sábado, 9 de outubro de 2010

Fragmentos de Uma História do Homem

Na terra iluminada por aquela estrela vizinha, cujo esplendor é a ampla luz do dia, existem muitas coisas muito variadas, imóveis e móveis. Move-se entre elas uma raça que em sua relação com as outras é uma raça de deuses. Essa realidade não é diminuída mas sim realçada pelo fato de essa raça poder comportar-se como uma raça de demônios. A superioridade dela não é uma ilusão individual, como um pássaro que se veste com sua própria plumagem; é algo muito sólido e multifacetado. Isso fica demonstrado nas próprias especulações que levaram à sua negação. Que os homens, os deuses deste mundo inferior, estão ligados a ela de várias maneiras, é verdade; mas esse é outro aspecto da mesma verdade. Que eles crescem como cresce a relva e caminham como caminham os animais, é uma necessidade secundária que acentua a superioridade primária.

É como dizer que um mágico deve no fim das contas ter a aparência de um homem; ou que até mesmo as fadas não poderiam dançar se não tivessem pés. Recentemente tem sido moda focar a inteligência inteiramente nessas semelhanças ligeiras e subordinadas e esquecer completamente o fato principal. Existe o costume de insistir que o homem se parece com as outras criaturas. Certo, e exatamente essa semelhança só ele pode ver. O peixe não descobre o modelo da espinha de peixe nas aves do céu, nem o elefante e o meu comparam esqueletos. Mesmo no sentido de que o homem está em harmonia com o universo, trata-se de uma universalidade absolutamente solitária. O próprio sentido de que está unido a todas as coisas é suficiente para separá-lo de todas.

Olhando a seu redor sob essa luz única, tão solitário como a chama que literalmente só ele acendeu, esse semideus ou demônio do mundo visível torna esse mundo visível. Ele vê ao seu redor um mundo de certo estilo ou tipo, que parece proceder seguindo certas normas ou pelo menos repetições. Ele observa a arquitetura verde que se constrói a si mesma sem mãos visíveis, mas se ergue formando um plano ou padrão muito exato, semelhante a um desenho já traçado no ar por um dedo invisível. Não se trata, como agora vagamente se sugere, de alguma coisa vaga. Não é um crescer ou um tatear de vida às cegas. Cada coisa procura um fim, um fim glorioso e radiante, até mesmo no caso de cada margarida ou dente-de-leão que vemos observando a superfície de um campo qualquer.

Na própria forma das coisas existe algo mais que um crescimento verde: existe a finalidade da flor. É um mundo de corolas. Essa impressão, ilusória ou não, tem influenciado tão profundamente a raça de pensadores e mestres do mundo material que sua vasta maioria foi levada a assumir certa visão desse mundo. Eles concluíram, errando ou acertando, que o mundo tinha um plano, assim como a árvore parecia ter um plano; e tinha um fim e uma coroa como flor. Mas, enquanto a raça de pensadores teve a capacidade de pensar, pareceu óbvio que a admissão dessa idéia de plano trazia consigo outro pensamento mais emocionante e até mais terrível.

Havia mais alguém, algum ser estranho e nunca visto, que havia desenhado essas coisas, se é que de fato elas haviam sido desenhadas. Havia uma pessoa de fora que também era um amigo: um misterioso benfeitor que existira antes e construíra os bosques e as colinas para a chegada deles, e acendera o sol nascente para o surgimento deles como um servo acende o fogo da cozinha. Ora, essa idéia de uma mente que dá sentido ao universo recebeu confirmações cada vez maiores das mentes humanas, por meio de meditações e experiências muito mais sutis e investigadoras que qualquer argumento sobre o plano externo do mundo.

Mas o que aqui me interessa é manter a história nos seus termos mais simples e até mais concretos: basta dizer aqui que a maioria dos homens, inclusive os mais sábios, chegou à conclusão de que o mundo tem esse propósito final e, portanto, essa causa primeira. Mas a maioria dos homens nalgum sentido se separou dos homens mais sábios quando se passou ao tratamento dessa idéia. Passaram a existir duas maneiras de tratar delas, que entre si constituíram a maior parte da história do mundo.

A maioria, assim como a minoria, tinha essa forte sensação da presença de um segundo significado nas coisas, de um perito estranho que conhecia o segredo do mundo. Mas a maioria, a multidão ou massa humana, tendia naturalmente a tratar disso num espírito um pouco fofoqueiro. Como toda fofoca, essas fofocas continham boa parte de verdade e de falsidade. O mundo começou a contar para si mesmo fábulas sobre o ser desconhecido ou sobre seus filhos, ou servos, ou mensageiros. Algumas das fábulas podem verdadeiramente ser chamadas de histórias de comadres, no sentido de que professam ser apenas histórias remotas do começo do mundo: mitos sobre o bebê lua ou as montanhas semi-assadas. Algumas delas poderiam ser chamadas, mais de acordo com a verdade, de contos de viajantes; eram contos curiosos mas contemporâneos trazidos de certas fronteiras da experiência como curas milagrosas ou sussurros do que havia acontecido com os mortos.

Muitas delas eram provavelmente contos verdadeiros, verdadeiros o suficiente para manter numa pessoa mais ou menos de bom senso a consciência de que realmente existe alguma coisa maravilhosa por trás da cortina cósmica. Mas em certo sentido isso se norteia pelas aparências, mesmo quando as aparências são chamadas de aparições. É uma questão de aparecimentos – e desaparecimentos. No máximo esses deuses são fantasmas; isto é, são vislumbres. Para a maioria de nós eles são fofocas sobre vislumbres. E para o resto, o mundo inteiro está repleto de boatos, e a maioria deles são quase confessadamente histórias de aventuras. A grande maioria dos contos sobre deuses e fantasmas e o rei invisível é contada, se não pelo amor do conto, pelo amor do tópico. São prova do eterno interesse do tema; não são prova de mais nada nem pretendem ser. São a mitologia ou a poesia que não está encadernada em livros – ou amarrada de nenhuma outra forma.

Entrementes a maioria, os sábios e pensadores, se afastara e assumira uma atividade igualmente agradável. Estavam traçando os planos do mundo: daquele mundo que todos acreditavam ter um plano. Estavam tentando estabelecer o plano com seriedade e dentro de uma escala. Fixavam-se de forma direta na mente que havia criado o misterioso mundo, considerando que tipo de mente poderia ser e qual poderia ser seu último objetivo. Alguns deles a tornaram muito mais impessoal que geralmente aparece aos olhos da humanidade; alguns a simplificaram e quase a reduziram a um vazio; poucos, muito poucos, duvidaram dela completamente. Um ou dois dos mais mórbidos imaginaram que ela pudesse ser o mal ou um inimigo; apenas um ou dois dos mais degradados da outra classe adoraram demônios em vez de deuses. Mas na maioria esses teóricos eram teístas: e eles não só viram um plano moral na natureza, mas em geral também estabeleceram um plano moral para a humanidade. Eram na maioria homens bons que realizaram um bom trabalho, e foram lembrados e reverenciados de várias maneiras. Eram escribas: e suas escrituras se tornaram mais ou menos escrituras sagradas. Eram legisladores: e sua tradição se tornou não apenas legal mas também cerimonial. Podemos dizer que receberam honras divinas no sentido de que reis e grandes capitães de certos países muitas vezes recebem honras divinas.

Numa palavra, sempre que o outro espírito, o espírito da lenda e da fofoca, pôde entrar no jogo, eles foram envolvidos na atmosfera mística própria dos mitos. A poesia popular transformou sábios em santos. Mas foi só isso que ela fez. Os sábios continuaram sendo sábios, e os homens nunca de fato esqueceram que eles eram homens que só foram transformados em deuses no sentido de heróis. Divino Platão ou Divus Caesar – eram títulos e não dogmas. Na Ásia, onde a atmosfera era mais mitológica, o homem acabou sendo transformado e parecendo-se mais com um mito, porém permaneceu homem. Continuou sendo um homem de certa classe social ou de certa escola de homens, recebendo e merecendo grandes honras da humanidade. É a ordem ou a escola dos filósofos: homens que se dedicaram seriamente a descobrir a ordem através do caos aparente da visão da vida. Em vez de viverem de rumores da imaginação ou de remotas tradições e de excepcionais experiências sobre a mente e o significado da vida por trás do mundo, eles tentaram em certo sentido projetar o objetivo primário daquela mente a priori. Tentaram colocar no papel um possível plano do mundo, quase como se o mundo ainda não houvesse sido criado.
*G. K. Chesterton

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