sábado, 16 de julho de 2011

A descendência de Caim

Num lugar ermo, donde mapas são indiferentes, um homem só vive entre a imensidão das montanhas e a modéstia de sua pequena casa. Um quarto austero, alguns livros de páginas amarelas, um bule amassado de chá, a cama feita com um colchão de palha e a velha escrivaninha única companheira inabalada em anos a fio. Acima de tudo, o negrume da noite é cortado por uma lamparina de bico já gasto ostentando uma pequena chama. Nas raras manhãs onde a enxaqueca ou gota não o atordoam como fossem uma fúria dos antigos amaldiçoados, ele caminha demoradamente entre as árvores, muito talvez invejando a espessura da casca que protege os troncos. Ademais, pensa e escreve. Debruçado no velho móvel sob o auxílio do precário lume, redige cartas a um amigo que nunca existiu. À 03 de março de um ano não pertencente ao calendário gregoriano:

“O mundo vive dias de indecência e superficialidade tamanha que às vezes sem pressentir, a idéia de suicídio me bate como uma das poucas coisas dignas que restaram. Mil vezes me envergonho, integralmente por ter partilhando as minhas mais elevadas aspirações dizendo-as ao público. Aspirações essas que mesmo em tempos muito mais valiosos e profundos, não deveria ter sido partilhadas. Depois de um século de liberdade o homem se vê prostrado sem saber que frutos essa árvore de fato deu, a abertura desmedida à imprensa transformou a vida em mercado, corrompeu o gosto, chacinou a beleza. Viver assim tão a mercê da imposição alheia é existir somente, como gado que foi marcado de forma voluntária. Todavia, abraço a solidão em que me recolho tal como Dante ou Espinosa, mesmo sabendo que esses homens eram muito mais preparados. É inegável que a sua maneira de processar o mundo era muito mais ajustada à solidão que a minha, afinal, os que conseguem inventar “Deus” por companhia jamais conhecerão a solidão que sinto. Sou um aborto da natureza e a minha razão não pode querer pretender mais(...)”

Olha pela janela, fita o opaco vidro com intensidade mesmo percebendo que nada se pode ver além da muralha escura da noite. Depois dessa pausa, mergulha mais uma vez a pena no tinteiro e escreve a frase derradeira:

“A minha fé tão parca, reside agora na esperança, ou na desesperança, de que surja um homem novo que possa demonstrar que tudo é deveras avesso ao que penso, que refunde o pesadelo da vida transformando-o em coisa mais viçosa. Creio que jamais me encontrei em tamanha decadência mas, estranhamente, sinto agora alívio em dizer minhas aspirações mais profundas”.
*Leandro M. de Oliveira

Nenhum comentário: