazer com outros contextos nos quais procuramos encontrar um sentido tendem a aumentar a confusão. Quando procuramos o sentido de palavras ou frases tentamos averiguar a forma como normalmente são usadas para comunicar. Porém, a vida não é um elemento num sistema de comunicação. Nada indica que seja usada ou que sirva para representar alguma coisa para além de si própria. Em certas circunstâncias, também falamos sobre o sentido de elementos não-linguísticos: as pegadas indicam a presença de alguém; as pintas vermelhas na pele de uma criança significam que tem sarampo. No entanto, as analogias com estes usos da palavra «sentido» não nos ajudam a responder à nossa pergunta.

A religião, e particularmente o judeu-cristianismo, proporciona um contexto natural para a questão do sentido da vida. Se acreditarmos que um ser sobrenatural criou o mundo de acordo com um plano grandioso, então a nossa pergunta procura saber qual é a finalidade desse plano ou qual é o lugar que a vida nele ocupa. No entanto, não se pode reduzir o tópico filosófico do sentido da vida — ou, melhor, o conjunto de tópicos inter-relacionados que ao longo do tempo têm vindo a ser associados à nossa pergunta — a questões que só fazem sentido no âmbito da religião.

As preocupações centrais que subjazem a este tópico incluem questões sobre a existência de um objetivo para a vida, sobre o valor da vida e sobre a existência de uma razão para viver, independentemente das circunstâncias e interesses individuais. Qualquer destas questões pode ser aplicada à vida, normalmente à vida humana, mas também às vidas individuais, particularmente às nossas próprias vidas. Podemos procurar motivações, razões e valores aceitáveis a partir de pontos de vista que nos são exteriores, ou podemos restringir a nossa atenção ao campo dos desejos e objetivos das nossas psiques ou das nossas comunidades, indiferentes a possíveis perspectivas que possam existir além da esfera humana. Embora a expressão «o sentido da vida» pareça pressupor apenas um sentido para a vida, podemos ser levados a rejeitar este pressuposto sem ser preciso concluirmos que a vida não tem sentido. Muitas vezes o próprio objeto da pergunta vai-se transformando ao longo do próprio processo de lhe dar uma resposta.

Portanto, indagar sobre o sentido da vida é como envolvermo-nos numa busca em que só estamos certos daquilo que procuramos quando o encontramos. Qualquer tentativa de arranjar uma paráfrase inequívoca para a expressão «o sentido da vida» está sujeita, tal como a própria expressão, a excluir certas opções e suprimir caminhos de questionamento que não deveriam ser abandonados de antemão.
*Susan Wolf

Somos o que decidimos ser

Nenhuma moral geral pode indicar-vos o que há a fazer: não há sinais no mundo. Os católicos responderão: sim, há sinais. Admitamo-lo: sou eu mesmo, em todo o caso, quem escolhe o significado desses sinais. Quando estive preso, conheci um homem assaz notável que era jesuíta. Entrara ele para a Companhia da seguinte maneira: tinha sofrido um certo número de desastres bem dolorosos: em criança, tinha-lhe morrido o pai deixando-o pobre.

Bolseiro de uma instituição religiosa, faziam-lhe sentir aí constantemente que ele fora aceite por caridade; e em consequência disso não teve certas distinções honoríficas que agradam às crianças; depois, pelos dezoito anos, foi mal sucedido numa aventura sentimental; por fim, pelos vinte e dois anos, coisa bastante pueril, mas que foi a gota de água que fez transbordar o vaso, falhou a sua preparação militar.

Este jovem podia pois pensar que tinha falhado em tudo; era um sinal, mas um sinal de quê? Podia refugiar-se na amargura ou no desespero. Mas ele pensou, muito habilmente para si, que era o sinal de que não estava talhado para os triunfos seculares, e que só os triunfos da religião, da santidade, da fé, lhe eram acessíveis. Viu portanto nisso a palavra de Deus, e entrou na Ordem. Quem não vê que a decisão do significado do sinal foi só ele que a tomou?

O desamparo implica sermos nós a escolher o nosso ser. O desamparo é paralelo da angústia. Quanto ao desespero, esta expressão tem um sentido extremamente simples. Quer ela dizer que nós nos limitamos a contar com o que depende da nossa vontade, ou com o conjunto das probabilidades que tornam a nossa ação possível.
*Jean-Paul Sartre

O que vem antes

O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana.

Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz.

Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama a subjetividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem antes de mais nada é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro. O homem é antes de mais nada um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu inteligível, e o homem será antes de mais o que tiver projetado ser.

Porque o que entendemos vulgarmente por querer, é uma decisão consciente, e que, para a maior parte de nós, é posterior àquilo que ele próprio se fez. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isto não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea do que o que se chama vontade. Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é.

Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens.
*Jean-Paul Sartre

sábado, 8 de maio de 2010

O Ser (parte II)

4. Unidade relativa da idéia de ser. - A noção de ser, não sendo senão relativamente una, é confusa. Com efeito:

a) A noção de ser, na sua mais alta generalidade, compreende todas as formas, reais ou possíveis, em que o ser pode existir. (Diz-se, em termos técnicos, que a noção de ser conota a existência, quer dizer, que ela não pode ser pensada senão quando se refira à variada multidão de modos de existência.) Deste ponto-de-vista, a noção de ser é essencialmente diversa, porque o ser é essencialmente diverso: como o ser pode ser realizado e de fato é realizado de múltiplas maneiras, a noção de ser deve conter esta diversidade.

b) Mas, de outra parte, ela contém apenas confusamente esta diversidade, neste sentido de que envolve a universalidade dos seres, sem representar a nenhum em particular. Deste ponto-de-vista, a noção de ser tem uma certa unidade, a saber, enquanto que retendo em si, vagamente, a idéia da diversidade dos seres, disto faz, de uma certa maneira, abstração. Esta unidade, como se vê, é imperfeita e informe. E daí advém o sentimento de confusão que esta noção traz e, em geral, a noção analógica.
c
) Esta noção de ser pertence necessariamente a todos os homens, desde que comecem a pensar. Mas tem, para o não-filósofo, um caráter de confusão que não resulta de uma tomada de consciência refletida da complexidade da noção. É, ao contrário, o que chega a adquirir o filósofo refletindo sobre a noção de ser. Ele não suprime a confusão, que lhe é essencial; mas descobre as razões desta confusão; é uma grande clareza saber por que a noção de ser é necessariamente confusa.

ART. III. AS PROPRIEDADES TRANSCENDENTAIS DO SER

§ 1. Noções Gerais

1. As três propriedades transcendentais. – Tudo que existe ou pode existir é uno, verdadeiro e bom. Estas três propriedades acompanham inseparavelmente o ser e são um só com ele. É isto o que exprime o axioma: “o uno, o verdadeiro e o bom são convertíveis com o ser”. Eis porque são chamados transcendentais, enquanto se identificam realmente com o ser, que é transcendente.

2. Relação do ser e de suas propriedades. – Dissemos que os transcendentais coincidem realmente com o ser. Com efeito, como o ser não é um gênero, não é suscetível de receber um atributo que o determine “de fora” (da mesma forma que a diferença específica vem do exterior ao gênero, que não a compreende). Todas as suas determinações lhe vêm então “de dentro”, por via de explicitação. Neste sentido, as propriedades do uno, do verdadeiro, do bom não acrescentam nada de real ao ser, já que por sua vez elas são do ser. O ser necessariamente as contém. Elas não fazem mais do que esclarecer os diferentes aspectos do ser: sob este aspecto, não são, tampouco, simples tautologias.

3. Dedução das propriedades transcendentais. – O ser pode ser considerado quer em si mesmo, quer relativamente:

a) Considerando-o em si, absolutamente, nada se pode dizer dele senão que é o ser.

b) Considerando-o ainda em si mesmo, mas agora negativamente, não se pode senão assinalar que ele é indiviso em si mesmo, quer dizer, uno.

c) Pondo-o em relação com a inteligência, descobre-se que o ser é verdadeiro; - pondo-o em relação com a vontade, o ser aparece como bom. O mal, sendo o contrário do bem, é por isso mesmo o contrário do ser, quer dizer que é não-ser, ou, em outros termos, privação de um bem devido a uma natureza.

§ 2. O UNO

1. A unidade exclui a divisão em ato. – Todo ser é uno por essência. Com efeito, o ser pode ser simples ou composto. Ora, o que é simples só pode ser indiviso, pela própria definição. O que é composto não forma ser (quer dizer, não existe), senão enquanto suas partes estão reunidas e constituem o próprio composto.

2. A noção de unidade é analógica. – O ser não é uno univocamente, mas analògicamente (190). A analogia do uno resulta, com efeito, da analogia do ser, uma vez que o ser e o uno são convertíveis, ou, em outros termos, se todos os seres são unos (ou indivisos), pelo próprio fato de que são seres, cada tipo de ser é uno, de uma unidade que lhe é própria.
É, de resto, o que a experiência mostra claramente, porque vemos que a unidade interna dos seres comporta graus muito diversos, desde o todo essencial (um homem, uma árvore), até o todo acidental (uma casa, uma máquina). Abaixo, ainda, desta unidade acidental, há toda uma gama de unidades de continuidade (o vôo do pássaro, a trajetória do obus), que são obra da inteligência. A unidade está, pois, em toda parte em que existe ser, mas encerra a mesma flexibilidade analógica do ser, do qual esposa a necessária transcendência.

3. Divisão da unidade transcendental. – A unidade transcendental compreende:

a) A unidade de simplicidade. Esta unidade é a do ser que não tem partes. Apenas Deus exclui absolutamente qualquer espécie de composição; quer dizer que o Ser divino é absolutamente simples e perfeitamente uno.

b) A unidade de composição. Esta unidade é a do ser que se compõe de partes.
Devem-se distinguir aqui diversas categorias, a saber:
1) a unidade essencial, ou unidade daquilo que tem apenas uma essência, por exemplo, a unidade de um corpo orgânico, de um carvalho, de um homem, e;
2) a unidade acidental ou unidade daquilo que tem várias essências: esta unidade acidental pode resultar quer de uma união extrínseca, ou por fora, dos elementos componentes: um monte de seixos, uma mesa, um aparelho de T.S.F. – quer de uma união intrínseca, ou por dentro, dos elementos: por exemplo, a união de Pedro com a ciência que adquiriu.

4. A multiplicidade transcendental. – A unidade transcendental, como vimos, é princípio da multiplicidade transcendental, quer dizer, da pluralidade dos seres de que cada um é uno (de uma unidade mais ou menos perfeita). Esta pluralidade não forma um número (um cavalo, um carvalho, um homem, uma estrela não somam quatro). Não se forma um número senão das partes de um todo quantitativo ou dos seres considerados como partes de um todo: é assim que se falará das dez peças de uma casa, ou ainda de dez homens, considerados como dez partes da espécie humana. Poder-se-ia também dizer (mas impropriamente) que um cavalo, um homem, um carvalho, uma estrela formam quatro coisas ou seres, considerando-os, desta vez, como partes do ser.

§ 3. O VERDADEIRO

1. A verdade transcendental. – Já indicamos (30) a distinção a fazer entre verdade transcendental e verdade lógica. Esta, como dizíamos, exprime a conformidade da inteligência com aquilo que é. Ela é, então, uma qualidade ou uma propriedade da inteligência. A verdade transcendental é uma propriedade dos seres, pois é o próprio ser das coisas enquanto inteligíveis, quer dizer, cognoscíveis pela inteligência.

2. A inteligibilidade. – Vê-se daí que a inteligibilidade (ou cognoscibilidade) é uma propriedade transcendental que acompanha o ser inseparavelmente, mas segundo graus diversos, em todas as suas determinações. O ser, colocado em presença de uma inteligência, é inteligível tal qual é. Reciprocamente, a inteligência é, por sua própria natureza, aberta à universalidade do ser, uma vez que, como acabamos de ver, o ser, como tal, é inteligível. Diremos então que a inteligibilidade, indo de par com o ser, as coisas são inteligíveis na proporção do ser que têm.
A inteligência em nós, todavia, está submetida a condições que lhe limitam a extensão e o alcance. Como já notamos mais acima (187), ela está, enquanto inteligência humana, ordenada ao ser da experiência sensível. Daí resulta que tudo o que está acima do sensível, se bem que inteligível em si (já que quanto mais imaterial um ser mais ele é acessível à inteligência), é de fato para nós, menos inteligível. – Da mesma forma, o que está abaixo do ser propriamente dito, quer dizer, o que é potencialidade e virtualidade não nos é senão imperfeitamente inteligível. Nosso conhecimento se desenvolve então entre duas zonas obscuras: uma tem luz demais para a nossa inteligência e nos cega; a outra tem luz de menos para a nossa capacidade intelectual finita.

§ 4. O BEM

1. A relação com a tendência. – A bondade exprime de princípio uma relação com uma tendência: o ser é bom enquanto pode atender a uma necessidade ou aplacar um desejo. A bondade, propriedade transcendental, não faz mais do que exprimir sob forma explícita a relação de conveniência existente entre o ser e a tendência.

2. O bem transcendental. – O bem, sendo o termo da tendência e do desejo, aparece então como sendo, por si, ser e perfeição, pois todos os seres desejam a perfeição do seu ser. Assim, o fim e o bem coincidem: todo fim é um bem e todo bem é ou pode ser um fim.
O fim pode apresentar-se de alguma maneira em graus, como desejado por aqueles que não o atingiram, ou como deleitável e objeto de amor por aqueles que o possuem. Ora, aí estão precisamente os caracteres do ser, que é a um tempo objeto de desejo e fonte de deleite e de alegria. É, então, como tal, um bem, e daí se segue que o bem e o ser são convertíveis: tudo o que é ser é bom enquanto e na medida em que é ser.

3. As três espécies do bem. – Pode-se dividir o bem em bem útil, deleitável e honesto.

a) O útil. O bem útil é o que serve de meio tendo em vista um bem. Todo o seu valor de bem, enquanto útil, consiste então na sua capacidade de procurar um outro bem; em si mesmo, pode não ter nada de atraente (o remédio ou a operação cirúrgica para o doente).

b) O deleitável. O bem deleitável é o que proporciona alegria e satisfação: tais como uma obra de arte, o esporte ou o jogo.

c) O honesto. O bem honesto é o que nos atrai, não pela utilidade ou gozo que proporciona, mas antes de tudo em razão da perfeição que traz.

Vê-se daí que o bem primeiro e propriamente dito é o que responde ao fim essencial do ser (que é o de dar a perfeição): é o bem honesto. – O bem deleitável é verdadeiramente, enquanto mesmo que deleitável, um fim da tendência, mas não seu fim último, porque o gozo não é a totalidade do bem, mas somente um aspecto do fim. – Enfim, o útil está evidentemente no último grau do bem, já que não é fim, mas meio.

4. O mal. – O mal, que é o contrário do bem transcendental, consiste, para um ser, na privação de um bem que lhe toca. É uma falta ou uma deficiência de ser. Estes termos de privação, falta e deficiência, servem para marcar que se trata, não da ausência pura e simples de uma perfeição qualquer, mas da ausência de um bem necessário à integridade de um dado ser. Assim, a cegueira não é um mal senão para o que vê (privação), mas não para a pedra, a que não compete ver (negação).
*Régis Jolivet