terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O papel da filosofia

Perguntarão então qual é o papel da filosofia, se ela não tem de nos libertar da ignorância e nos elevar ao saber. É que só ela nos traz o entendimento da aparência como aparência. Porque vivemos na aparência, mas não sabemos, uma vez que, ao contrário, deixamo-nos levar continuamente a absolutizar aquilo que nos aparece, e, em vez de deixá-lo valer unicamente nos limites da aparência, nós o supomos valendo pelo "ser" mesmo, e pela essência das coisas, o que nos conduz a rejeitar, a "refutar", a abolir as outras versões, que, no entanto, são sentidas, vividas por outros.

A filosofia da aparência deve conduzir a uma absoluta benevolência: se "sabemos" que tudo o que dizem sobre a Virgem, mãe de Jesus, não passa de um tecido de absurdos, só podemos lançar um olhar de piedade e de condescendência sobre a pobre velha que acende uma vela numa capela da Virgem, mas, então, não estamos fazendo mais do que adotar outro aspecto da ilusão de reificação de que é vítima a velha senhora — como se a Virgem tivesse de ter um ser, um estatuto ontológico; se, ao contrário, estivermos atentos àquilo que se mostra à mulher devota em seu gesto de adoração, à Virgem como valor inspirador de atitudes e de vida, como centro de radiação que ilumina e inspira certa esfera de existência, então, longe de nos sentirmos levados à condescendência ou ao desdém, adquirimos um tipo de respeito indireto por essa "Virgem" poderosa e ativa (dentro dos limites de uma esfera de existência), mesmo não sendo nada.

Os homens da ciência, os filósofos são levados a conceber uma hierarquia em cujo pico se colocam, e o currículo da educação e da instrução lhes parece dever conduzir, de grau em grau, até esse pico: ser "ignorante" ou ser "erudito" faz, para eles, enorme diferença… Mas, a sua existência é realmente mais rica do que a de uma velha ignorante, se eles perderam o poder de adorar (ou um outro poder: por exemplo, aquela forma de generosidade, aquela humildade etc.)? Mas, por outro lado, não são eles também vítimas da mesma ilusão de reificação? Porque pensam ter de ir para além da aparência, para o "ser-verdade" e para a "essência" das coisas — enquanto estão vivendo como toda gente, na aparência, em que o que conta, no desenrolar cotidiano da vida, é uma multiplicidade de coisas singulares que o tempo arrasta consigo. Certamente eles teriam, contudo, razão se existisse esse "ser-verdade" — ou "essência" — das coisas (ou qualquer coisa daquilo que hipostasiam acima da vida em seu curso cotidiano), mas para a filosofia da aparência, ao ignorar que a aparência é o todo, não fazem mais do que substituir a aparência pela ilusão.
*Marcel Conche

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