sábado, 9 de outubro de 2010

Bento de Espinoza

Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro, ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vitímas da superstição. Mas, como se encontram freqüentemente perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre prontos a acreditar seja o que for, se tem dúvidas, deixam-se levar com a maior das facilidades para aqui ou para ali; se hesitam, sobressaltados pela esperança e pelo medo em simultâneo, ainda é pior; porém, se estão confiantes, ficam logo inchados de orgulho e presunção.

Julgo que toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convicto de que a maioria dos homens se ignoram a si próprios. Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os homens que não se tenha dado conta de que a maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem ofendidos se alguém lhes quer dar um conselho. Todavia, se estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, suplicam o conselho de quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou inútil, que eles não sigam.

Depois, sempre por motivos insignificantes, voltam de novo a esperar melhores dias ou a temer desgraças ainda piores. Se acontece, quando estão com medo, qualquer coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram, julgam que é o prenúncio da felicidade ou da infelicidade e chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto, apesar de já terem se enganado centenas de vezes. Se vêem, pasmados, algo de insólito, crêem que se trata de um prodígio que lhes revela a cólera dos deuses ou do Númem sagrado, pelo que não aplacar com sacríficios e promessas tais prodígios constitui um crime aos olhos desses homens submergidos na superstição e adversários da religião, que inventam mil e uma coisas e interpretam a natureza da maneira mais extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo que eles. Tanto assim é, que quem nós vemos ser escravo de todas as superstições são sobretudo os que desejam sem moderação os bens incertos.

Todos eles, designadamente quando correm perigo e não conseguem por si próprios salvar-se, imploram o auxílio divino com promessas e lágrimas de mulher, dizem que a razão é cega porque não pode indicar-lhes um caminho seguro em direção às coisas vãs que desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios da imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas divinas. Até julgam que Deus sente aversão pelos sábios e que os seus decretos não estão inscritos na mente, mas sim nas entranhas dos animais, ou que são os loucos, os insensatos, as aves, quem por instinto ou sopro divino os revela.

A que ponto o medo ensandece os homens! O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Se, depois do que já dissemos, alguém quiser ainda exemplos, veja-se Alexandre, que só se tornou supersticioso e recorreu aos adivinhos, quando, às portas de Susa, começou pela primeira vez a temer por sua sorte (vide Q. Cúrcio, Livro V, §7); assim que venceu Dario, desistiu logo de consultar os adivinhos e arúspices. Até ao momento em que, uma vez mais aterrado pela adversidade, abandonado pelos Bactrianos, atacado pelos Citas e imobilizado devido a uma ferida, recaiu (como diz o mesmo Q. Cúrcio, Livro VII, §7) na superstição, esse logro das mentes humanas, e mandou Aristandro, em quem depositava uma desconfiança cega, explorar por meios de sacríficios a evolução futura dos acontecimentos.

Poderíamos acrescentar muitos outros exemplos que provam com toda a clareza o mesmo: os homens só se deixam dominar pela superstição enquanto têm medo: todas essas coisas que já alguma vez foram objetos de um fútil culto religioso não são mais do que fantasmas e delírios de um caráter amedrontado e triste; finalmente, é quando os Estados se encontram em maiores dificuldades que os adivinhos detém maior poder sobre a plebe e são mais temidos pelos seus reis. Mas como tudo isto, ao que presumo, é suficientemente conhecido de todos, não insistirei mais no assunto.

Se esta é a causa da superstição, há que concluir, primeiro, que todos os homens lhe estão naturalmente sujeitos (digam o que disserem os que julgam que ela deriva do fato de os mortais terem todos uma qualquer idéia, mais ou menos confusa, da divindade); em segundo lugar, que ela deve ser extremamente variável e inconstante, como todas as ilusões da mente e os acessos de furor, e por último, que só a esperança, o ódio, a cólera e a fraude podem fazer com que subsista, pois não provém da razão, mas unicamente da paixão, e da paixão mais eficiente. Daí que seja tão fácil os homens acabarem vítimas de superstição de toda espécie quanto é difícil conseguir que eles persistam numa só e na mesma superstição.

Precisamente porque o vulgo persiste na sua miséria é que nunca está por muito tempo tranqüilo e só lhe agrada o que é novidade e o que ainda não lhe enganou, inconstância essa que tem sido a causa de inumeráveis tumultos e guerras atrozes. Na verdade (como se prova pelo que já dissemos e como Cúrcio muito bem observou, no livro IV, cap. X), não há nada mais eficaz que a superstição para governar as multidões. Por isso é que estas são facilmente levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para todo gênero humano.

Foi, de resto para prevenir este perigo que houve sempre o cuidado de rodear a religião, fosse ela verdadeira ou falsa, de culto e aparato, de modo a que se revestisse da maior gravidade e fosse escrupulosamente observada por todos. Entre os turcos, isto foi tão bem sucedido que até o simples discutir eles consideram crime, deixando a inteligência de cada um ocupada com tantos preconceitos que não há mais lugar na mente para a reta razão, nem sequer para se duvidar.

Se, efetivamente, o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhes interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em que devem ser contidos para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só homem, em contrapartida, numa República livre, seria impossível conceber ou tentar algo de mais deplorável, já que repugna em absoluto à liberdade comum sufocar com preconceitos ou coartar de algum modo o livre discernimento de cada um. E no que diz respeito aos conflitos desencadeados a pretexto da religião, é evidente que eles surgem unicamente porque se estabelecem leis que concernem matéria de especulação e porque as opiniões são consideradas crime e, como tal, condenadas.

Os seus defensores e prosélitos são, por isso, imolados, não ao bem público, mas apenas ao ódio e à crueldade dos adversários. Porque se o direito estatal fosse de modo a que os fatos fossem incrimináveis, mas as palavras fossem impunes, semelhantes conflitos não poderiam jamais invocar qualquer espécie de direito, nem as controvérsias se converteriam em sedições. E já que nos coube em sorte esta rara felicidade de viver numa República, onde se concede a cada um inteira liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprouver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável do que a liberdade, pareceu-me que não seria tarefa ingrata ou inútil mostrar que esta liberdade não só é compatível com a liberdade e paz social, como inclusivamente, não pode ser abolida, sem se abolir, ao mesmo tempo, a paz social e a piedade.

(...)

Inúmeras vezes fiquei espantado por ver homens que se orgulham por professar a religião cristã, ou seja o amor a alegria, a paz, a continência e a lealdade para com todos, combaterem-se com tal ferocidade e manifestarem cotidianamente uns para com os outros um ódio tão exacerbado que se torna mais fácil reconhecer a sua fé por estes do que por aqueles sentimentos. De fato, há muito que as coisas chegaram a um ponto tal que é quase impossível saber se alguém é cristão, turco, judeu ou pagão, a não ser pelo seu vestuário, pelo culto que pratica, por freqüentar esta ou aquela igreja, ou finalmente porque perfilha esta ou aquela opinião e costuma jurar pelas palavras deste ou daquele mestre. Quanto ao resto, todos levam a mesma vida.

Procurando então a causa deste mal, conclui que ele se deve, sem sombra de dúvidas, ao fato de os cargos da Igreja serem considerados como títulos de nobreza, os seus ofícios como benefícios, e consistir a religião, para o vulgo, em cumular de honras os pastores. Com efeito, assim que começou na Igreja este abuso, logo se apoderou dos piores homens um enorme desejo de exercerem os sagrados ofícios, logo o amor de propagar a divina religião se transformou em sórdida avareza e ambição; de tal maneira que o próprio templo degenerou em teatro onde não mais se veneravam doutores da Igreja mas oradores que, em vez de quererem instruir o povo, queriam era fazer-se admirar e censurar publicamente os dissidentes, não ensinando senão coisas novas e insólitas para deixarem o vulgo maravilhado. Daí o surgirem grandes contendas, invejas e ódio, que nem o correr do tempo foi capaz de apagar.
*Baruch de Espinosa
**Bento de Espinoza também Benedito Espinoza ou como é mais conhecido no Brasil, Baruch de Spinoza. Foi um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da chamada Filosofia Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz. Nasceu em Amsterdam, nos Países Baixos, no seio de uma família judaica portuguesa e é considerado o fundador do criticismo bíblico moderno

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