quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Descartes o homem que duvidava

Descartes assegura-nos que a seqüência das Meditações que o leva do questionamento do mundo exterior à descoberta do cogito não é apenas um modelo lógico, uma articulação hipotética de pensamentos pensáveis, mas uma experiência vivida, uma narrativa de pensamentos pensados. Mas terá sido boa a sua auto-observação? Podemos dar por suposta a fidedignidade do seu relato? Mais ainda, podemos dar por suposta a universalidade paradigmática dessa seqüência de pensamentos, admitindo que se dará de modo igual ou semelhante, com semelhantes ou iguais resultados, em todo homem que se disponha a reexaminar desde os fundamentos o edifício de suas crenças? Será possível a um homem realizar experiência similar, ou, ao contrário, foi Descartes quem experimentou de fato coisa totalmente outra, deixando-se enganar e tomando por descrição o que é pura invenção?

Que é possível duvidar das nossas sensações, das nossas imaginações e dos nossos pensamentos, é coisa que qualquer um de nós pode testemunhar. Que é possível, a rigor, colocar todo o orbe das nossas representações entre parênteses, reduzindo o “mundo” a uma hipótese evanescente, é também certo.

Mas, após ter feito essas operações, Descartes assegura-nos ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um pensamento, e, no instante em que a penso, não posso duvidar de que a penso. A autoconfiança na solidez metafísica do ego pensante surge como poderosa compensação psicológica para a perda da confiança na realidade do “mundo”.
Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que antecedem o estado de dúvida, Descartes é estranhamente evasivo quanto ao estado de dúvida mesmo. Na verdade, ele não o descreve: afirma-o, apenas, e, saltando imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe.

Façamos nós o que não fez Descartes. Tentemos refrear o automatismo do impulso conseqüencialista, e detenhamo-nos por um momento na descrição do estado de dúvida. Em que consiste esse estado?

Em primeiro lugar, não é um estado — uma posição estática em que um homem possa permanecer inalteradamente, como permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. É uma alternância entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-se num dos termos da alternativa sem que o outro venha disputar-lhe a primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita de sua coexistência antagônica e de nada mais. Mas esse antagonismo não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde possa repousar e “estar”. Só que, como cada um dos termos é a negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, por um instante, negar o outro: e, precisamente nesse instante, não está em dúvida — está afirmando ou negando, afirmando uma coisa e negando a outra, ainda que não consiga perseverar na afirmação ou na negação sem que lhe ocorram mil e uma razões para abandoná-la. E, no instante em que nega ou afirma, a dúvida suprime-se a si mesma como dúvida, e luta para se estabelecer como afirmação ou negação; mas fracassa, e é só neste fracasso que consiste precisamente, a dúvida. Segue-se a conclusão fatal: é impossível uma dúvida que não se ponha em dúvida a si mesma, uma dúvida que, suspendendo a alternância, se imponha como “estado” e permaneça. Ao tomar a dúvida como um “estado”, omitindo que se trata de uma alternância entre dois momentos antagônicos, Descartes a coisifica e a toma como uma certeza: “Não posso duvidar de que duvido no instante em que duvido”, frase que Descartes toma como expressão da mais patente obviedade, manifesta no entanto um contra-senso lógico e uma impossibilidade psicológica. Mais certo é: ao duvidar, ponho tudo em dúvida, inclusive a dúvida mesma. A dúvida não é um estado: é uma sucessão e coexistência de estados antagônicos, é um não poder estar.

O que leva Descartes ao erro é o fato de que confunde a dúvida com a negação, mais propriamente com a negação hipotética. Posso efetivamente produzir uma negação hipotética e repeti-la indefinidamente. Posso mesmo ampliá-la — hipoteticamente, é claro — até que abranja a totalidade do que julgo saber. Mas não posso “duvidar” do meu saber sem ao mesmo tempo afirmá-lo reiteradamente, na medida em que só assim poderei intercalar às suas afirmações sucessivas as sucessivas negações, e a estas as afirmações, cujo círculo vicioso constitui a dúvida.
Colocado nesses termos, o cogito cartesiano se reduz apenas a uma nova e aliás bastante nebulosa enunciação do antigo argumento de Sócrates contra o céptico, de que não se pode negar sem afirmar a negação, sem afirmar portanto alguma coisa. Mas, vistas as coisas assim, a bem pouco se reduz a descoberta cartesiana: longe de ter instaurado um novo fundamento, crítico ou negativo, para o mundo do saber, ela não fez senão demonstrar novamente, pelas vias tortuosas de uma falsa autodescrição psicológica, o primado lógico da afirmação sobre a negação. Só que o reconhecimento deste primado é, no mesmo ato, a negação da dúvida como ato fundante. A descoberta de Descartes é uma não-descoberta, é a descoberta da impossibilidade de descobrir o que quer que seja por uma via em cuja definição mesma está contida uma autocontradição intolerável.

Mas, com isto, demonstrei apenas que a dúvida, como tal, não pode servir de fundamento crítico; não expus ainda os fundamentos que, por sua vez, possibilitam a dúvida. E este é o ponto decisivo, pois, se há um algo “por trás” da dúvida, é este algo, e não a dúvida, que constitui o ponto de apoio firme que Descartes buscava, e que acreditou ingenuamente ter encontrado na constatação da dúvida.

Descartes diz que a dúvida é uma certeza no instante em que é pensada. Mas isto é falso: o que é certeza é a reflexão posterior que afirma a realidade da experiência da dúvida. No instante mesmo da dúvida, o que há é, como vimos, uma alternância entre afirmação e negação, e portanto a impossibilidade mesma de afirmar um estado qualquer, se por estado entendemos, como se deve entender, a coincidência entre um juízo de fato e o sentimento que o valoriza negativa ou positivamente, como ocorre na tristeza, na raiva, na pressa, na esperança etc. A dúvida não é um estado, pela simples razão de que nela o sentimento, que pode ser de ansiedade, de esperança, de curiosidade, etc., não coincide com um juízo determinado, mas provém justamente da impossibilidade de afirmar ou negar um juízo. Ela é antes um momento de suspensão entre estados, um vazio agitado que contém em germe vários estados possíveis — pelo menos dois — e não se resolve em nenhum deles sem suprimir-se a si mesma. O homem portanto nunca “está” em dúvida: apenas passa por ela, precisamente como transição entre estados. É só quando a dúvida deixa de ser vivência presente para passar a ser objeto de reflexão que surge esta certeza puramente retrospectiva e narrativa: “Não consegui, até agora, estabilizar-me na negação ou na afirmação.”

Existe, portanto, não só distinção lógica como também separação de fato entre a dúvida enquanto vivência presente e a dúvida enquanto objeto de recordação e reflexão — e é esta que é certa e indubitável, não aquela, embora Descartes tome uma pela outra e nos repasse como evidência intuitiva direta o que é fruto de reflexão posterior. É somente esta reflexão que, dando um nome à alternância vivenciada, confere artificialmente a unidade de um “estado” ao que é na verdade uma sucessão de estados que se suprimem mutuamente ou uma coexistência de estados puramente potenciais, dos quais cada um só se pode atualizar à custa da exclusão dos outros. Conferindo ao vazio da alternância a consistência positiva de um estado, no mesmo instante Descartes transforma a dúvida em mera negação hipotética, tomando então como estado psicológico efetivo o que é apenas o conceito lógico de um estado possível.
*Olavo de Carvalho

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