(...) Foi a partir daí que tentei averiguar por que motivo se designaram os hebreus por eleitos de Deus. E como visse que isto signifique apenas que Deus escolheu para eles uma certa região do mundo onde pudessem viver em segurança e comodidade, conclui que as leis reveladas por Deus a Moisés não eram senão o direito particular do Estado hebraico e, por conseguinte, ninguém, a não ser os judeus, lhe estava sujeito. E mesmo estes, só enquanto durasse o referido Estado.
Depois, para saber se podia concluir da Escritura que o entendimento humano está por natureza corrompido, fui investigar a religião católica, ou seja, a lei divina revelada a todo gênero humano pelos profetas e pelos apóstolos, seria diferente daquela que a luz natural também ensina: e em seguida, se os milagres acontecem ao arrepio da ordem natural e provam a existência e a providência de Deus de maneira mais certa e mais clara do que as coisas que entendemos clara e distintamente pelas suas causas primeiras. Mas como não encontrasse, naquilo que a Escritura expressamente ensina nada que não tivesse de acordo com o entendimento ou lhe repugnasse, e como, por outro lado, visse que os profetas só ensinavam coisas extremamente simples e acessíveis a todos, além de recorrerem ao estilo e à argumentação que melhor pudessem incitar os ânimos da multidão à devoção para com Deus, fiquei completamente persuadido de que a Escritura deixa a razão em absoluta liberdade e não tem nada em comum com Filosofia, assentando, pelo contrário, cada uma delas nas suas próprias bases.
(...)
Passo em seguida a analisar os preconceitos que surgem pelo fato de o vulgo (sujeito à superstição e preferindo reliquías do passado à própria eternidade) adorar os livros da Escritura em vez do próprio Verbo de Deus. Depois, mostro que o Verbo de Deus revelado não consiste em determinado número de livros, mas sim num conceito simples da mente divina revelada aos profetas, a saber, obedecer inteiramente a Deus, praticando a justiça e a caridade. E provo que esta doutrina é ensinada na Escritura de maneira adequada ao poder da comprensão e às opiniões daqueles a quem os profetas e os apóstolos costumavam pregar a palavra de Deus, de modo a que os homens a pudessem aceitar integralmente e sem qualquer repugnância.
Uma vez assim apresentados os fundamentos da fé, concluo, finalmente, que o conhecimento revelado não tem outra finalidade senão a obediência e que, tanto pela finalidade como pelos fundamentos e pelo método, ele é completamente diferente do conhecimento natural, não tendo nada em comum com este, pois cada ocupa a sua área sem que o outro se insurja e sem que nenhum tenha de considerar subordinado. Como, além, disso, os homens são por temperamento bastante diferentes, e como uns preferem esta, outros aquela opinião, inspirando a uns sentimentos religiosos o que a outros só provoca escárnio, concluo ser necessário deixar a cada um a liberdade de julgar e a possibilidade de interpretar os fundamentos da fé segundo a sua maneira de ser, e não se ajuizar de ninguém, a não ser pelas suas ações, conforme piedosas ou impías. Só assim poderão todos obedecer a Deus de livre e inteira vontade e dar valor apenas à justiça e a caridade.
Após evidenciar a liberdade que a lei divina revelada concede a cada um, passo a outro aspecto da questão, o qual consiste em mostrar que essa mesma liberdade pode e deve ser concedida, sem que isso lese a paz social e o direito das autoridades soberanas, e que, pelo contrário, não pode ser suprimida sem graves riscos para a paz e em detrimento de todo o estado. Para demonstrar esse ponto, começo, porém, pelo direito natural do indivíduo, que vai até onde for o seu desejo e o seu poder, sem que alguém esteja, com base em tal direito, obrigado a viver a mando de outrem e sendo, em vez disso, cada um o responsável pela sua própria liberdade. A seguir, mostro que, em realidade, ninguém renuncia a esse direito, a não ser que transfira para outrem o poder de se defender, e que, nesse caso, aquele para quem todos transferiram o direito de viver à sua vontade e, ao mesmo tempo, o poder de se defenderem possui necessariamente um direito natural absoluto. Demonstro então que os que detém o poder supremo a tudo o que estiver em seu poder e são os únicos responsáveis pelo direito e pela liberdade, ao passo que os outros devem fazer tudo de acordo apenas com o que eles determinam.
Todavia, como ninguém pode privar-se a um ponto tal do seu poder de se defender que deixasse de ser um homem, resulta daí que ninguém pode ser absolutamente privado do seu direito natural e que os súditos mantém, quase como um direito da natureza, alguns privilégios que lhes não pode ser recusado sem grave perigo para o Estado e que, ou lhes são tacitamente concedidos, ou eles estipulam expressamente com aqueles que detém o poder. Posto isto, passo ao estado hebraico, que descrevo em pormenor, para explicar por que razão e por ordem de quem a Religião passou a ter força de lei, bem como outras coisas, que, de caminho me pareciam dignas de registro.
(...)
Tinha ainda mais coisas a dizer, mas não quero que este prefácio se alongue ao ponto de parecer um volume, sobretudo porque julgo que o essencial é soberanamente conhecido dos filósofos. Quanto aos outros, não tento sequer recomedar-lhes este tratado, pois nada me leva a esperar que ele, por qualquer razão, lhes possa agradar. Sei, efetivamente, quão arriscado estão na mente os preconceitos a que se adere como se de coisa piedosa se tratasse; sei, além disso, que é impossível libertar o vulgo da superstição e do medo: e sei, finalmente, que a constância no comum dos homens é obstinação e que, em vez de ser a razão que os guia, é a tendência para louvar ou vituperar que os arrebata.
Depois, para saber se podia concluir da Escritura que o entendimento humano está por natureza corrompido, fui investigar a religião católica, ou seja, a lei divina revelada a todo gênero humano pelos profetas e pelos apóstolos, seria diferente daquela que a luz natural também ensina: e em seguida, se os milagres acontecem ao arrepio da ordem natural e provam a existência e a providência de Deus de maneira mais certa e mais clara do que as coisas que entendemos clara e distintamente pelas suas causas primeiras. Mas como não encontrasse, naquilo que a Escritura expressamente ensina nada que não tivesse de acordo com o entendimento ou lhe repugnasse, e como, por outro lado, visse que os profetas só ensinavam coisas extremamente simples e acessíveis a todos, além de recorrerem ao estilo e à argumentação que melhor pudessem incitar os ânimos da multidão à devoção para com Deus, fiquei completamente persuadido de que a Escritura deixa a razão em absoluta liberdade e não tem nada em comum com Filosofia, assentando, pelo contrário, cada uma delas nas suas próprias bases.
(...)
Passo em seguida a analisar os preconceitos que surgem pelo fato de o vulgo (sujeito à superstição e preferindo reliquías do passado à própria eternidade) adorar os livros da Escritura em vez do próprio Verbo de Deus. Depois, mostro que o Verbo de Deus revelado não consiste em determinado número de livros, mas sim num conceito simples da mente divina revelada aos profetas, a saber, obedecer inteiramente a Deus, praticando a justiça e a caridade. E provo que esta doutrina é ensinada na Escritura de maneira adequada ao poder da comprensão e às opiniões daqueles a quem os profetas e os apóstolos costumavam pregar a palavra de Deus, de modo a que os homens a pudessem aceitar integralmente e sem qualquer repugnância.
Uma vez assim apresentados os fundamentos da fé, concluo, finalmente, que o conhecimento revelado não tem outra finalidade senão a obediência e que, tanto pela finalidade como pelos fundamentos e pelo método, ele é completamente diferente do conhecimento natural, não tendo nada em comum com este, pois cada ocupa a sua área sem que o outro se insurja e sem que nenhum tenha de considerar subordinado. Como, além, disso, os homens são por temperamento bastante diferentes, e como uns preferem esta, outros aquela opinião, inspirando a uns sentimentos religiosos o que a outros só provoca escárnio, concluo ser necessário deixar a cada um a liberdade de julgar e a possibilidade de interpretar os fundamentos da fé segundo a sua maneira de ser, e não se ajuizar de ninguém, a não ser pelas suas ações, conforme piedosas ou impías. Só assim poderão todos obedecer a Deus de livre e inteira vontade e dar valor apenas à justiça e a caridade.
Após evidenciar a liberdade que a lei divina revelada concede a cada um, passo a outro aspecto da questão, o qual consiste em mostrar que essa mesma liberdade pode e deve ser concedida, sem que isso lese a paz social e o direito das autoridades soberanas, e que, pelo contrário, não pode ser suprimida sem graves riscos para a paz e em detrimento de todo o estado. Para demonstrar esse ponto, começo, porém, pelo direito natural do indivíduo, que vai até onde for o seu desejo e o seu poder, sem que alguém esteja, com base em tal direito, obrigado a viver a mando de outrem e sendo, em vez disso, cada um o responsável pela sua própria liberdade. A seguir, mostro que, em realidade, ninguém renuncia a esse direito, a não ser que transfira para outrem o poder de se defender, e que, nesse caso, aquele para quem todos transferiram o direito de viver à sua vontade e, ao mesmo tempo, o poder de se defenderem possui necessariamente um direito natural absoluto. Demonstro então que os que detém o poder supremo a tudo o que estiver em seu poder e são os únicos responsáveis pelo direito e pela liberdade, ao passo que os outros devem fazer tudo de acordo apenas com o que eles determinam.
Todavia, como ninguém pode privar-se a um ponto tal do seu poder de se defender que deixasse de ser um homem, resulta daí que ninguém pode ser absolutamente privado do seu direito natural e que os súditos mantém, quase como um direito da natureza, alguns privilégios que lhes não pode ser recusado sem grave perigo para o Estado e que, ou lhes são tacitamente concedidos, ou eles estipulam expressamente com aqueles que detém o poder. Posto isto, passo ao estado hebraico, que descrevo em pormenor, para explicar por que razão e por ordem de quem a Religião passou a ter força de lei, bem como outras coisas, que, de caminho me pareciam dignas de registro.
(...)
Tinha ainda mais coisas a dizer, mas não quero que este prefácio se alongue ao ponto de parecer um volume, sobretudo porque julgo que o essencial é soberanamente conhecido dos filósofos. Quanto aos outros, não tento sequer recomedar-lhes este tratado, pois nada me leva a esperar que ele, por qualquer razão, lhes possa agradar. Sei, efetivamente, quão arriscado estão na mente os preconceitos a que se adere como se de coisa piedosa se tratasse; sei, além disso, que é impossível libertar o vulgo da superstição e do medo: e sei, finalmente, que a constância no comum dos homens é obstinação e que, em vez de ser a razão que os guia, é a tendência para louvar ou vituperar que os arrebata.
*Baruch de Espinoza
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