domingo, 10 de outubro de 2010

Breve Ensaio Metafísico (Parte 2) - O Ser em Platão

Com efeito, deve-se reconhecer que Parmênides, justamente pela preocupação de insistir sobre o ser das coisas, deixou sem solução a clarificação da alteridade, isto é, não empreendeu o exame do modo pelo qual o outro é ser sem cessar de ser o outro ou, inversamente, o modo pelo qual o ser é também o outro sem cessar de ser. Foi a especulação platônica que se empenhou nesta clarificação e neste exame.

Platão está substancialmente de acordo com Parmênides: a verdade é manifestação daquilo que verdadeiramente é, e aquilo que verdadeiramente é tem as características da necessidade, da imobilidade e da eternidade. Aquilo que verdadeiramente é constitui o mundo inteligível, o mundo das idéias. Platão chega à afirmação de tal mundo com a segunda navegação, ou seja, com aquele procedimento metodológico – a especulação -, com o qual, depois do percurso através do mundo empírico e fenomênico dos sentidos e das sensações, cujo conteúdo são as coisas que aparecem (os corpos etc.; este percurso constitui a primeira navegação), alcança a esfera do mundo puramente inteligível e metempírico do lógos – raciocínios e postulados -, cujo conteúdo é constituído das coisas que são: as idéias.

Esta passagem do plano físico ao plano metafísico era necessária ao escopo de dar a razão do sensível e de salvá-lo da contradição, pela qual é torturado, toda vez que se o considera por si mesmo (= realidade que jamais verdadeiramente é e que jamais é idêntica a si mesma) (cf. Fédon). Isso mostra que o motivo pelo qual Platão foi induzido ao aprofundamento da alteridade ou da multiplicidade não reside tanto no mundo da experiência sensível, quanto na visão do mundo inteligível: o mundo das idéias, ou seja, no fato de que o mundo das coisas que verdadeiramente são, é mundo da multiplicidade. Convém, pois, examinar como aquilo que verdadeiramente é – no sentido parmenidiano -, é ao mesmo tempo aquilo que multiplamente é. Este exame é exposto essencialmente no Sofista.

A respeito disso convém evidenciar duas observações.

O parricídio é simplesmente uma imagem; o assassínio de Parmênides, o ancião terrível, não significa senão progresso referente à sua posição, mas progresso que progride sobre sua linha.

Para Platão permanece firme que o ser é e é ser, e é o que ele exprime com a fórmula: aquilo que verdadeiramente é ou, mais precisamente, aquilo que entitativamente é; ou ainda com a fórmula: o próprio ser.

Além disso, não se pode aceitar, senão com muita circunspecção e com um redimensionamento radical e crítico, a acusação que Aristóteles dirige a Platão a respeito deste argumento central. A acusação é dupla: Platão pôs o problema “em termos antiquados”, ou seja, em termos parmenidianos; em segundo lugar, Platão para superar o monismo parmenidiano – todas as coisas se reduzem à unidade, isto é, ao ser em si -, deduz que “seria necessário mostrar que o não-ser é”.

A primeira acusação não é exata, porque também Aristóteles enfrentará o mesmo problema a propósito do devir: portanto, o problema parmenidiano não é arcaico, mas atual e imprescindível; não é exata nem mesmo a segunda, melhor, o é ainda menos, porque Platão não deduz necessariamente que o não-ser é; e porque o outro, do qual examina a natureza, não é um misto de ser e de não-ser, entendido quase como dois elementos, dos quais seria composto.

Podemos, agora, expor a solução platônica. O ser, que aparece absolutamente, se contrapõe absolutamente ao não-ser absoluto: sobre a linha deste absoluto entre o ser e o não-ser corre uma relação de oposição contraditória, de absoluta contradição (= enantíon, o contrário). Mas nesta linha absoluta aparece um ser certo e determinado; pelo simples fato de que aparece não pode ser negado; a impossibilidade de negá-lo equivale à necessidade de afirmá-lo: aquele ser certo e determinado é; mas porque aparece como aquele ser certo e determinado, ele aparece também junto e ao lado daquele outro ser certo e determinado; e justamente porque aparece como aquele ser certo e determinado junto e ao lado de outros, no ato em que é necessário pensar que é, é igualmente necessário pensar que não é aquele outro ser certo e determinado: a árvore é, mas não é o animal ou a pedra ou qualquer outro ser; se, então, também este outro ser certo e determinado é necessário pensar que é, será necessário pensar que tanto a árvore quanto
o animal é e que tanto a árvore em relação ao animal quanto o animal em relação à árvore não é.

Mas isto implica que com a mesma necessidade com a qual se afirma que a árvore é e que o animal é, se deve afirmar que a árvore não é e que o animal não é. Disto resulta que tanto o é quanto o não é podem assumir um significado, que se diferencia daquele da oposição de contradição (ou de contrariedade), e que, ao contrário, é aquele da oposição de alteridade ou de diversidade: ser e não-ser como outro ou diverso (= éteron); existe, portanto, uma oposição de contradição e uma oposição de diversidade; a primeira no plano absoluto: absoluto ser e absoluto não-ser; a segunda no plano relativo: ser outro e não ser outro. Este último pano é aquele no qual se põe a multiplicidade: de cada coisa que aparece é necessário pensar que, relativamente ao absoluto não-ser, é, e que, relativamente ao absoluto ser, não é; no primeiro momento, pensando que é, se exclui o absoluto não-ser; no segundo momento, pensando que não é se exclui que seja o absoluto ser; a coincidência deste é e deste não é é a constituição essencial do outro.

Completando o que se disse até aqui, vale a pena anotar que:

a) Trata-se de coincidência; pois não se tem o que fazer com dois elementos – ser e não-ser -, de cuja composição resultaria a constituição do outro;

b) a constituição do outro implica dois tipos de relação: o primeiro com o ser absoluto e com o não-ser absoluto, o segundo com todos os outros entes: como diz respeito ao não-ser absoluto e não ao ser absoluto, assim diz e não diz respeito a todos os outros entes;

c) visto que esta constituição duplamente relativa varia com o variar dos entes múltiplos, podemos concluir com as palavras de Platão: “Conseqüentemente, o ser, por sua vez, por inumeráveis coisas em inumeráveis casos, indiscutivelmente não é, e assim também os outros gêneros, cada um tomado em si e todos juntos, por muitos aspectos são e, ao contrário, por muitos outros não são” (Sofista 259B);

d) tanto o é – obviamente – quanto o não é são internos ao ser; por isso o não é tem sempre um significado positivo, que se pode avistar quando se pensa que a proposição: a árvore não é o animal, se pode sempre traduzir na proposição idêntica: a árvore é diversa do animal, ou então: é outra coisa. O que vem ainda confirmado pelas palavras de Platão: “discordando sempre concorda”.

Mas é necessário também clarear a estrutura da relação que o outro implica com o ser absoluto e o absoluto não-ser. Tal estrutura é vista por Platão – mas depois por toda a tradição clássica sucessiva – na figura metafísica da participação. Tal figura, que constitui um genial e original contributo de Platão – cuja sistematização será aperfeiçoada pelo neoplatonismo e pela metafísica cristã (a criação) -, se configura de vários modos.

- A participação como tal ou a metessi; esta palavra deriva de metéchein = ter parte em; afim é metalambánein = tomar parte em; desse modo se pode dizer que a participação é um ter parte em como resultado do tomar parte no ser (em latim: partem capere: cf. Santo Tomás: participar = partem capere = partialiter recipere = partialiter accipere).

- A imitação ou mimesi (miméishai), da qual resulta a semelhança: porque imita (realiza o ato de imitar), alguma coisa é semelhante (possui a, é constituído pela semelhança).

- A comunhão ou koinonía: entre aquilo que participa e aquilo do qual participa se estabelece a comunhão daquilo que é participado.

- A presença ou parusía (de paréinai): diz respeito sobretudo ao ser e ao ente: pela presença do ser os entes são; os entes são a presença = a presentificação = a apresentação do ser.

O desenvolvimento do conceito de participação constitui o sistema platônico, que se pode chamar sistema da participação ou também sistema henologico (= dominado pelo Uno). Em síntese, os elementos são estes: a) esfera da multiplicidade sensível; b) esfera da multiplicidade inteligível; c) esfera dos princípios supremos; ou seja: a) o mundo físico, b) o mundo dos entes matemáticos e das idéias, c) a idéia do Bem ou do Uno, isto é, a protologia.

As relações que ligam a esfera (a) à esfera (b) e a esfera (b) à esfera (c) são relações de participação, as quais, sendo dominadas pelo Bem-Uno, são relações de participação ao Uno (Hen). Do Uno como princípio supremo põe-se ao lado d Díade Infinita inteligível: na esfera (b), se o Uno é causa da unidade a Díade Infinita inteligível é causa de gradação, de diferença e de multiplicidade. Mas ao pólo oposto ao Uno existe uma Díade Infinita sensível, constituindo uma dimensão independente, alógica, assimétrica, desordenada, informal, anômala (aquela dimensão que Aristóteles chamará a matéria prima universal), a qual é origem do devir, da inconsistência ontológica, da obscuridade e da problematicidade gnosiológica na esfera (a).

Por causa desta independência da Díade Infinita sensível do princípio do Uno, o sistema platônico é um sistema dualístico. Para concluir, reenviamos à leitura da República VI, 507D-509C, onde a relação de participação considerada é aquela entre a esfera (b) e a esfera (c), ou seja entre o Bem/Uno e o mundo inteligível. Precisamos, além disso, que o Bem/Uno significa a plenitude e a compatibilidade do ser em si e por si, enquanto a Díade Infinita inteligível (e, analogicamente, a Díade Infinita sensível) desempenha a função do não-ser como diferenciação, diversificação e multiplicação; que a relação de participação é uma relação de fundação e de hierarquização da realidade.
*Aniceto Molinaro

Um comentário:

Clararipe disse...

Alguém já lhe disse que parece o ator James Franco? Vi o filme "Comer, rezar e amar", muito bom por sinal, e o achei a sua cara!
Bj